A Sala de Leitura Bernardo Santareno assistiu, no passado dia 8 de Maio, a uma rara enchente para escutar os testemunhos no feminino de ‘Elas fizeram Abril’, uma conversa moderada pela antiga deputada e vereadora na Câmara de Santarém, Luísa Mesquita.
O evento reuniu Felisbela Bernardo, esposa do capitão Joaquim Correia Bernardo; Dúnia Palma, viúva de António Palma, antigo comandante da EPC – Escola Prática de Cavalaria e Natércia Maia, viúva do capitão Salgueiro Maia que partilharam estórias e vivências daqueles tempos.
Ao longo de duas horas e meia recordaram- se muitas memórias pessoais e foram lembrados momentos decisivos que contribuíram para o golpe de Estado do dia 25 de Abril de 1974, bem como as emoções e os receios que esse dia provocou em todas as intervenientes.
Natércia Maia viu sair de Santarém a coluna militar em que seguia o marido, na madrugada de 24 para 25 de Abril, pelos “buraquinhos do estore”, para não atrair a atenção da PIDE.
No prédio onde vivia com Fernando Salgueiro Maia, em 1974, moravam mais dois capitães, pelo que a presença de um agente da polícia política era constante na rua. “Lá no prédio vivia mais um capitão que também saiu, que ocupou o Banco de Portugal, e havia outro, mas que por acaso nessa altura estava em Angola. E então, havia sempre um PIDE lá na rua e, portanto, eu não subi o estore, espreitei pelos buraquinhos para ver a avenida”, contou a mulher que casou com Salgueiro Maia em 1970 e que o acompanhou até à morte prematura, em 1992.
Salgueiro Maia falava pouco de trabalho e de política em casa, excepto em reuniões de amigos chegados ou familiares próximos, em que era comum defender – “Isto tem de mudar”.
“Já tinha havido tentativas, não é? Só realmente as Forças Armadas ou o Exército é que podiam, talvez, dar a volta à situação (…) De resto, eu sabia que havia de acontecer qualquer coisa”, assumiu Natércia.
“No dia 23, ele recebeu um telefonema e foi encontrar-se com um militar, acho eu, com certeza que era um militar, e disse-me ´Se calhar é hoje´. Depois veio para casa. Não era ainda naquele dia”, sorriu. Natércia Maia estava a par das reuniões do marido. Por vezes acompanhava- o até Lisboa para dar uma volta na capital, enquanto o capitão se reunia com outros militares envolvidos no golpe de Estado que derrubou a ditadura há 50 anos.
No dia 24 de Abril de 1974, Salgueiro Maia avisara a mulher para ficar atenta às músicas que, na rádio, serviriam de senha para a revolução (E Depois do Adeus e Grândola, vila morena). E disse-lhe – “Pode ser hoje”. “Depois quando ouvi, aguentei até vê-los passar”, recordou Natércia: “Devo ter-lhe desejado boa sorte, aquilo podia correr mal!”.
Apesar de desconhecer os pormenores do plano, sabia que o marido seguia naquela coluna que saiu de Santarém rumo a Lisboa, até porque era ele “o responsável pelos carros de combate”.
Reparou também que Salgueiro Maia, que apenas fumava em ocasiões especiais, colocara cigarrilhas no saco, antes de sair de casa para a Escola Prática, no dia 24 de Abril. “Aquilo já era ele a pensar em comemorar.
Não é que me tivesse dito, as coisas são óbvias, tínhamos esta forma de estar, não era preciso estar a dizer tudo”, afirmou.
Naquela noite, Natércia, professora de matemática, viveu entre o segredo da revolução e a atenção devida a uma visita que recebeu em casa e que nada sabia, mas que estranhava o comportamento da anfitriã, conforme lhe confessou mais tarde, uma amiga que encontrara na rua e que convidara a subir, por cortesia.
Natércia dividia-se entre a sala, onde estava a colega, e a emissão do rádio, na cozinha. “Era só uma paredezinha, portanto eu andava sempre assim” [à escuta], simulou.
O telefone tocava e Natércia Maia não atendia, com receio de que fosse alguém a fazer perguntas às quais não poderia responder, o que – num tempo em que imperava a figura do chefe de família – levou a amiga a pensar que talvez o marido não a deixasse atender telefonemas.
“Já tinha havido o 16 de Março [sublevação de militares das Caldas da Rainha que foi abortada], em que me ligaram para casa a perguntar o que se passava com a Escola Prática, que as forças do Norte já vinham a caminho. Eu disse que não sabia, que ligassem para a Escola Prática, quem era eu para dizer o que se passava?”, lembrou, classificando o episódio como “uma barraca”.
Com a revolução em curso, e depois do esforço para nada deixar transparecer, Natércia adormeceu momentaneamente e acordou, em sobressalto, com o comunicado do Movimento das Forças Armadas (MFA), justamente na parte final em que se fazia um apelo aos médicos para se dirigirem aos hospitais. “Pensei: está a correr mal. Só depois é que percebi que era uma medida preventiva”.
“Nessas situações mantenho-me sempre muito calma e serena, pelo menos aparentemente, só que interiormente deve haver um grande desgaste. De maneira que encostei-me um bocadinho e passei pelas brasas [risos]. Até tenho vergonha de dizer isto, pode ser mal interpretado, mas foi o que aconteceu”, admitiu, reconhecendo que acordou “escandalizada” com a sua situação.
Tentou fazer a vida normal, tal como havia conversado com o marido e dirigiu-se ao liceu, onde dava aulas. “Nem chegamos a entrar, o senhor reitor disse que tinha recebido ordens para fechar a escola”, contou.
Ao regressar a casa, ligou a televisão que apenas transmitia música. “Depois, quando apareceu a imagem já o meu marido estava no Carmo. E lembro-me de ter dito: Tinha de ser!”, precisou, ao evocar a personalidade de Salgueiro Maia: “Era uma pessoa cheia de energia, decidido. Para ele nunca havia obstáculos, tentava sempre encontrar uma solução, tirando a doença. Era o que ele dizia, a única coisa que não conseguiu resolver foi a doença”.
Foi à distância que aguardou pelo resultado do desempenho de Salgueiro Maia e dos outros militares. “Aquele bocadinho também foi muito preocupante, demorou algum tempo até a situação ser resolvida no Carmo. Podia não correr bem”, admitiu. Conseguida a rendição do regime, Salgueiro Maia ficou em Lisboa mais uns dias. Reencontraram-se no dia 26 de Abril, junto ao Regimento de Cavalaria 7, na Ajuda, onde Natércia se deslocou com uma amiga, também casada com um militar. “Abraçamo-nos. Lembro-me que passou um camionista e que o camionista também estava muito feliz!”, recordou.
A mesma felicidade partilhada pelas outras duas mulheres presentes nesta tertúlia: Felisbela Bernardo, esposa do capitão Joaquim Correia Bernardo e Dúnia Palma. Em particular, Felisbela Bernardo, esposa do então jovem capitão Correia Bernardo, que idealizou um plano B, caso as coisas corressem mal na revolução de 25 de Abril de 1974, recordou os momentos “muito difíceis” pelos quais passou quando o marido estava na Guerra do Ultramar e ficou gravemente ferido em combate.
Em 1969, quando o marido foi mobilizado, a professora de geografia ficou em Santarém com a responsabilidade dos dois filhos, de ano e meio e três anos. A Guiné, o local que esperava o Capitão: era um dos palcos de guerra mais violentos, uma das razões que a levou a permanecer em Portugal. “Ir ou não ir tinha sempre consequências.
E a angústia era a mesma”. A partida para Nova Sintra, na Guiné, aconteceu em Março. Três meses depois chegavam as más notícias a Portugal: em Junho, recebeu um telefonema com hora marcada nos correios. Foi o marido o primeiro a dar-lhe a notícia do acidente. Uma mina rebentou e o militar perdeu uma perna.
Depois de quatro horas debaixo de fogo foi resgatado graças à insistência de um piloto de helicóptero e de uma enfermeira.
O desembarque dos feridos é uma imagem que nunca irá esquecer. A recuperação do marido, com o apoio de especialistas alemães, foi um sucesso. E, hoje, as sequelas do acidente que o militar sofreu são praticamente imperceptíveis. A revolta, por sentir que toda uma geração foi sugada pela guerra, ainda se sente. É um sentimento difícil de apagar, tal como é difícil conter as emoções.
Assumidamente “uma mulher de liberdade”, Dúnia Palma, foi professora, vereadora na Câmara de Santarém durante oito anos, autarca na assembleia municipal entre muitas outras coisas que fez na vida.
Na sua casa, na Rua Nuno Velho Pereira, em finais de 1973, realizou-se uma reunião conspirativa do movimento dos capitães que preparou a revolução de 25 de Abril de 1974. A jovem professora sabia que se preparava algo em grande, só não sabia quando. O seu marido, António Palma, ex-comandante da Escola Prática de Cavalaria falecido há seis anos, não participou no golpe militar pois estava mobilizado para uma missão em Moçambique e gozava na altura de um curto período de férias. Oriunda de uma família sempre comprometida com os ideais de esquerda, Dúnia Palma chamou a si esses valores, tendo participado na vida política escalabitana como eleita da assembleia municipal em dois mandatos e como vereadora noutros dois, entre 1994 e final de 2001, sempre eleita pelo Partido Socialista.
FILIPE MENDES