«Senhor, os frades de cá não me contentaram. Nem no púlpito nem na prática, sobre esta tormenta da Terra que ora passou. Já não bastava o espanto e terror das gentes, mas eles frades ainda afirmavam coisas que mais as faziam esmorecer e ter medo. Primeiro, juravam que os grandes pecados que em Portugal se fazem é que motivaram a ira de Deus para mandar isto e não ser tudo por causas naturais. De modo que havia nestes frades maior ignorância que Graça do Espírito Santo. O segundo espantalho que mostraram ao povo foi afirmarem que quando este tremor de Terra saiu, ficou lá outro de reserva que chegará aqui na próxima quinta-feira, do meio dia para a uma e meia, em ponto. Isto levou à fuga dos habitantes de Santarém e arredores por esses olivais, onde ainda o esperam. Assim, resolvi ir ter com eles ao convento de S. Francisco, onde os juntei no claustro e lhes falei do seguinte modo segundo duas proposições: A) O Altíssimo e soberano Deus nosso habita em dois mundos. O primeiro é o da Sua glória, repouso, tranquilidade, esplendor e segura quietação. O segundo mundo é este onde vivemos, sem repouso, firmeza, prazer seguro, breve, fraco, temeroso, imperfeito, para que, por contraste, desejemos as perfeições do primeiro. B) Por isso estabeleceu Deus neste nosso mundo inseguro que umas coisas dessem lugar a outras pelo seu contrário: à vaidade humana opõe-se a morte; à firmeza das árvores e terras, as tempestades e ventos; aos Templos e edifícios, os tremores de Terra que muitas vezes destroem cidades inteiras. Tudo por causas naturais sem outras nenhumas. Concluo pois, caros irmãos, que não é prudente afirmarem alguns de vós que este espantoso tremor de Terra, com os seus muitos danos, foi causa da ira de Deus devido aos pecados. E mais, ainda queriam que me queimassem se deixasse de pensar que foi a imensa piedade de Deus que, agindo sobre estas naturais causas, evitou males maiores aplacando a fúria dos elementos. Quanto àquela profecia de vir aí novo terramoto pior certo dia, direi que sobre isso ninguém sabe como será nem quando.

Portanto, virtuosos padres, foram imprudentes as afirmações dalguns de vós mais irados pois pregar não pode ser praguejar. E se é certo que há nesta terra grandes pecados, também há infindas esmolas, missas, orações, romarias, procissões, obras pias, públicas e privadas. Também não é cristão que alguns se malsine contra judeus, cristão-novos, e mouros, estrangeiros na nossa Fé. Se Deus foi servido de estarem entre nós, será mais justo que os servos de Deus e pregadores os animem com palavras ou confessem que os ataquem e corram de cá acusados de não serem gratos ao Altíssimo, só para satisfazerem falsos profetas da desgraça e o vulgo ignorante».

«Pedi o Dicionário Geográfico. Não
sabiam o que era…»

Estas palavras fazem parte da Carta de Santarém, enviada por Gil Vicente «trovador e mestre da balança», ao rei João III no dia 26 de janeiro de 1531, logo a seguir ao grande tremor de Terra que nesta altura destruiu metade de Santarém, Lisboa etc. Deviam as mesmas, ou parte, estar gravadas a letras de ouro na entrada, ou claustro, do convento de S. Francisco como exemplo da primeira e rara expressão de liberdade humana medieval e renascentista (não é esta a «cidade da Liberdade»?), sem olhar a raça, sexo, religião e cultura. Não estão. O que lá está à entrada, colocada há poucos anos, é a estátua do orago do convento – do mesmo nome do autarca que a mandou lá colocar – que nunca pôs as seráficas sandálias em Santarém, aliás como S. Paulo, em níveo calcário – ele que era um judeu tisnado – , ou S. Domingos, da ordem dos pregadores, inquisidores etc. Não direi, como outros, que esta cidade moderna cheira ainda muito a sacristia pois é a terra doutro grande Mestre da Língua, scalabitano e cronista daquela ordem, Frei Luís de Sousa, que ainda está à espera da estátua que nunca lembrou aos destas. Nem ele, nem outros grandes nomes das letras nacionais que, esses sim, respiraram os ares frescos do «sempre enobrecido Scabelicastro»: o rei Dinis, Gil Vicente, Castanheda, Camões, Garrett etc. «Se servis a terra que vos foi ingrata, vós fizestes o que devieis, ela o que costuma». Tudo bem em Santarém. Só lembrar – sem menoscabo do que cabe a uma religião fundadora – que o mesmo é, desde 1911 – com muito esforço dos republicanos desta urbe – um Estado laico. Agora os tremores de Terra. 

Santarém está dentro da conhecida – e esquecida da gente actual das tragédias antigas – zona sísmica do vale do Tejo, que com periodicidade mais ou menos longa vem dando, e continuará a dar, sinal de si. Benavente, Almeirim, Lisboa, tudo para cima e pra baixo até Abrantes, além da terra de Frei Luís de Sousa, têm-no experimentado. A Carta de Santarém, mandada ao rei pelo genial autor da «Farsa dos Almocreves» – escrita nesta urbe em 1525 com outras semelhantes –, safou duma tragédia horrenda a comuna de judeus locais acusados de causa do terramoto. Ficava ali perto do arruinado Damasceno que contribuirá em breve restaurado como «Casa das Artes e Cultura de Santarém» para devolver à deserta Zona Histórica movimento, prestígio e a dignidade que já teve, se entregue a um Director local, culto, prestigiado e conhecedor da matéria. Comuna à época em risco de ser atacada pelos ortodoxos e fundamentalistas de 1531, estes que andavam a preparar para daí a cinco anos o mui caridoso Santo Ofício. É mais que certo – não fosse a oportuna intervenção de Mestre Gil – que, sem ele, sucedesse aos judeus de Santarém o mesmo, chacinados aos milhares, de Lisboa em 1506. Convém portanto – pela vida em risco, cedo ou tarde, dos residentes de Santarém e arredores, escolas, estradas, encostas, habitações etc. – que os vereadores e autarcas locais vão ler os clássicos para saberem o terreno que seus munícipes pisam, antes de se meterem em projectos aéreos ou ribeirinhos descuidados, mesmo assim melhores que os subterrâneos.

Eu fui lê-los, pela curiosidade e prazer da leitura. Há muito tempo. Falo das «Memórias Paroquiais», conjunto vasto de informação, colhido junto dos párocos de todo o país, organizado pelo nosso ilustre patrício neste concelho scalabitano padre Luís Cardoso (1694-1769), da Ordem dos Oratorianos, a mando do Marquês do Pombal, no ano seguinte ao terramoto de 1755. Fui à Torre do Tombo, onde se guardam perto de cinquenta grandes volumes manuscritos, nunca editados, deste precioso acervo que já serviu a muitos autores para as suas monografias «inéditas» ignorantes do que está por trás delas e do padre Cardoso nunca citado. Pedi os volumes para o grande «Dicionário Geográfico» começado por Luís Cardoso, ainda antes do terramoto, do qual só estão publicados dois tomos. Não sabiam o que era. O que lá havia eram as tais «Memórias Paroquiais» sem nome de autor, aliás muito requisitadas. Expliquei-lhes o que era aquilo. Pedi os exemplares referentes ao concelho de Santarém, copiados dumas maquinetas de microfilmes. Depois fui à Biblioteca Nacional e pedi cópias dos retratos pintados no séc XVIII dos padres Luís Cardoso e do irmão dele o célebre padre António dos Reis. Não tinham. Ou antes, talvez tivessem, mas estava tudo, pinturas e quadros, metidos na cave sem catálogo. Insisti. Tempos depois recebi os microfilmes entregues a uma instituição da terra destes padres que os ostentam agora expostos numa casa da mesma. Hoje, manuscritos e retratos está tudo on line. É das «Memórias Paroquiais» organizadas pelo padre Luís Cardoso que ofereço aos/às leitoras/es uma pequena parte dos danos provocados pelo Terramoto de 1755.

CONVENTO DE S. FRANCISCO – «Caiu a Torre do Relógio que rompeu o telhado da livraria e biblioteca. Ruiu um lanço das varandas do claustro. Na igreja foram maiores os estragos debaixo do Coro, obra do rei D. Fernando lá sepultado, em abóbada e boa cantaria.». Não acrescenta esta memória mas adianto que morreu lá um leigo de visita. Chamava-se Manuel João casado com Eugénia Maria e era de Almeirim. Diz o registo «morreu de repente por causa duma parede que lhe caiu em cima ocasionado pelo grande terramoto que nesse dia 1 de novembro houve, durando 7 ou 8 minutos, fazendo muitos estragos em edifícios assim sagrados como profanos (in Arquivo Paroquial de Almeirim, livro de óbitos, fl. 34). TORRE DAS CABAÇAS- «Moveu-se tanto a terra naquele sítio e deu a Torre tão grandes balanços que se ouvirão as badaladas do seu grande sino por toda a cidade e arredores.» Igreja de S. NICOLAU- «Ruína na torre que se mandou demolir.» Igreja da MISERICÓRDIA – «Lamentável estrago. Todo o frontispício ruiu». Igreja da GRAÇA – «Com o terramoto caíram as abóbadas das capelas de Santa Rita e Nicolau Tolentino, telhados e paredes da igreja.» CONVENTO DE S. JOÃO DO PEREIRO – (este nome Pereiro liga-se a Nuno Álvares Pereira que aqui teve propriedades). «Com o terramoto padeceu a igreja dele muita ruína.» CONVENTO DE S. BENTO (em Monte Irás, deu nome ao actual miradouro) «Com o terramoto caiu todo o zimbório da igreja que arruinou a capela onde está a imagem milagrosa do Sr. Jesus da Pastorinha.» (lenda do célebre Cristo). CONVENTO DOS JESUÍTAS (Seminário) «Na igreja houve ruína na capela-mor e torre.» FREGUESIA DA ALCÁÇOVA- «Sofreram danos as casas de António José Saldanha e a de Gastão da Câmara Coutinho». Gente ligada pela família ao Épico. HOSPITAL DE S. LÁZARO (à Porta de Manços, para leprosos) «A Ermida de S. Lázaro, resistiu ao terramoto do dia 1 de novembro ruindo no dia 21 de dezembro.» RIBEIRA DE SANTARÉM- «A igreja paroquial padeceu grande ruína. O frontispício teve que se reparar. Caíram as duas abóbadas, coro, escadas, torre, zimbório e sacristia.» (Convém lembrar a ilustre Câmara, que tenciona fazer aqui obras importantes, que a Ribeira é também zona de leito de cheias – que saudades de as ver…das Portas do Sol – e o tsunami que se seguiu neste dia ao terramoto, entrando no Tejo com ondas de 5 metros, sentiu-se aqui matando em Lisboa milhares de pessoas no Cais das Colunas etc. Não vá acontecer à Ribeira mal restaurada de jardins, casas, pontes e praias necessárias, o mesmo que ao passadiço do Tâmega pago pelos contribuintes, queimado todos os anos. VALE DE FIGUEIRA «A igreja que é de abóbada padeceu grande ruína.» ALCANEDE «Desabou a torre de menagem do castelo matando um homem que lá estava preso». Não ficou nome deste desgraçado, nem das dezenas de milhares doutros que neste aziago dia morreram. As «Memórias Paroquiais» do padre Cardoso, contam outros casos muitos de tragédia e ruína de igrejas e casas um pouco por todo o país, concelho de Santarém e afins. Garcia de Resende, escrivão do rei, antologista do Cancioneiro Geral e poeta, vivendo em Almeirim, assistiu àquele terramoto de 1531 «Gretas, buracos, fazia/ a Terra, e se abriu./ Água e areia saía/ Que a enxofre fedia./ Isto em Almeirim se viu/ Todos, com o medo que haviam/ Deixarão casas, fazendas/ Nos campos os povos dormiam/ Em pavilhões e em tendas/ As mais das noites velando/ Com medo, a morte esperando». (in Miscelânea). Laus Deo!

 

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