«Ó campos de Santarém/ Lembranças tristes de mim/ Onde começaram sem fim/ Desesperanças sem bem/ Ó grande Beldade por quem/ Levo cheia a memória/ Com tal cuidado que tem/ Que a morte tenho por glória.» Quem escreveu estes versos e outros foi o trovador Duarte de Brito, um das dezenas que integram o «Cancioneiro Geral» (1516), antologia poética organizada por Garcia de Resende entre Almeirim e Lisboa. Poeta, cronista, desenhador d´improviso, cantor de bem timbrada voz, tangedor de alaúde, gordo, jocoso e bonhacheiro, Resende, foi o maior renascentista do seu tempo e ainda mais. Cronista do rei João II, de quem era escrivão e companheiro de jogos e diversões, deixou escrita a história do mesmo numa linguagem coloquial, viva, dando nota das várias andanças do Príncipe Perfeito – grande parte por Santarém, – desvendado aspectos lúdicos, culturais, surpreendentes, do quotidiano do severo rei das Tordesilhas que não se encontram noutro lado. Companheiro em Santarém deste Duarte de Brito, mas também de Gil Vicente de quem tece os louvores e insere num torneio poético do «Cancioneiro», onde há muitos, alguns bastante risonhos, Resende ao antologiar a poesia cortesã, da última metade do séc. XV e princípios da do seguinte, fê-lo com a consciência que estava a preservar um património cultural em risco de se perder de todo com a noite de trevas prestes a desabar sobre este país durante três séculos, anunciado com a censura e fanatismo religioso que via à sua volta no fim da vida. Gil Vicente, amigo dele e genial autor dos Autos e Farsas – grande parte compostas em Santarém e representadas um pouco por todo o Ribatejo, Almeirim, Tomar, Sardoal etc. – para escapar, o que depois de morto não conseguiu, a este anunciado manto de trevas cultural e humano, o qual via no riso e teatro em que – a mando do seu rei e rainha – , satirizava fidalgos avarentos, frades luxuriosos, clero sem vocação religiosa, rudeza do povo vivendo na miséria, corrupção, superstições e medos etc. uma emanação de Satanás ou pior. Gil Vicente e Resende, pressentindo a chegada da intolerância resolveram morrer no mesmo ano de 1536 em que aquele monstro sanguinário entrava em Portugal com as alucinadas fogueiras onde ardiam os condenados.
O «Cancioneiro Geral» é assim um epílogo de um tempo alegre, desenfadado, irónico, por vezes libertino, capaz de rir de si próprio, sabendo que a vida vai acabar mal neste vale de lágrimas, desumanidade e injustiças. Todavia, reflectindo as preocupações artísticas de grande número de poetas e trovadores, convidados para estes saraus e festas nos paços reais, como foram alguns dos maiores do séc. XVI, Bernardim, Sá de Miranda, Mestre Gil, o primeiro conde de Vimioso – este com descendentes poéticos em Santarém, Vale de Figueira etc. terra deste concelho, onde viveu um filho a quem o Poeta dedicou uma Ode, e um neto compilou editando-o, um livro dos seus, dele conde, ditos sentenciosos – , o Cancioneiro mostrando o ambiente cortesão, gozos, intrigas e traumas daquele tempo, anuncia algum gosto por ruínas, corujas fantasmáticas, piar agoirento d´aves, amores trágicos (p.ex. o de Pedro por Inês nas trovas antecipadoras de Resende etc.) o Romantismo que Garrett, daí a três séculos inventaria com as «Viagens na Minha Terra» as quais são sobremodo viagens a Santarém, com o romance de Carlos por Joaninha dos Rouxinóis no Vale e as «Folhas Caídas», muitas colhidas no dourado chão d´outono ou inverno de plátanos e choupos das Portas do Sol, onde o Duarte de Brito deixou há pouco aquela Beldade de Santarém partindo como morto. Esse Amor romântico, inspirado no de alguns poetas amorosos do Cancioneiro, preservava o que começou neste país com os medievos Trovadores e poetas provençais, com as «Cantigas» «coitas» e «morte d´amor», paralelismos, apóstrofes, exclamações e leixa-pren, de que usou o nosso rei Dinis, também pelo Paço de Santarém. Escute-se uma das trovas do Rei Trovador, homenagem singela à sua memória que nesta urbe foi agora lembrada de forma enternecedora, coisa rara «Ouço dizer um vero ditado/ Que mal e bem ao rosto vem/ É verdade, que já me sucedeu também/Numa Dona em que o vi representado/ Pois no seu rosto o Bem logo vi/ Vendo, amigos, tanto Mal em mim/ Provando eu mesmo aquele ditado». Parece-me que o bom e namorado Rei «Ai Deus é u é?», estava a lembrar-se e pedir desculpa à Rainha Santa («São rosas Senhor!»), esposa dele no intervalo das outras. Vamos ver onde pára, e o que mais diz de si – de rastos por causa daquela Beldade das Portas do Sol – , caminhando pelos verdes, verdes campos de Santarém, o quase morto por Amor, Duarte de Brito.
«Ó vida desesperada/ De dores e sentimentos/ Ó lembranças de tormentas/ Que em pesares és tornada/ Ó ventura malfadada/ Cabo de toda a crueza/ Ó memória retrocada/ Em dor de minha tristeza. Coitado do Duarte «retrocado» quem sabe por outro na memória da amada. Eu percebo-o pois já tinha lido este efeito placebo da memória amorosa trocada pela amada real em Ovídio, desterrado no Ponto pelo imperador Augusto, receoso que a dele filha Júlia se apaixonasse pelo poeta da «Arte d´Amar» que lha ensinasse. Também a vi em Petrarca por causa de Laura e em Dante por Beatriz. Um inferno pegado. Por isso, o Duarte refina em assonâncias e apóstrofes dizendo «Como aquele que sentindo/ Demonstra o mal que tem/ Assim eu, de vós partindo/ Amor da minha vida/ Vejo vir, após mim vindo/ A morte que me convida.» Em um mal vindo nunca vem só. Uma deixou-o, ou ele a ela, agora só a Morte lasciva o convida não sei p´ra onde. Por isso não pára de caminhar, afastando-se dos saudosos campos de Santarém e da pungente memória da Beldade, fugindo ao mesmo tempo da luxuriosa Dama de Negro que não cessa de o perseguir a convidá-lo d´olhar aceso e chibata em punho. Safa! «No caminho que seguia/ Minha dor nunca minguava/ Minha pena s´esforçava/ Contra mim mais, cada dia.» Pudera. Caminhava de tal jeito que espantava as feras ou lá o que era, que ele ouvia em gemidos no mato «Por ver morrer meus espantos/ Feras brutas me seguiam/ E os matos retiniam/ Com as vozes de seus prantos/ Davam as aves gritos tantos/ Que minhas mágoas aumentavam/ E em lágrimas se banhavam.». Os autores românticos do séc XIX, em prosa e verso, se lessem isto gostariam, em particular o Castilho da «Noite do Castelo», rodeado de agoiros e gemidos iguais àqueles que o Brito ouvia nos matos; o José Maria da Costa e Silva do «Espectro ou a Baronesa de Gaia» d´arrepiar; sem falar do Schiller do «Fantasma Profeta» na tradução de Herculano que também os tem bons.
Enfim, lá chegou o Brito a bom termo desta trova «Partindo de Santarém» ainda que muito combalido «A memória por tormento/ Ficará desta lembrança/ Em mim triste por que sinto/ ser meu mal sem esperança». Mal de Amor, de que o Cancioneiro está cheio, com grandes poetas como este Duarte Brito, que a ilustre leitora conhece, ou João Roiz Castel Branco e aqueles versos imortais, sobre outra partida, ainda cantados «Senhora, partem tão tristes/ Meus olhos por vós meu bem/ Que nunca tão tristes vistes/ Outros nenhuns por ninguém/ Tão tristes, tão saudosos/ Tão doentes da partida/ Da morte mais desejosos/ Cem mil vezes que da vida.» Santarém, durante séculos, assistiu no Paço Real, em festas e saraus, a representações poéticas de trovadores, grande parte fidalgos tal este Duarte, escudeiro do rei João II; Gil Vicente, dos maiores poetas daquele tempo o que muitas vezes a sua arte dramática obnubila; Garcia de Resende; Francisco de Almeida, vice-rei da Índia e o pai dele o conde Lopo de Almeida, dos Almeidas de Abrantes «por quem sempre o Tejo chora», Francisco de Portugal, casado a primeira vez com uma senhora dos Meneses e condes de Unhão desta urbe, e a segunda com uma dama dos Vilhenas, donde nasceu o célebre e camoniano poeta Manuel de Portugal, com casa em Vale de Figueira etc. Santarém é o lugar onde se trava o torneio poético sobre o lema «Cuidar e Suspirar» por Amor, disputado por amorosos poetas, com que abre o Cancioneiro de Resende. Cancioneiro, sem o qual e lirismo dos seus melhores poetas que dissecaram o sentimento amoroso, não seria possível a grande poesia do séc XVI e seguintes. Garrett não foi o menor deste secular ciclo de amantes a percorrer as ruas da urbe. Quem nunca ouviu falar no Califa das Portas do Sol, figura romântica e aristocrática de poeta errante que ainda há cem anos se refugiava naquele jardim – de que arrancaram as flores no tempo doutro homónimo delas que também se sumiu sem deixar saudades–, e ali ficava horas perdidas entregue às lembranças da mulher deixada? E aquele poeta clandestino da Bijou que servia, com doce e velado sorriso, o café com celestes, mal tocando o chão como os serafins? E os namorados, alheios ao mundo, percorrendo de mãos dadas os jardins desta cidade antiga, aspirando, com o suave perfume do amor, o das hidrângeas, ervilhas de cheiro, e rosas dos canteiros? Toujour l´amour! «Ele há tanta mulher/ Mas por que razão ou fantasia/ Entre tantas, só uma a nossa simpatia/ Distingue, escolhe, e quer?» Ah, como foi diferente o Amor que se tem, em Santarém!
