Médico pediatra aposentado e autor com uma vida de intervenção cívica e cultural, José Bento Sampaio acaba de publicar o livro de poesia Marés, onde revisita memórias, afectos e inquietações. Com uma escrita livre e profundamente humanista, o autor natural de Almeirim reflete sobre o 25 de Abril, a justiça social, o envelhecimento e o amor. Ao Correio do Ribatejo, fala da origem deste livro escrito entre marés e da força que ainda encontra na palavra.
“Marés” é descrito como um livro de percurso, memórias e afectos. O que o levou a reunir estes poemas agora e dar-lhes esta forma publicada?
Escrevo desde a minha juventude. Publiquei artigos em jornais, sobretudo jornais de Almeirim, mas não só. A pulsão de escrever, a par do exercício da profissão de médico e da intervenção social, cívico-política, sempre me acompanhou. A escrita de um livro é uma tarefa trabalhosa, solitária e exige um ambiente apropriado. Compreendo bem os escritores profissionais que dizem da necessidade de isolamento em qualquer lugar do mundo para escrever. Só, ocasionalmente, consegui as condições necessárias, introspetivas, para arrumar pensamentos, poemas ou prosas, na forma de livro. (O livro Marés é quase todo produzido numa linda região da Normandia onde permaneci cerca de quatro meses a acompanhar a evolução clínica de um filho, bem longe da minha rotina diária). A minha atividade principal sempre foi a de médico-pediatra e a minha carreira profissional é um espelho dessa dedicação.
Este é já o seu sétimo livro. Que papel tem a escrita — e em particular a poesia — na sua vida, enquanto médico, cidadão e homem atento ao mundo?
A escrita, como outras atividades, é um complemento integrante e necessário ao meu bem-estar psíquico e físico. O exemplo do médico-escritor é relativamente comum. Os casos de Fernando Namora e Miguel Torga serão os mais conhecidos, mas há muitos outros… Fernando Namora está na origem da Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos (SOPEAM) na qual sou filiado. O Professor Abel Salazar proferiu uma frase que ficou célebre e que dizia o seguinte: “O médico que só sabe medicina nem medicina sabe”. Quer isto dizer que o médico tem sempre de olhar para a pessoa que está doente e não só para a doença. A relação humana, empática, entre o médico e a pessoa doente é fundamental para um processo de cura. Apesar de já ter vários livros em prosa e um de teatro, gosto da escrita poética, sobretudo da poesia livre, não obrigada a grandes espartilhos formais. O escritor Domingos Lobo insere-me no amplo espaço de intervenção cívico-cultural do neorrealismo. Talvez tenha razão porque escrevo, essencialmente, a partir dos factos que observo e das vivências que tenho.
A obra passa por temas como a justiça social, o 25 de Abril, o amor, o envelhecimento e a música. Como organizou esta diversidade em capítulos e o que quis transmitir com essa estrutura?
Desde o período de estudante de medicina que tive um grande engajamento político na luta contra a Ditadura de forma organizada e partidária. Pelo Distrito de Santarém participei activamente na organização do Congresso da Oposição Democrática em Aveiro, em Abril de 1973, e fui candidato da CDE pelo círculo eleitoral de Santarém em Outubro desse mesmo ano. Infelizmente dos 12 candidatos efectivos e suplentes só se encontram três vivos: eu, o João Luís Madeira Lopes e o José Alves Pereira. À luta contra as injustiças, repressão, falta de liberdade e desigualdades sociais, associava-se na época a guerra colonial. Hoje, apesar de todas as conquistas que a Revolução dos Cravos trouxe ao povo português e dum mundo em constante desenvolvimento tecnológico, é gritante o aumento das desigualdades sociais com a riqueza produzida tão injustamente distribuída. As conquistas de abril, a alegria e a esperança trazidas estão sendo postas em causa. Por isso, é muito importante continuarmos a lutar pelos valores de abril e relevar sempre o dia 25 de abril e o homem decisivo que chefiou a coluna militar saída de Santarém, Salgueiro Maia. A estrutura do livro reflete o meu percurso de vida. Atualmente, a minha postura passa pela necessidade de um envelhecimento ativo e de qualidade. As situações de pobreza terão de ter respostas políticas concertadas, adequadas à sua erradicação, única forma de respeito pela dignidade do ser humano. As Universidades de terceira idade como a UTIS em Santarém, ou Movimentos como o MURPI (Movimento Unitário de Reformados, Pensionistas e Idosos) desempenham um papel essencial, cada qual com suas características e contributos no bem-estar das pessoas idosas. Aprendi os primeiros acordes musicais aos 70 anos na UTIS, uma paixão sempre adiada por outros afazeres.
Uma parte do livro é dedicada aos poetas populares de Almeirim. Que memórias guarda desse convívio e porque sentiu necessidade de prestar-lhes homenagem?
Tive a sorte de ainda conviver com uma geração espantosa de poetas populares de Almeirim, gente muito simples, com profissões muito modestas, com a escolaridade básica, mas de grande riqueza cultural. Eram reconhecidos pelas frequentes vitórias alcançadas em concursos nacionais de poesia e charadismo. A minha homenagem não é só justíssima e oportuna, mas é também o meu preito de gratidão por tudo o que deles recebi e contribuiu para me tornar no homem que hoje sou.
O que gostaria que os leitores de “Marés” levassem consigo depois da leitura?
Que levassem uma nota de positivismo, que a vida é um presente a bem desfrutar, que é sempre tempo de abraçar causas e paixões e tempo de aprender, aprender sempre… Que nunca desistam dos seus sonhos! O título “Marés” é uma alegoria aos altos e baixos da vida. Ficaria feliz se o livro ajudasse alguém a ter força para superar algumas dificuldades que sempre acontecem.