Muitos dos nossos mais inspirados escritores – entre os quais Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Almeida Garrett, Brito Camacho, Sarah Beirão, Alves Redol, Manuel da Fonseca, Raul Brandão e Soeiro Pereira Gomes – plasmam na beleza indescritível das suas obras páginas encantadoras de descrições etnográficas, que constituem contributos valiosos para o conhecimento das nossas tradições, a par da ilustração do carácter e do temperamento das nossas gentes.

Abordando as mais diversas temáticas, estes categorizados escritores descreveram com rigor e pormenor as ambiências onde decorriam as acções narradas, bem assim como definiram o carácter das personagens que assumiam o protagonismo de cada momento, quer se tratasse de gente ilustre ou do povo mais singelo.

Como é natural, dadas as dificuldades de deslocação e atenta a escassez de informação sobre o mundo mais avançado, as cenas decorriam quase sempre em espaços muito restritos, em regra a ambiência de uma própria família ou a vivência de uma pequena comunidade.

Uma ou outra obra, como é o caso de “A Cidade e as Serras”, de Eça de Queirós, estabelecia já uma ligação entre o interior do país – as serras – e a cidade – Paris – mas sempre mantendo a referência aos hábitos e costumes urbanos, por contraposição com a maneira de ser e de agir da gente da aldeia. Sublimes estas páginas de Eça, do melhor que a língua pátria tem proporcionado!

Mas, obviamente, em todos estes escritores encontramos basta informação sobre a sua época, que, ao cabo e ao resto, tanto interessa aos investigadores etno-folcloristas de hoje, pois, a realidade de

então corresponde à última metade do século XIX e aos primórdios do século passado, tempo retratado pela maioria dos grupos de folclore fundados em meados do século XX.

E as obras de Alves Redol, de Soeiro Pereira Gomes e de Manuel da Fonseca? Sublimes! A Fanga, Os Avieiros, Gaibéus, Esteiros, O Fogo e as Cinzas, são, efectivamente, preciosidades, valendo, nos casos vertentes, a circunstância de os próprios escritores terem tido a preocupação de se integrarem nos ambientes descritos para melhor se aperceberem da sua realidade, e de, assim, os descreverem com realismo e fidedignidade. Este é, indubitavelmente, o melhor contributo que nos poderiam prestar.

O próprio Almeida Garrett, mau grado a sua ilustre ascendência familiar e as honrosas ocupações políticas e culturais de que viria a desincumbir-se ao longo de uma vida tão intensa, não desdenhou mergulhar na mundividência popular, e apreender a sua realidade e a valia da sua cultura, expressa esta no seu importante “Romanceiro”, e aquela em romances, como é o caso das interessantes “Viagens na Minha Terra”.

Aliás, para ilustrar esta referência ouso reproduzir uma citação de um excerto das “Viagens” onde se percebe como Garrett caracterizava os campinos da Borda-d’água e os marítimos ílhavos: “- A força é que se fala! – tornou o campino, para estabelecer a questão em terreno que lhe convinha: A força é que se fala: um home do campo que se deita ali à cernelha de um toiro que uma companhia inteira de varinos lhe não pegava, com perdão dos senhores, pelo rabo!… (…) – Então, (retorquiu o orador Ílhavo) agora como é de força, quero eu saber, e estes senhores que o digam, qual é que tem mais força, se é um toiro ou se é o mar.

– Essa agora!…

– Queríamos saber.

– É o mar.

– Pois, nós que brigamos com o mar, oito e dez dias a fio numa tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um toiro, qual é que tem mais força?

Os campinos ficaram cabisbaixos; o público, imparcial, aplaudiu por esta vez a oposição, e o Vouga triunfou sobre o Tejo.” (in Viagens na Minha Terra, edição de Moderna Editorial Lavores, 2008, pág. 44).

Do mesmo modo, reler Teixeira de Pascoaes é um pouco como regressarmos em visita a um monumento histórico que pelo seu significado e pelo carácter da sua representação nos marcou e constitui, assim, uma referência tão importante.

Muitas vezes, a propósito do mau uso do termo folclore, nomeadamente pelas classes política e desportiva, recordo um conjunto de considerações abonatórias do próprio folclore e do que ele simboliza na abordagem à nossa matriz identitária, numa leitura dessa obra magistral que é a “Arte de Ser Português”.

Pois, revisitar Pascoaes, particularmente nesta obra, é como enchermos a alma de portugalidade, e sentirmos orgulho na nossa pátria e, sobretudo, na nossa cultura tradicional. A páginas tantas desta obra-prima da nossa literatura, escreve Pascoaes – “Se o português, como indivíduo, herda as qualidades de família, herda igualmente as da sua raça, porque o homem não cabe dentro dos seus limites individuais”.

Mais adiante, refere ainda o Autor que “O português participa também da herança étnica, histórica ou tradicional, adquirindo, assim, uma segunda vida que, por mais vasta, abrange e domina a sua existência de indivíduo”.

Muitos paralelismos podemos estabelecer entre a conceptualização de folclore e de etnografia e muitas afirmações de Pascoaes nesta magnífica obra de exaltação aos valores pátrios que acentuam o nosso carácter como povo secular. E se não, atentemos nesta outra opinião do douto autor amarantino: “O carácter é a expressão total das qualidades, conservadas e transmitidas pela herança e tradição, que definem uma raça”.

E a fonte inspiradora de saberes e de sentimentos populares que é o povo, não poderia passar despercebida ao poeta e escritor da região do Tâmega, que se lhe refere nestes termos: “… a linguagem popular é mais irmã do Verbo divino que a linguagem dos letrados. É a voz do sangue e da terra”.

E as suas pitorescas expressões tão cheias das próprias coisas que traduzem! Como tudo vive nas suas frases! Como as videiras choram, quando as ferem; como as flores riem no mês de Abril; como as névoas avoam da barra, pelo Dezembro!”.

Indo ao encontro de outras obras de Teixeira de Pascoaes, como “O Bailado” ou “A Beira num Relâmpago”, reforçaríamos as referências do amor do escritor pelas coisas da nossa pátria e do nosso povo, que exalta sem demagogias nem efeitos bacocos, exaltando-lhe as virtudes, mas, não escondendo os defeitos, porque um povo, qualquer povo, reúne as duas vertentes que moldam o seu carácter.

Enfim, muito nos apraz a grata circunstância de encontrarmos aliados da nossa causa folclórica entre os príncipes das nossas letras.

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