Foi na rádio que se ouviram as senhas que secretamente deram o sinal para a saída das tropas dos quartéis na madrugada do dia 25 de Abril de 1974. Por volta das 22.55 horas do dia 24, João Paulo Diniz, na antena dos Emissores Associados de Lisboa, pôs no ar “E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, música vencedora do Festival da Canção desse ano, a primeira senha que desencadeou a operação militar que resultou na Revolução dos Cravos. Meia hora depois, na Rádio Renascença, seria “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso, a confirmar o arranque das operações que colocaram um ponto final a quase meio século de ditadura.
João Paulo Diniz, o jornalista que lançou na rádio a senha que desencadeou a operação militar que resultou na Revolução dos Cravos, foi o convidado de uma tertúlia que decorreu na tarde da passada sexta-feira, dia 21, na Sala de Leitura Bernardo Santareno.
Neste encontro, organizado por Susana Coimbra, docente do ISLA de Santarém e colaboradora do Correio do Ribatejo, João Paulo Diniz contou todos os pormenores que o levaram a lançar, às 22:55 do dia 24 de Abril, a primeira senha escolhida pelo Movimento das Forças Armadas para o desencadear da operação militar contra o regime.
“Faltam cinco minutos para as 23 horas, convosco Paulo de Carvalho com o Eurofestival de 74: ‘E Depois do Adeus’”. Foram estas as palavras utilizadas por João Paulo Diniz, antes de colocar no ar a canção que estava combinada como primeira senha para o desencadear da operação militar nos derradeiros instantes daquela noite de 24 de Abril de 1974.
“Tinha uma colaboração no Rádio Clube Português e apareceu-me lá, a meio da tarde, um sujeito. Chamaram-me à porta e ele disse-me: ‘Estás bom? Não te lembras de mim?’. E eu, que sou um bocado despassarado para fixar nomes e rostos, disse que de facto não me lembrava. ‘Estivemos na Guiné, não te lembras?’. Era o Major José Costa Martins, da Força Aérea, que sozinho tomou o aeroporto de Lisboa no 25 de Abril. Disse-me que tinha estado em Israel e que tinha uns discos muitos giros para me mostrar e fomos até ao carro dele.
Entrei no carro e ele diz-me: ‘olha, tenho que te dizer a verdade. Estou aqui mandatado pelo movimento militar, vamos fazer uma revolução, vamos derrubar o governo, vamos acabar com a guerra colonial, vamos criar eleições democraticamente para todo o povo português, instituições democráticas, livres, e precisamos da tua colaboração’”, contou o jornalista.
Depois de muito ter estranhado o pedido, João Paulo Diniz recordou que, na altura, disse ao Major: “Desculpe lá mas eu estou muito ocupado. Você naturalmente é da PIDE e está aqui a chatear-me a cabeça e eu tenho mais fazer”.
Mas, como mais tarde se veio a comprovar, a história tinha fundamento: “combinámos no centro comercial Apolo 70, em Lisboa. Quando saí da rádio passei à porta do Apolo, onde estavam o José Costa Martins e o Otelo Saraiva de Carvalho e pensei ‘olha que engraçado, isto faz sentido’. Fui ter com eles”.
“Explicou-me [Otelo Saraiva de Carvalho] que pretendia que passasse, a cinco minutos das 23h00, de 24 para 25 de Abril, uma cantiga que era, no fundo, um alerta para as unidades da região militar da grande Lisboa”, recordou.
Inicialmente, Otelo de Saraiva de Carvalho propôs que a senha fosse uma música de Zeca Afonso, ao que o jornalista respondeu: “Estás a brincar? O Zeca Afonso? Nem pensar nisso, está proibidíssimo pela censura. E foi então que sugeri uma cantiga que não despertava suspeitas nenhumas, estava sempre a passar na rádio que era ‘E depois do adeus’, do Paulo de Carvalho”.
Para João Paulo Diniz, então com 25 anos, não houve dúvidas. Se corresse mal
“era um azar terrível, uma chatice em todos os aspectos”, mas o radialista confiava no movimento, tinha um desejo profundo que acabasse a guerra em África e que pudesse viver num país sem ditadura e com eleições livres.
De um abraço a Otelo Saraiva de Carvalho, que já não via desde 1972, na Guiné, nasceu a responsabilidade de transmitir o primeiro sinal da revolução e foi com “E depois do Adeus “, que fez arrancar as tropas que ajudaram na despedida à ditadura.
Fez a tropa com 21 anos e poucos meses depois foi mandado para a Guiné. Esteve dois anos em Bissau na rádio das Forças Armadas: “Tive sorte, mas vi coisas que preferia não ter visto”, afirmou.
Presente nesta Tertúlia, que foi moderada pelo director do Jornal Correio do Ribatejo, João Paulo Narciso, o coronel do Exército na reforma e ex-capitão de Abril, Joaquim Correia Bernardo, que estava integrado na Escola Prática de Cavalaria de Santarém de onde saiu a coluna militar comandada por Salgueiro Maia, recordou os momentos de ansiedade que se viveram:
“Nos quartos, prepararam-se os rádios para sintonizar os Emissores Associados de Lisboa (EAL), onde, se tudo estivesse a “correr bem”, João Paulo Diniz iria pôr a tocar o ‘E Depois do Adeus’, de Paulo de Carvalho, senha da operação Fim Regime” contou.
Os EAL transmitem a canção e é o frenesim: a senha significava que, até àquele momento, nada obstava ao avanço da operação em todo o país.
“A voz de João Paulo Diniz foi uma espécie de Cálice de Vinho do Porto, que acalmou os nervos, deu alento, e nos tranquilizou”, disse Correia Bernardo.
A alvorada de 25 seria diferente de todas as outras até então vividas: o cinzentismo ditatorial daria lugar ao vibrante vermelho de cravos que, daí em diante, simbolizariam o triunfo da liberdade.
O interesse pela rádio começou bem cedo e aos 13 já tentava fazer audições, aos 16 começou a trabalhar na Rádio Peninsular. Posteriormente, colaborou no Rádio Clube e foi para Londres, onde esteve seis anos na BBC: “Foi das melhores experiências da minha vida”, recorda.
Ao longo destes anos, entrevistou nomes que ficam para sempre na história. Destaca o encontro com Nelson Mandela: “Ele era espantoso, um homem inteligentíssimo, eu estava ali com muito respeito por ele”, contou.
“Fui a Joanesburgo expressamente para entrevistar Mandela. Encontrei um homem invulgar, um fantástico ser humano. Durante a entrevista, não ouvi uma palavra de ódio ou de rancor para com aqueles que tão mal o trataram.
E Mandela esteve preso 27 anos, pela sua acção política… Depois de libertado regressou à luta política, veio a ser presidente da África do Sul durante cinco anos e ainda Prémio Nobel
da Paz em 1993. O meu encontro com Nelson Mandela é um marco na minha vida pessoal e profissional”, confessou.
João Paulo Diniz, 74 anos, uma das vozes radiofónicas de referência e rosto do programa “Histórias da Rádio” na RTP Memória, trabalhou cerca de 30 anos na Antena 1, passou pela RTP, SIC e TVI e dirigiu a Rádio Alfa, em Paris.
Locutor e realizador de rádio, o também jornalista arrecadou o prémio Imprensa em 1969 com o programa “1-8-0” e foi distinguido com o prémio Igrejas Caeiro, na área da rádio, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores.
Filipe Mendes