A dança do fandango assumiu tanta relevância no contexto das expressões coreográficas populares portuguesas que levou os especialistas na matéria, ou alguns dos mais conceituados autores que se debruçaram sobre o património nacional, a referir-se-lhe nesses termos. Só há semelhança com os pauliteiros, que, como se sabe, são os homens que participam nas danças dos paulitos no nordeste transmontano. Sendo mais famosos os de Miranda do Douro.

Para este facto, certamente, muito terá contribuído o carácter de individualismo que foi atribuído à dança do fandango na região da borda-d’água ribatejana, onde esta dança assumiu a feição de despique entre dois bailadores, os quais numa sucessão de passos quantas vezes fruto de inspiração momentânea, tentavam superar a destreza e a arte do outro bailador, numa tentativa de captar sobre si as atenções de quem assistia a esse desafio.

Fossem homens ou mulheres, como é óbvio, pois, não restam muitas dúvidas em relação ao aspecto competitivo que está associado à interpretação desta variante do fandango, pois, quem o baile fá-lo não apenas para deleite próprio, mas, sobretudo, para impressionar quem o aprecia. Como em quase tudo na vida, vivemos em constante competição uns com os outros, querendo sempre demonstrar que somos os melhores, os mais competentes, os mais capazes, os mais empenhados, os mais experientes, enfim, os mais que tudo do que conseguirmos e do que não conseguirmos fazer.

Numa ambiência rural, em que os horizontes eram tão curtos, as situações mais triviais adquiriam uma importância expressiva, pelo que o simples facto de um homem ser bom bailador de fandango era já motivo para desmedido comprazimento, constituindo trunfo a favor do qualificado bailador.

Como é natural este espírito não se confinava apenas à tentativa de impressionar ou até de seduzir o elemento do sexo oposto, a rapariga por quem, eventualmente, o coração batesse mais forte, embora este não fosse um aspecto despiciendo.

Agora o que não será legítimo omitir-se é que o fandango, ou, para ser mais correcto, a arte de bailar o fandango, era um argumento que os bons bailadores não deixavam de esgrimir a seu favor em tempo de contenda ou de afirmação pessoal.

Tarde fora, após um dia de intenso e árduo trabalho nas terras, os homens juntavam-se na taberna para beberem uns copos que retemperassem as energias, para jogarem às cartas ou ao chinquilho e, claro, para meter a conversa em dia. Às vezes, com o vinho mal arrumado, como era costume dizer-se, travavam-se de razões, e invariavelmente, o espírito competitivo surgia à flor da pele.

Ou porque eram mais possantes no trabalho, ou porque conheciam melhor a técnica de alguns trabalhos mais específicos, como era o caso da poda ou da enxertia, ou porque eram melhores jogadores do chinquilho, ou porque não tinham quem os vencesse numa sueca ou à bisca de nove, enfim, por quase tudo e por nada se discutia sobre quem era melhor em qualquer coisa.

Muitas vezes até nas cantigas e nas danças surgia esta acesa competição. Ou porque fulano cantava melhor a desgarrada do que os restantes, ou porque sicrano batia melhor o fandango do que os demais, e, claro, às vezes, travavam-se de razões.

De tal modo que as tabernas, únicos espaços sociais da maioria das aldeias portuguesas, onde era interdita, ou mal tolerada, a presença da mulher, foram cenário de muitos destes desafios. E aqui, claro, quem batesse melhor o fandango atingia uma posição de relevo em relação aos outros bailadores, cumprindo- se, também neste caso, o espírito competitivo da dança, sendo idolatrado aquele que aceitasse competir, e vencesse, a compita com bailadores afamados de outras aldeias.

É claro que este espírito não faz sentido na maioria dos locais onde o fandango era assumido como uma dança recreativa, na qual a mulher tinha participação activa e que nem se revestia de um assumido carácter de despique, sendo que em muitas regiões do país era dançado em roda ou em quadra, diluindo-se, nesta situação, o aspecto individualista do baile.

Pois, já longe vai o tempo em que ciosamente se defendia que o fandango era dança exclusiva do Ribatejo, assim com o vira era minhoto e o corridinho algarvio.

Nada mais incorrecto. As modas que os nossos antepassados dançavam, no terreiro ou nas casas da brincadeira, eram quase sempre aculturadas junto dos ranchos de trabalhadores de outras regiões, que ciclicamente passavam umas temporadas nas terras da Borda d’Água, ou outras vezes aprendidas pelos criados das casas mais abastadas, as quais tinham acesso a outras modas e a outro tipo de danças mais burguesas.

É claro que quando estas modas importadas chegavam ao povo eram impregnadas pela sua sensibilidade, pelo seu carácter, mais dinâmico ou mais sóbrio, e tornavam-na coisa sua, como se sempre a tivessem dançado espontaneamente entre si.

Não esqueçamos que o próprio Fandango é, supostamente, oriundo da Galiza, a partir de onde irradiou para todo o território continental ibérico, assumindo expressões musicais e coreográficas distintas, como é bem notório.

Porém, o Fandango da Borda d’Água parece divergir um pouco da trajectória das migrações sazonais, afigurando-se-nos que faz mais sentido pesquisar a sua origem na Lisboa dos finais do século XIX, onde constituiu uma moda avassaladora, destronando o próprio fado, que originalmente era uma dança, como nos ensina Tinop, na sua História do Fado.

Por esta época também os campinos ribatejanos passavam muitas temporadas em Lisboa, onde guardavam os toiros nas “hortas”, conduzindo-os em dias de toirada para as praças do Salitre, do Campo de Santana ou, mais recentemente, do Campo Pequeno.

A maioria dos dias entre o Dia de Páscoa e o final de Setembro eram passados nas tabernas das hortas, onde conviviam com os alfacinhas mais castiços.

Já alguns dos viajantes estrangeiros que andavam pelo nosso país – quase apenas confinados a Lisboa e arredores – nos davam conta nos seus livros de viagem da dança do fandango, como algo de lascivo e imoral, pelos requebros do corpo e de alguns passes dos bailadores.

Pedro Homem de Melo, sensível à arte dos bailadores de Fandango – que, de facto, a dança exige atributos técnicos e artísticos especiais, não sendo fandanguista, ou fandangueiro, quem quer – escreveu um sugestivo poema em que enaltecia a figura garbosa e altiva do bailador do fandango, o qual, interpretado por Amália Rodrigues saltou das páginas do livro para o conhecimento popular, que deste modo contribuiu para valorizar a arte deste bailador tradicional português.

No âmbito do Festival Celestino Graça – A Festa das Artes e das Tradições Populares do Mundo terá lugar no dia 7 de Setembro, pelas 11 horas, no Largo do Seminário, mais uma edição do Fandangando, uma mostra de Fandangos aberta a todos os que queiram dar um pezinho de dança. Vamos nisso?

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