No Dia Mundial da Poesia, que se assinalou esta sexta-feira, dia 21 de Março, João Sassetti leva ao palco do Centro Cultural do Cartaxo a intensidade visceral de Ode Marítima, de Fernando Pessoa, num espectáculo onde a palavra e a música se fundem para dar corpo à força do poema. O actor e declamador mergulha na obra maior de Álvaro de Campos, acompanhado pelas sonoridades de Selva Kalú e Teresa Corrado, num diálogo de improviso e emoção. Em entrevista ao Correio do Ribatejo, revela os desafios da interpretação, a entrega absoluta ao texto e a importância da poesia na sociedade actual.

Ode Marítima é um dos poemas mais intensos e viscerais de Fernando Pessoa. Como foi o processo de preparação para dar voz a esta obra no palco?

Uma autêntica viagem, o desafio mais complexo que me passou pelas mãos. Para mim, é um dos textos mais desafiantes da poesia portuguesa, o que tornou todo o processo de preparação e criação moroso.

Todo o estudo do poema mostrou ser uma verdadeira “aventura”. Perceber o que Álvaro de Campos tenciona transmitir em cada verso, cada intenção e sentimento, levou o seu tempo. Para conseguir dar a intensidade necessária ao poema, foram obrigatórias muitas horas de leitura, divisão de texto, questionamento e reflexão.

Após este processo “de mesa”, partimos para a escolha do que seria o suporte musical, tendo sempre em conta a vertente marítima, alucinada e visceral que o poema nos transmite, nunca fugindo ao objetivo de realçar a intensidade necessária a cada palavra dita.

Foi um processo meticuloso com uma grande envolvência emocional. No seu todo, uma viagem desafiante, embora extremamente prazerosa.

A leitura integral deste poema exige não só uma interpretação cuidada, mas também um grande envolvimento emocional. Como gere essa intensidade durante a performance?

Interpretar a Ode Marítima é dar voz a uma viagem louca pelo imaginário das viagens veleiras, pelo abismo da alma e pela crueldade no delírio. Gerir emocionalmente o poema não é tarefa fácil. Existem momentos de extremos, em que o delírio chega ao seu pico máximo, e, em seguida, momentos de reflexão muito fechados, o cair na realidade. Para um ator, isto é desafiante. Conseguir dar as intenções necessárias no momento certo e gerir emocionalmente todo este psiquismo é um processo complexo. É toda uma entrega total ao texto através do corpo e espírito. Tudo isto tem de ser sentido, comovido, provocador e alucinado, uma viagem em palco ao abismo da alma.

A sua interpretação será acompanhada pela música de Selva Kalú e Teresa Corrado. Como foi pensado esse diálogo entre a palavra e a música? 

Guiámo-nos sempre pela intenção de utilizar uma base musical com um “ar marítimo” mas, ao mesmo tempo, improvisado, sem base harmónica ou melódica definida, apenas conduzida pela intenção dada pela voz e pelo que o poema pretende a cada momento. A escolha da Selva e da Teresa deve-se a essa mesma ideia, duas instrumentistas com bastante experiência na área da improvisação e com uma capacidade enorme de fazer espelhar o sentido da palavra através da música. Apostámos num diálogo entre a palavra, o saxofone, a guitarra, a flauta e a voz da Selva Kalú, e o tambor e a concertina do sul de Itália da Teresa Corrado. Criou-se uma simbiose bastante interessante, um diálogo emotivo e provocador, em que as duas instrumentistas acabam por ser o motor de todo este espetáculo.

Há algum momento ou passagem de Ode Marítima que o emocione ou desafie particularmente enquanto intérprete?

A Ode Marítima no seu todo emociona-me, é difícil escolher um momento em específico que eu possa dizer que me emocione mais. Quanto ao desafio enquanto intérprete, existem vários momentos do poema que confesso serem extremamente complexos e desafiantes.

É um poema que me diz muito, tem uma carga emocional muito grande, acompanha-me desde adolescente, diria que se tornou viciante. Tento desfrutar e sentir o texto por inteiro.

O Dia Mundial da Poesia é uma celebração da palavra dita e escrita. Enquanto artista, que papel acredita que a poesia ainda desempenha na sociedade atual?  

Acredito que a poesia continua a ter a sua presença marcada na sociedade e a ser o espelho da alma, o mecanismo que permite ao humano exprimir por palavras aquilo que, por vezes, não é possível ser-se dito. Terá sempre a sua beleza, o seu motivo, seja qual for a geração. Na poesia, existe a possibilidade da comunicação, da união com o outro. Citando Ferlinghetti: “A poesia é a distância mais curta entre duas pessoas”. 

Tendo a ser positivo e a considerar que, para muitos, a poesia continua a ter a importância devida. Afinal, o amor, a felicidade, o sofrimento, a ilusão, todas as emoções que um ser humano experimenta, estão presentes nela. Será sempre um porto de abrigo e um farol para quem busca a explicação do que lhe vai na alma. 

Um poema que nunca o abandona?

“De Profundis Amamus”, de Mário Cesariny

Um livro que levaria para uma ilha deserta?  

Teriam mesmo de ser dois: “Pena Capital”, de Mário Cesariny, e “Entre a Poesia, o Mar e o Amor”, da minha autoria.

Uma viagem memorável?

Amesterdão, 2024

Um concerto inesquecível?  

Carlos Bica Trio “Azul”, Festa do Avante 2017

Se pudesse ter uma conversa com um poeta, qual escolheria?

Mário Cesariny

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