Maria de Fátima Reis – Professora Associada com Agregação da Faculdade de Letras de Lisboa, Secretária-Geral da Academia Portuguesa da História e
Membro do Conselho Científico do Centro de Investigação Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão

O Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão, que se jubilou como Professor Catedrático do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1995, assim culminando uma carreira académica de elevado prestígio, desempenhou altas funções em diversas circunstâncias, ocupando o mais elevado cargo universitário – Reitor da Universidade de Lisboa (1973-1974). Como investigador construiu uma Obra de referência no panorama historiográfico português, com estudos inovadores e incontornáveis em diversos domínios da história política, social e cultural, deixando um monumento raro na escrita da história recente – uma História de Portugal de sua inteira autoria, em 18 volumes.

Professor, homem de cultura e cidadão empenhado, Joaquim Veríssimo Serrão é um scalabitano que sempre amou a sua terra, a ela tendo dedicado a sua reflexão histórica e deixado, em decidido gesto de generosidade, o espólio bibliográfico e documental que reuniu ao longo de uma vida de intenso labor e relações internacionais.

Nascido em Santarém (1925), licenciado em Ciências Históricas e Filosóficas pela Universidade de Coimbra (1948), leitor de Cultura Portuguesa na Universidade de Toulouse (1950-1960), Doutor por essa instituição (1953) e pela Universidade de Coimbra (1957), director do Centro Cultural Português de Paris (1967-1972), professor da Faculdade de Letras de Lisboa em princípios da década de 60, regressando em 1972 e depois em 1984, presidiu à Academia Portuguesa da História entre 1975 e 2006. Membro de diversas academias portuguesas e estrangeiras, a notabilidade da sua acção foi reconhecida através de um conjunto significativo de distinções honoríficas, entre as quais: Comendador da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul (Brasil, 1967), Medalha de Ouro da Cidade de Santarém (1968), Comendador da Ordem da Instrução Pública (Portugal, 1972), Doutor Honoris Causa pela Universidade Paul Valéry, Montpellier (1974), Grã-Cruz da Ordem do Mérito Civil (Espanha, 1990), Grã- Cruz da Ordem Civil de Afonso X o Sábio (Espanha, 1995), Doutor Honoris Causa pela Universidade Complutense de Madrid (1995), Prémio Príncipe das Astúrias em Ciências Sociais (Espanha, 1995), Grã-Cruz da Ordem Militar de Santiago de Espada (2006), Medalha Honorífica da Universidade de Coimbra (2007) Professor Honoris Causa do Instituto Politécnico de Santarém (2011), do qual foi presidente da Comissão Instaladora (1980 a 1984). Premiado em 1955 (Prémio Alexandre Herculano), em 1965 (Prémio D. João II) e em 1992 (Prémio Aboim Sande Lemos “Identidade Portuguesa”), as centenas de títulos publicados cobrem temas diversos da história de Portugal e da Ibero-América, designadamente da época moderna.

Afastado da Universidade, na sequência da Revolução de Abril de 1974, amargurado, na Academia Portuguesa da História encontrou a força e paixão para a transformação deste organismo de cultura e saber, projectando (a História de) Portugal no estrangeiro. Nesse enquadramento de alento e interpelação estabeleceu redes de trabalho muito duradouras com as academias da ibero-américa, assim construindo, com as suas qualidades diplomáticas e reputação académica, nomeadamente no meio universitário e intelectual brasileiro e espanhol, uma gramática da hospitalidade para o saber-fazer e fazer-saber. Optou, porém, por regressar plenamente à vida académica para ainda marcar o Departamento de História da Faculdade de Letras de Lisboa.

Homem de afectos e Amigo dedicado, como expressou em relação a Marcelo Caetano, publicando as cartas trocadas no exílio, a sua Obra evidencia uma admiração por certas figuras e uma preocupação constante pelo rigor dos factos e pela prova histórica com a exibição das fontes; na certeza de que a história só se faz com documentos, mas que existe mais do que um modo de os interpretar. Da análise de cronistas, como Fernão Lopes, Rui de Pina e Garcia de Resende, a humanistas, como João de Barros, André de Resende, Damião de Góis, António de Gouveia e Diogo Teive, e a Historiadores como Alexandre Herculano, o caminho é claro na sensibilidade que vinha já da dissertação de licenciatura com o título “Sentido da História. Breve Introdução a um Problema” – a percepção historiográfica na expressão epistemológica e na exigência metodológica da atitude crítica. A este trabalho, que veio a ser aproveitado para a obra “História e Conhecimento Histórico” (1968), há que acrescentar os livros “História Breve da Historiografia” (1962) e “Historiografia Portuguesa” (3 vols., 1972-1974), como evidência do tópico da teoria e metodologia da história na sua extensa e diversificada bibliografia. Beneficiando dos novos problemas da história e dos debates científicos que atravessavam o espaço universitário, Joaquim Veríssimo Serrão reconhece a influência de vários historiadores franceses com quem conviveu aquando da sua estada em Toulouse, designadamente, Frédéric Mauro, “amigo fraterno”, e Léon Bourdon, “mestre no campo da pesquisa histórica”.

Não permite a debilidade dos anos que continuemos a usufruir do seu labor de investigação; mas há que verificar que o seu legado, com linhas de estudo que vão da história local ao Brasil colonial, deixou uma marca indelével na historiografia e na cultura portuguesa. Se Santarém lhe deu a vivência e a escala de observação, que outros haviam de seguir, no entendimento histórico das assimetrias regionais e das desigualdades sociais, o seu olhar abrangeu o espaço alargado da expansão e do império português e ainda das relações culturais europeias. Não pode o tempo erodir o seu impacto na formação de várias gerações de investigadores, ultrapassando mesmo as fronteiras portuguesas, mormente na marca profunda que deixou no paradigma de interpretação e de intervenção. A sua erudição histórica e a vasta cultura, decisiva na execução da sua Obra e nas alocuções públicas, se pode ser entendida nos marcos do seu tempo, deve-se ao seu talento literário e à palavra pronta com que sempre deliciou os ouvintes. Orador brilhante, o seu entusiasmo contagiante que muitos testemunharam, sempre visível no diálogo construtivo com personalidades e instituições, granjeou-lhe grande respeitabilidade intelectual. Muitos beneficiaram da aliciante troca de ideias, cujo ânimo e vivacidade levou até a debates na percepção do passado. Muitas foram já as ocasiões em que se recordou o percurso académico e cívico de Joaquim Veríssimo Serrão, bem como a sua personalidade, encontrando eu agora nas palavras de Cícero o sentido continuador do seu trabalho: “a história é testemunha do passado, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, anunciadora dos tempos antigos”.

Aplaudir um Amigo muito querido, pelo seu 95.º aniversário, falar das suas qualidades e expressar uma vez mais o meu afecto e admiração, não será excessivo. Nas muitas horas de conversa, na sua Santarém, aquando do meu doutoramento, firmou-se uma profunda Amizade, em que iam desfilando histórias na primeira pessoa, de que guardo memórias de momentos prazerosos. Na sua Biblioteca, bálsamo e partilha para os amigos, a conversa, só interrompida para buscar na estante um livro de sugestivo caminho, sempre foi sincera, sem artifícios, transparente nos significados e certeira nas críticas e sugestões. A magnificência das encadernações e a abundância de autógrafos, verdadeira delícia para os leitores, falam-nos do Bibliófilo e do Historiador de vida plena de significados nas relações culturais e nos laços de amizade. Verdadeiro nas mensagens especiais com que sempre surpreendeu os amigos nas dedicatórias, guardo muitos registos que aproveitei para agora reler; em todos está o carinho, o incentivo, a motivação, o ensinamento. Inscrições pessoais, marcos de um encontro, palavras de um recado, que hoje quero, em homenagem e gratidão, partilhar a que gravou na obra, de distinta encadernação, “Recueil des Instructions données aux Embassadeurs et Ministres de France depuis les Traités de Westphalie jusqu’a la Révolution Française”, vol. III – Portugal, Paris, 1886, com primorosa caligrafia, ofertada no dia do meu doutoramento, acompanhada de epístola que resguardo. Estando o convívio ora suspenso pela fragilidade dos dias, devo assinalar a atenção, o saber partilhado e a estima com que sempre me distinguiu, lembrando o que tantas vezes me dissera sobre a resiliência, fundamental para enfrentar contrariedades, obstáculos, continuar a lutar para seguir em frente e vencer.

Enfrentando agora o desafio da esperança na saúde possível, desejo que a passagem dos 95 anos de Joaquim Veríssimo Serrão constitua uma oportunidade para pensarmos a dádiva da vida com o respeito, a dedicação e o amor que podemos oferecer ao próximo. Nesta data, em que o Correio do Ribatejo saúda e presta homenagem e reconhecimento ao seu antigo colaborador pelo 95.º Aniversário, na sua Vida e Obra encontro formas de empenho e motivos de exemplo para a vida académica, na probidade e descoberta do essencial. A grande viagem continua, com a Amizade e o reconhecimento de muitos, na expectativa do conforto que a ética dos cuidados impõe na vulnerabilidade física do presente.

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