Joana Duarte, 26 anos, é designer de moda e fundadora da Behén, marca que nasceu em 2019. Cresceu em Sinterra, uma localidade perto de Tremês. O gosto pela moda nasceu desde cedo e sempre teve o apoio da família, que é, aliás, um dos grandes pilares na caminhada que a designer tem feito no mundo da moda. Foi com as avós que descobriu os bordados e a tradição do enxoval. Foi com as irmãs que percebeu que as novas gerações estão cada vez mais desinteressadas nas tradições e tomou como missão fazer despontar esse interesse pelo que é tradicional, usando a moda e Behén como veículo.

Ao Correio do Ribatejo conta que trabalha com bordadeiras e artesãs de várias partes do país e garante que Portugal é “uma arca de tesouros em termos de técnicas e conhecimento”, que podiam, e deviam, ser melhor aproveitados na indústria da moda. Recentemente foi distinguida com o Globo de Ouro da SIC na categoria de moda, que diz ser um reconhecimento não só para ela, mas para todos os que trabalham consigo, especialmente para as bordadeiras que costuram as peças que têm sido um sucesso nacional e internacional.

Que memórias guarda da juventude na cidade?

Dos meus avós e da minha família, principalmente. Toda a minha família é aí de Santarém, e o que guardo é sem dúvida as memórias da minha infância com as minhas avós, tanto do lado da minha mãe, como do meu pai. Tem a ver com toda esta questão do enxoval e dos bordados que influenciou muito o projecto. Eu diria que muito resumidamente e em poucas palavras as minhas principais memórias são sem duvida o tempo que passei com os meus avós e o que aprendi com eles e que hoje trago para o projecto e que é mesmo um pilar fundamental daquilo que faço hoje.

Vem a Santarém com regularidade?

Sim, aliás eu estou sempre em Santarém. Quando não estou em Lisboa estou em Santarém.

Como é que nasceu a paixão mela moda?

A resposta é um pouco cliché. Desde pequenina sempre tive um interesse pela área do design de moda e os meus pais sempre me incentivaram a explorar esse lado mais criativo. Sempre tive essa liberdade para o explorar. Foi muito cedo, nunca tive grandes dúvidas sobre aquilo que queria ser. É um pouco cliché mas é verdade.

Que influência é que as suas avós tiveram?

A minha avó Maria tem uma ligação com a parte dos bordados. Do lado da minha mãe houve sempre uma tendência maior nesta questão do enxoval da família e com quem aprendi mais esta coisa do bordado à mão. Mas do lado do meu pai, com a minha avó Fernanda, ela faz crochet e rendas à mão. O enxoval depois divide- -se nestas várias subcategorias. Aprendi um bocadinho com os dois lados. O enxoval é um tema complexo.

Como nasceu a Behén?

A ideia da Behén nasceu sem eu me aperceber porque tudo o que eu faço hoje em dia já era um bocadinho o que acontecia na minha família sem eu me aperceber. Esta questão de comprar toalhas antigas, ou de colecionar têxteis antigos, este interesse por esta questão do enxoval e de passar muito tempo com as minhas avós a ouvir as histórias que elas contavam. Quando comecei a estudar moda isto já acontecia, mas não me apercebi logo que isto tinha potencial para ser um projecto. Quando fui para Londres tirar o mestrado em design de moda, estava a fazer pesquisa sobre produção ética e decidi ir para a Índia, onde estive três meses e foi onde aprendi, com a comunidade com que estava, sobre esta os saris, que são passados de geração em geração. Da mesma forma que os saris são guardados e passados de geração em geração, as minhas avós, as minhas vizinhas, faziam o mesmo com os enxovais. Fez-me um clique, o que acontece com a minha família também acontece no país inteiro. Eu era a única que passava horas a ouvir a minha avó. Mais a minha avó Maria que tinha muitas histórias com os bordados que fez. As minhas irmãs não se relacionavam tanto e eu percebi que havia aqui um desinteresse da nova geração. Isto é uma realidade em Portugal. Esta parte de tudo o que é o saber fazer este tipo de artes, há um desinteresse das novas gerações em dar continuidade a estas técnicas. Percebi isso através das minhas irmãs. A moda tem o potencial de chegar a muita gente muito rapidamente. Pensei que através da minha formação podia tentar mudar a mentalidade, começando pelas minhas irmãs. Começou muito por aqui. Por pegar nestes tecidos antigos e no arquivo que tinha da minha família e começar a criar peças de roupa. As primeiras colecções foram muito assim. O projecto nasceu um bocadinho assim, sem me aperceber. Já passaram dois anos e meio nesta aventura.

Que tipo de peças é que produz?

De tudo um pouco, não tenho propriamente um limite. Não limito a criatividade. Comercialmente fazemos casacos, calças, tops, de tudo um pouco. Vou explorando.

Algumas das peças são feitas com tecidos antigos. Onde encontra esses tecidos?

No início fazia mais essa questão dos tecidos antigos. Havia mais esta tendência da reutilização de materiais antigos. Esta questão de as novas gerações não quererem as coisas antigas, e as famílias acabam por deitar fora e havia muitas vizinhas a doarem-me coisas. Ou doavam-me ou eu comprava. Cheguei a ir a casa de amigos ver enxovais e acabava por comprar coisas. Ia a feiras e leilões. E vou ainda, com a minha mãe e com a minha avó Maria, quando ela pode. Mas hoje em dia já não tanto, porque o projecto foca-se mais em fazer as peças de raiz com as bordadeiras. Já não é tanto a questão da reutilização, mas sim trabalhar directamente com as bordadeiras de maneira que estas técnicas não se percam. É criar de raiz as técnicas, porque eu percebi que esta parte da reutilização dos materiais é importante a nível da sustentabilidade e porque havia muita coisa a ir para o lixo, porque a nova geração não as queria. E isso ainda acontece. Tenho muitas pessoas que me dão coisas porque ou não têm espaço, ou vão para o lixo, etc. Se não incentivarmos estas pessoas que ainda sabem fazer as coisas e não promovermos para que haja continuidade naquilo que é o trabalho delas as técnicas vão se perder.

Receia que as novas gerações cortem com o passado e deixem morrer o que é o considerado tradicional?

Espero que não. Por isso é que a Behén aqui está. Também para mostrar que estas técnicas podem ser vistas de outra forma. Na verdade, eu vi essa mudança a acontecer com as minhas irmãs. No início elas viam a minha avó a mostrar as toalhas e a explicar como eram feitas, mas não se imaginavam a por dez toalhas em casa. Se calhar escolhiam uma ou duas e não sabiam muito bem o que fazer ao resto. Mas agora desde que a Behén existe já começam a olhar para os materiais, para este tipo de técnicas e para os bordados de uma outra forma. Se calhar não veem trinta toalhas mas veem uma ou duas e se calhar já veem uma camisa ou umas calças, ou até uma capa para o sofá. Vi essa mudança a acontecer à minha frente e acho que isso é o sinal mais óbvio de que é possível mudar e se a Behén cresceu, principalmente junto dos estudantes de moda e da própria indústria a nível nacional e internacional é porque há esperança nessa mudança.

É a Joana que desenha todas as peças ou tem mais gente a trabalhar consigo nesse ramo?

Em termos de design sou eu que desenho as peças. Mas confesso que as bordadeiras e as artesãs trabalham comigo influenciam muito o processo. Aprendo muito com elas. Elas contam-me histórias e as próprias histórias influenciam muito o meu processo criativo. basta um pormenor de uma história que elas contam em que falam se calhar de um pormenor de uma roupa que tinham, ou de um bordado que tinham. Isso influencia muito. É todo um cruzamento de inspirações.

Mete as mãos à obra em frente à máquina de costura?

Sim, mas não para as peças finais. Quando é preciso testar. Eu não sou costureira, sou designer de moda. Quando é preciso fazer os protótipos, para testarmos, para saber se gostamos das formas, fazemos isso no estúdio. Depois de estar aprovado vai para costureiras, em Lisboa, em Sintra, em Santarém e são elas, profissionais, que fazem a peça final.

Qual a peça que teve mais orgulho em criar?

A mais desafiante até agora foi o véu que criei com o Teatro Nacional D. Maria, para a peça “A Casa Portuguesa”, de Pedro Penim. Fizemos um véu para o figurino final da Carla Maceió, feito em tule, bordado com palha de trigo do Faial. É uma técnica que estava praticamente extinta e que foi um desafio enorme, mas que acho que é das técnicas mais impressionantes que temos a nível de bordados em Portugal. São todas muito complexas. Como são todas de técnicas muito diferentes eu tenho sempre de aprender muito sobre cada uma. É totalmente diferente pensar uma peça que tem o bordado de arraiolos de pensar uma que tem o bordado de Viana do Castelo. Tenho sempre de fazer muita pesquisa. A minha mãe ajuda-me muito, ela tem muito jeito para os bordados. A minha avó Maria faz o controlo de qualidade dos bordados e passa muito tempo comigo.

Das coleções que já lançou, qual a que mais gosta?

Gostei muito da “Liberdade em Nome de Mulher”, em que tive oportunidade de falar com muita gente na área da cultura, como a Simone de Oliveira ou a Anita Guerreiro e todas elas inspiraram um look específico da colecção. Foi muito interessante. Vou me lembrar para sempre dessas conversas.

No mundo da moda quem são as suas referências?

Eu sigo sempre muito o que se está a fazer em termos de alta-costura. Por uma questão de que nas casas de alta-costura há sempre um hábito maior de trabalhar com estéticas como os bordados. Sigo muito a casa Dior, mas a parte de alta-costura. Depois sigo tudo o que é os jovens criadores. Diria que a Dior, Schiaparelli. Todas as casas de alta-costura são uma boa referência pela maneira como trabalham os materiais. Qualquer um deles faz um bom trabalho.

Que opinião tem sobre a indústria da moda em Portugal?

Acho que obviamente tem tudo para ser uma referência. Temos óptimos designers cá. Não temos é um mercado muito fácil. Parte um bocadinho pela educação. Eu costumo dizer que designers há muitos e sem ter uma missão é difícil porque hoje em dia os projectos têm que ter uma missão. Desenhar roupas só por desenhar não se aplica. Eu costumo dizer isto aos estudantes de moda. É preciso encontrar uma voz que seja única, que seja nossa. Isto é quase uma identidade nacional que temos de encontrar e que faça de nós, enquanto designers de moda, uma referência maior. Temos de ter uma identidade mais própria. Temos técnicas tão incríveis cá, mesmo para além dos bordados, e que podiam ser melhor aproveitadas. Quando refiro a educação, parto por aí. Os estudantes deviam ser incentivados a explorar mais essa parte do saber fazer e das tradições que existem e que não são aliadas à parte do design. O que é uma pena, porque nem todos os países têm essa sorte de ser quase uma arca do tesouro em termos de técnicas e conhecimentos com Portugal.

Recentemente venceu o Globo de Ouro da SIC. É gratificante ver o seu trabalho reconhecido? É importante para a promoção da própria marca e da missão que representam?

Sim, claro que sim. Ainda mais para as bordadeiras e para as artesãs, para as senhoras todas com que eu trabalho. Elas estão super contentes. Eu também. É bom porque lá está, como é uma missão tão específica. É bom ver este projecto reconhecido. Elas acreditaram em mim e é um agradecimento de volta para elas.

Com quantas pessoas é que trabalha?

No estúdio, neste momento somos três a tempo inteiro, e, entretanto, vai entrar outra pessoa. As bordadeiras são imensas. Nós trabalhamos com bordadeiras a nível individual porque nem todos os bordados estão organizados. Por exemplo, há as casas de bordados na Madeira, que são estruturas organizadas e têm dezenas de pessoas que lá trabalham. Depois também trabalhamos com pessoas que trabalham em casa e que não fazem parte de casas de bordados. Ou seja, são mesmo muitas pessoas. E às vezes não trabalham sozinhas, podemos mandar para a dona Noémia, mas ela trabalha com a vizinha que a vai ajudar a acabar um trabalho. É muito complexo porque como é um universo muito feminino e muito informal, às vezes, juntam-se mais pessoas do que nós esperamos. É muita gente já. Em termos de bordados já trabalhámos com Viana do Castelo, com Arraiolos, com o bordado da Madeira, com o bordado da Terceira, com a tecelagem de S. Jorge, com o bordado da palha do Faial, e muito mais sítios. Depois há sítios que têm várias técnicas da mesma região e são pessoas diferente.

Onde é o atelier?

O atelier é em Lisboa, mas até há muito pouco tempo estava em Santarém. O espaço em Santarém era grande e em Lisboa era bastante difícil arranjar um espaço com a mesma dimensão. Felizmente conseguimos um espaço com as mesmas dimensões na zona do Intendente, em parceria com a Câmara de Lisboa. A mudança teve de surgir, porque a maioria dos nossos clientes está em Lisboa e era inevitável ter que mudar para cá. É mais fácil trabalhar a partir de Lisboa, porque os clientes marcam as reuniões ou experimentar uma peça, porque às vezes fazemos coisas à medida. Vêm experimentar um vestido, por exemplo, e para ir para Santarém é muito mais complicado. Ainda tentei ficar em Santarém, mas não estava a resultar.

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