Pedro Miranda Albuquerque – Historiador
Vemos o Mundo pelos nossos olhos, e a nossa história pessoal é a história possível, aquela de que nos lembramos, ou aquela que, quando inconveniente, esquecemos, porque somos sobreviventes e seletivos.
A História não é um património inato. A História, todo esse aprendizado além da nossa, única, especial história pessoal, requer estudo e memorização, requer um interesse voluntário e empenhado em querer saber do outro, da raiz do outro; da coisa, da raiz da coisa; do Mundo, da raiz do Mundo.
Sinto a diferença entre a História e a história, entre a História que necessitamos aprender, estudar, memorizar e aquela que é nossa, natural, construída por cada um de nós, aquela que é feita das nossas escolhas, decisões, sucessos e erros. Se a nossa história é um percurso ao vivo e continuado, a História é um exercício explicativo do Mundo que nos antecedeu, espécie de alicerce do cenário onde vivemos. E, em bom rigor, somos mais frágeis se não sabemos do alicerce; estamos mais perdidos se não reconhecemos o cenário.
E porque vemos o Mundo pelos nossos olhos só podemos contar uma história se a soubermos contar de modo a cativar a atenção dos outros, se nela soubermos inscrever a existência dos outros, e se as palavras que usarmos forem um código acessível àqueles que nos poderão ler agora ou no futuro – a isso chamamos linguagem e fenómeno geracional.
Não podemos dizer aos outros, nos nossos termos, aquilo que não experimentámos. Podemos inventar uma narrativa, podemos imaginar um enredo, o ser um sonho, mas por aí entramos na matéria da Literatura. Não é isso que aqui me traz, antes a História, a minha história, numa humilde tentativa de inscrever nela o nome do Professor Joaquim Veríssimo Serrão.
Por isso a minha história de hoje visa apresentar-vos, em retrospetiva, a estante Interlübke que havia em casa dos meus pais, estante modular, moderna, laqueada a branco com a aplicação de lâminas de madeira de sucupira, que modulava as vaidades da minha mãe, e onde ela arrumava os livros nas prateleiras que dizia da História de Portugal (à esquerda, da banda superior) e da História Universal (à direita, da banda superior).
A minha mãe tinha um espírito matemático e geométrico; teria cursado medicina se naquele tempo fosse bem aceite as meninas estudarem corpos nus e doenças desgraçadas das quais nem se conhecia bem os nomes. Apreciava tabelas, gostava de analisar assuntos por tipologias, era fã da Enciclopédia, juntava catálogos, revistas e seriados; arrumava tudo por tamanhos, por cores e por funcionalidades.
Aquela grande estante era um monumento. Sentado no escadote junto dela aprendi por iniciativa própria, antes de aprender nos currículos escolares; soube de Ramsés e de Viriato, de D. Manuel II e da expedição do Kon-Tiki antes de chegar à 3.ª Classe.
Aos volumes da «Portvgaliae Monvmenta Cartographica» e da «História Genealógica da Casa Real Portuguesa», na enfiada de alguns calhamaços de que recordo o título do meu favorito – «A Gloriosa História dos Mais Belos Castelos de Portugal» – vieram juntar-se um dia, tinha eu 14 anos, uns volumes novos, bem cheirosos a verniz e a tinta gráfica, de lombada branca e preta, com impactantes ilustrações no rosto, que contavam a maravilhosa História de Portugal.
No dizer autodidata da minha mãe: aquela era a História de Portugal que nos faltava, verdadeira narrativa desdobrada em factos conciliados e interpretados, testemunho autêntico que devíamos estudar e conhecer porque sem sabermos dos factos nunca saberíamos das coisas.
Foi assim que pela primeira vez ouvi falar em Joaquim Veríssimo Serrão, Professor de História, nome que reverenciavam, autor daqueles belíssimos volumes que entrados em nossa casa eram elevados à magnífica altitude daquela estante, e que eu ia lendo à medida que apareciam.
Creio que foi por eles que me apaixonei pela disciplina da História; creio que neles, e na leitura que deles fiz me apercebi do interesse do estudo da História, fazendo assim a escolha que haveria de selar o meu futuro profissional enquanto licenciado em Ciências Históricas e em História da Arte.
Esta é a história que vos posso contar em homenagem ao Professor Joaquim Veríssimo Serrão, história pessoalíssima que afirma a importância do trabalho por ele realizado a favor da divulgação da História de Portugal.
Agora, quando se comemora o feliz aniversário de Joaquim Veríssimo Serrão, vem a propósito agradecer-lhe a dedicação e o esforço, e o valor desta Didática da História, porque nunca é demais, e antes de tudo, sabermos dos factos como bem dizia a minha mãe.
Depois das novas abordagens de uma Nova História apresentada em discursos e teses, sentimos mais a falta da narrativa consolidada que nos põe balizas e assinala um percurso; e tudo será válido se o essencial estiver connosco, tal como acontece na Arquitetura, à qual não basta o rasgo do risco ou as novas tecnologias e programas informáticos, precisando ainda do traquejo do desenho.
Assim, em qualquer casa é bom contar com os volumes da História de Portugal de Joaquim Veríssimo Serrão, talvez porque todos saibamos que aquela obra faz parte da estante da História, estante na História.