A morte, em período de pandemia, exige um sacrifício que tem modificado a forma como os portugueses se despedem dos seus entes queridos. Se, por um lado, é fundamental controlar a proliferação da pandemia, por outro, a imposição dessas medidas veio dificultar o cumprimento dos rituais convencionais de despedida por parte de familiares e amigos

O distrito de Santarém ultrapassou as seis centenas de mortes por Covid-19 desde o início da pandemia. Nesse período, outros tantos funerais ocorreram e os constrangimentos vividos na ritualização desse importante momento, assim como os procedimentos sanitários associados (nomeadamente, o envolvimento dos cadáveres em invólucros impermeáveis ou a impossibilidade de preparar o ente querido com determinada indumentária), podem ter frustrado irreversivelmente a necessidade de honrar os mortos com um cerimonial que satisfaz um certo sentido de dignidade e de tributo à pessoa que partiu.

Carlos Lopes, sócio-gerente da Agência Funerária Lopes & Benavente, de Santarém, com mais de quatro décadas de experiência no ramo, admite que estes têm sido “dias complicados”.

“Sobretudo para a família e amigos, mas até para nós… temos de trabalhar com um certo distanciamento. O carinho que estávamos habituados, para fazer um funeral como toda a dignidade, desapareceu. Tornou-se uma coisa qualquer. Uma banalidade”, diz ao Correio do Ribatejo.

Por isso, todo este contexto pode ter um profundo impacto em quem perde um ente querido, que fica numa espécie de limbo, um “luto adiado”, como refere.

“É triste. E as pessoas manifestam-nos isso mesmo. Como diz o provérbio, até para morrer é preciso ter sorte… querem prestar homenagem ao familiar, ao amigo e não podem. Não podem ver o corpo. As pessoas ficam em baixo, penosas. Não fazem o seu luto”, reforça.

Neste cenário, conta, faz-se como se pode fazer, identifica-se o corpo, manda-se fotografia à família, abrevia-se o ritual do funeral, o velório, o acompanhar do corpo ao cemitério ou ao crematório, a missa, o fechar da urna.

“Não estávamos habituados a trabalhar assim, é muito triste não haver uma despedida condigna”, resume.

Carlos Lopes diz que se o corpo for sepultado o funeral é relativamente rápido e que o que demora é a cremação, que é de longe o que os familiares estão a preferir.

Em Portugal, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) emitiu uma norma (número: 002/2020) a 16 de Março, logo no início da pandemia, actualizada no dia 3 de Julho de 2020, sobre cuidados post mortem.

Segundo as orientações da DGS, caso um indivíduo morra com suspeita ou confirmação de infecção por SARS-CoV-2/COVID-19, a família é impedida de ver o corpo.

A identificação do cadáver é realizada por via remota, geralmente por uma agência funerária, que o faz através de fotografias digitais. O cadáver é colocado num saco impermeável, despido, e o caixão permanece fechado durante o funeral.

“Apesar de a norma da DGS ter sido pensada para os óbitos com infecção suspeita ou confirmada por SARS-CoV-2, a grande maioria das pessoas que morreu devido a outras doenças ou de causa natural foi submetida a este procedimento e os familiares impedidos de contactar com o corpo do falecido e de vivenciar o luto de forma adequada. Tal não deveria acontecer”, aponta Carlos Lopes.

Cada cabeça, sua sentença

Por outro lado, Carlos Lopes aponta uma grande disparidade no que toca ao ritual dos funerais alertando que “a decisão fica à discrição” de párocos, presidentes de junta ou de câmara, enquanto entidades que gerem os cemitérios, locais que por serem ao ar livre são alvo de “vista grossa algumas vezes”.

“Hoje, existem freguesias que deixam as pessoas juntarem-se, o que é perigoso. Noutras, impedem, quase, a presença de familiares. Ninguém se entende”, refere.

Uma preocupação que é transversal a todo o país e que levou mesmo a Associação das Empresas Lutuosas (ANEL) a pedir que a DGS emita uma norma sanitária que uniformize o ritual dos funerais para acelerar com dignidade e respeito a realização das exéquias”.

“Sensibilizar os cidadãos através de uma norma sanitária uniforme para todo o país – idêntica medida já foi implementada em outros países como Espanha e Itália durante a primeira vaga – que não permita a passagem dos funerais pelos locais de culto ou centros funerários para realização de exéquias, vigílias ou velórios”, é uma das quatro recomendações que a ANEL faz à DGS.

“Esta norma sanitária para todos é também um esforço para continuarmos confinados. Só saem os enlutados mais próximos (…). Estamos em confinamento e com restrições à circulação. Foram abolidos os baptizados e os casamentos por causa da boda – uma comemoração que mesmo com pouca gente poderia causar contágios – e os funerais ninguém fala deles. Para que saiamos da base do conselho [das funerárias], pedimos que exista uma norma sanitária que diga ‘têm de estar confinados e não se podem aglomerar à porta das igrejas para participar num velório’”, defende a ANEL.

À sensibilização junto das famílias, a associação junta outras recomendações que visam “acelerar com dignidade os funerais” como a adopção de um protocolo de documentos com as entidades hospitalares via digital, bem como a emissão dos boletins de óbito, que actualmente é feito pelas autoridades policiais em horário específico, “a qualquer hora” e “podendo ser emitido em qualquer posto de polícia”.

A ANEL também recomenda que seja proposto aos familiares a utilização das câmaras frigorificas existentes nos cemitérios e centros funerários que possuem crematórios, isto enquanto se aguarda data e hora da concretização da cremação para, sublinha a associação, “aliviar a saturação da capacidade de frio disponível nos hospitais”.

Somam-se, ainda, situações difíceis de gerir como cemitérios fechados que só aceitam funerais de manhã ou crematórios encerrados ao fim de semana, num momento em que de acordo com dados da ANEL Portugal regista cerca de 600 óbitos/dia.

“Há muito medo”

Segundo Carlos Lopes, a pandemia não trouxe, na região, um acréscimo de serviços fúnebres, mas sim novos procedimentos e, sobretudo, “muito medo”.

“Na região, não houve um aumento de mortalidade assim tão exagerado, como se propala. Houve, sim, um aumento, mas não aquilo que as pessoas pensam, não o exagero de que se fala no dia-a-dia”, esclarece, apontando que se tem criado na opinião pública um clima de “alarmismo” que não é benéfico.

“Vamos com mais mortos que no ano passado, mas não é um número elevadíssimo. Talvez, em termos nacionais, uns 6 ou 7 mil a mais no período homólogo”, afirma.

E sobre as notícias de aglomeração de corpos nas morgues dos hospitais, Carlos Lopes é peremptório: “há uma burocracia imensa que atrasa todo o processo”.

“Por exemplo, vamos buscar um corpo ao hospital, e estão lá 30… ora com seis ou sete falecimentos por dia, todos os que deveriam ser velados, no distrito todo estão ali, a fazer as 24 ou 48 horas exigidas. Estão concentrados, quando, numa situação normal, estariam a ser velados nas capelas, nas igrejas”, explica.

O Hospital Distrital de Santarém, antecipando esta situação, tratou no início do mês de Dezembro do aluguer de um contentor frigorífico com o intuito de aumentar a capacidade da casa mortuária e de ter uma capacidade total para acondicionamento de 30 corpos em simultâneo.

A Agência Funerária Lopes & Benavente, construiu também, recentemente, um centro funerário próprio com espaço frio, sala para velórios, garagem e armazém.

O espaço de frio permite adiar os funerais o tempo necessário para que familiares das pessoas falecidas que moram longe, nomeadamente no estrangeiro, possam assistir aos funerais. Este espaço permite ainda, em tempos de pandemia, que os corpos possam ser retirados dos lares e residências e ali aguardem até à realização do funeral.

Janeiro foi o mês com mais mortes nos últimos 12 anos

Janeiro de 2021 foi o mês que somou mais mortos nos últimos 12 anos, com 19.452 óbitos e quase todos os dias se bateram novos máximos, segundo dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO).

Estes dados mostram que Janeiro de 2021 foi também o que teve mais mortes comparando com todos os meses de Janeiro desde 2009.

O SICO, que só integra dados dos últimos 12 anos, mostra que o dia 20 de Janeiro de 2021 foi aquele em que morreram mais pessoas, por todas as causas – 746 óbitos – um valor que ultrapassou em mais de 50% o mais elevado registado no mesmo dia desde 2009 (486).

De acordo com os dados disponíveis no SICO, o dia 20 de Janeiro com menos mortos foi o de 2010 (312) e aquele que registou o número mais elevado foi o de 2015 (486).

Neste ano, no dia 20 de Janeiro morreram quase o dobro das pessoas do mesmo dia do ano anterior, (375).

Excluindo os primeiros quatro dias do mês, em todos os outros foi ultrapassado o valor máximo de óbitos registado em cada um dos dias do mesmo mês nos últimos 12 anos.

De acordo com os mesmos dados, desde 2009 que não tinha havido um único dia de Janeiro em que tivessem morrido mais de 500 pessoas. Este ano, desde o dia 05, inclusive, que morreram sempre mais do que 520 por dia.

Se o dia com mais mortes por todas as causas foi a 20, aquele em que morreram menos pessoas foi a 02 de Janeiro, com 426 óbitos, ainda assim o valor mais elevado dos últimos três anos para o mesmo dia.

Quanto aos óbitos considerados “em excesso” pelas autoridades de saúde, relativamente ao que era esperado, os dados do SICO mostram que só na última semana do mês foram mais de 2.560.

No pior mês da pandemia, as mortes por covid-19 justificaram cerca de 28% dos óbitos de Janeiro.

Em relação ao “tipo de morte”, os dados do SICO mostram que, em Janeiro, a maioria (90,3%, 17.068) foi considerada natural, 9% (1.709) ficou sujeita a investigação e 0,6% (114) deveu-se a causas externas.

Relativamente ao local do óbito, a maioria, 12.048, ocorreu em instituições de saúde, 4.197 no domicílio, 2.580 noutro local e em 68 casos o local da morte é desconhecido.

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