Aos 70 anos, Manuel Ferreira prepara-se para representar Portugal na Expo de Osaka 2025, este mês, levando consigo várias peças em bunho e uma pequena oficina interactiva.

Natural de Santarém, onde vive e trabalha, é um dos últimos artesãos a dominar esta técnica ancestral, que combina resistência, estética e persistência.

É no seu espaço de trabalho que tudo ganha forma. O chão está coberto de varas finas e palha seca, prontas a serem transformadas. Há cadeiras em diferentes estados de construção, ferramentas penduradas nas paredes e uma mesa coberta por um pano vermelho onde repousam agulhas, facas e uma pequena tábua.

É ali, entre o caos organizado dos materiais e o silêncio das mãos, que Manuel molda o seu ofício.

Foi em 1989 que tudo começou, num curso de formação profissional que julgava ser sobre madeira. O nome “mobiliário” soava familiar e a promessa de um subsídio para montar uma oficina parecia suficiente.

Mas, ao chegar ao antigo Campo da Feira, em Santarém, encontrou um mestre sentado num banco de bunho. A madeira era o seu território, mas o bunho impôs-se como uma nova linguagem e tornou-se o centro da sua vida.

“Pensava que era mobiliário em madeira, mas quando cheguei lá estavam montes de bunho empilhados. Fiquei, fui ficando… e ainda hoje trabalho com isto”, conta Manuel.

Desde então, nunca mais largou a arte de entrelaçar esta planta aquática, robusta e discreta, que cresce em ambientes húmidos como margens de lagoas, valas e cursos de água de corrente lenta, e é usada tradicionalmente para fazer bancos, cadeiras e almofadas.

Conhecido também por espadana ou erva de esteira, o bunho pertence à família dos juncos e pode atingir até três metros de altura. Além do valor ornamental, desempenha um papel ecológico relevante, contribuindo para a purificação da água e ajudando a controlar a erosão das zonas ribeirinhas.

Manuel já tinha passado por outras artes manuais: relojoaria e carpintaria. A curiosidade levou-o a experimentar mais esta e a prática fez o resto. No final do curso, com o apoio do município, montou uma oficina e começou a trabalhar.

O percurso não foi fácil. Durante anos, viveu das feiras, de norte a sul do país. Carregava o carro com cadeiras e bancos, e muitas vezes voltava com tudo. “Hoje, felizmente, nem preciso sair daqui para vender”, diz.

A apanha do bunho é uma etapa crítica no ciclo do artesanato, realizada nos meses de Verão, quando a planta ainda está verde e flexível. É ceifado e depois estendido ao sol durante vários dias. A secagem não pode ser interrompida por chuva ou humidade, sob pena de comprometer a qualidade da palha. Após este processo, o bunho é atado em molhos e armazenado em locais secos, onde permanece até perder toda a água, num processo que pode demorar até seis meses.

Cortar, secar, virar, atar — o processo é longo e repetitivo. E este ano a apanha do bunho foi particularmente difícil: “Choveu até tarde e os locais habituais ficaram alagados. O bunho precisa de água, mas não em demasia. Se estiver afogado, não cresce.”

Além disso, há zonas protegidas onde não é permitido colher, o que limita ainda mais o acesso à matéria-prima.

“Tenho amigos que me ajudam a encontrar novos sítios, mas às vezes só se cortam dois ou três molhos num dia. Não é rentável”, explica.

Segundo Manuel, dominar a apanha é essencial para qualquer artesão. O bunho demasiado macio dificulta a produção; se for demasiado seco, torna-se quebradiço e fere as mãos.

Para quem vive exclusivamente do bunho, “são necessárias centenas de molhos por ano”, diz o artesão, que já não apanha tanto, nem produz como antes – as mãos “já não acompanham o ritmo de outrora”.

Após muitos anos a dar oficinas e ‘workshops’, foi ao acaso, mais uma vez, que começou a ficar conhecido. Uma encomenda feita por um cliente de Lisboa abriu portas e pouco depois surgiu o convite para a Bienal de Veneza, em 2019. Levou uma caixa com ferramentas, montou uma oficina e mostrou ao mundo como se trabalha o bunho. A partir daí, vieram Paris, Bruxelas, Luxemburgo, Espanha e, agora, o Japão.

À Expo de Osaka, entre 21 e 31 de Agosto, Manuel levará o essencial: palha, ferramentas e vontade de ensinar. A oficina será breve, dividida entre manhãs e tardes, pensada para quem quiser “pôr as mãos na massa” e “descobrir como se entrelaça o bunho”.

Não será uma demonstração para multidões, mas um gesto íntimo de partilha, como sempre foi o seu trabalho. A participação representa “o culminar de uma carreira” feita de trabalho silencioso e dedicação.

Entre os clientes mais regulares estão precisamente japoneses que encomendam centenas de bases em bunho, usadas como suportes decorativos ou funcionais.

“Mandam fazer às 300 ou 400. É trabalho miúdo, que dói nos dedos, mas vou fazendo aos poucos”, explica.

O reconhecimento internacional não o deslumbra. Nunca se viu como guardião de uma arte, embora saiba que, durante anos, foi dos poucos a trabalhar o bunho em Portugal.

A palavra “mestre” soa-lhe estranha, mesmo quando os outros a usam. Prefere a simplicidade, o canto da sua oficina, o tempo lento das mãos.

A técnica é simples, diz: “Basta uma agulha, uma faca, uma pazinha de madeira. E, o mais importante, as mãos.”

O futuro do bunho, acredita, será diferente. As peças tradicionais como bancos, cadeiras e bases dão lugar a objectos decorativos, adaptados ao gosto contemporâneo. Os seus aprendizes já seguem esse caminho, misturando técnicas, reinventando formas.

Já não se trata de fazer cadeiras para o dia-a-dia, mas peças que contam histórias. “Durante anos tentei ensinar jovens, mas desistiam. Agora há uma nova geração que vê isto como arte decorativa, não como utilitária. Não querem fazer cadeiras para usar todos os dias, querem peças bonitas para mostrar”, conta.

A ligação ao Ribatejo é inevitável. “Este trabalho existe aqui, onde há água e bunho. Santarém é a minha cidade, a mais bonita do mundo. Mas precisa de gente, de vida e de apoio à cultura”, afirma.

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