O ex-presidente da Câmara de Santarém Moita Flores acusou o seu sucessor de o ter denunciado por obras na antiga Escola Prática de Cavalaria para “alijar responsabilidades e esconder factos gravíssimos” e disse ser alvo de uma “injustiça”.
Francisco Moita Flores depôs ONTEM no Tribunal Criminal de Santarém, na primeira audiência do julgamento em que é acusado, juntamente com o antigo Director do Departamento de Gestão Urbanística António Duarte, pela prática, em co-autoria, de três crimes de prevaricação de titular de cargo político, sendo o ex-autarca acusado ainda da prática de dois crimes de participação económica em negócio.
A audiência começou com uma declaração de Ricardo Sá Fernandes, advogado de Moita Flores, que quis frisar o “contexto” em que decorreu a denúncia apresentada pelo actual presidente da Câmara de Santarém, o social-democrata Ricardo Gonçalves, feita num momento (2014) em que o município tinha sido condenado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (TAFL) ao pagamento de dois milhões de euros, “por deixar cair inexplicavelmente o compromisso arbitral com a empresa” que havia sido negociado por Moita Flores, e em que poderia enfrentar um processo de perda de mandato.
Moita Flores afirmou que a denúncia foi feita 25 meses depois de ter renunciado às suas funções na Câmara de Santarém, salientando que Ricardo Gonçalves foi seu vereador, tendo assumido a gestão do município seis meses antes da sua renúncia, pelo que “não pode dizer que desconhecia o que estava em curso”.
Considerando que o processo visa, não fazer justiça, mas a “caça” ao seu nome, Moita Flores afirmou que tudo começou com um pedido da Direcção Geral da Saúde (DGS) para a criação de um Serviço de Atendimento à Gripe A, salientando que não quis “obras clandestinas”, tendo sido a DGS a pedir “obras discretas, para não alarmar a população”, e reconhecendo que houve irregularidades, mas não com os contornos da acusação e da pronúncia.
A decisão instrutória considera de “clara evidência” que a sociedade A. Machado & Filhos realizou, entre 2009 e 2010, durante o segundo mandato de Francisco Moita Flores enquanto presidente da Câmara Municipal de Santarém, diversas obras para o município que não foram precedidas de procedimento contratual, nem cumpriram as normas legais.
Em causa estão ajustes directos em contratos realizados com a empresa, escolhida para adaptar um dos edifícios da antiga Escola Prática de Cavalaria para acolher um Serviço de Atendimento à Gripe A (SAG), sem conclusão dos procedimentos legais, obra que foi depois suspensa (por se ter verificado não existir pandemia), com o espaço a ser adaptado para acolher serviços municipais.
A empresa acabou por fazer essa adaptação e outras intervenções noutros edifícios da ex-EPC, obras que, segundo a acusação, foram contratadas verbalmente e realizadas sem qualquer intervenção ou acompanhamento por parte dos técnicos da autarquia, à excepção de António Duarte, com conhecimento de Moita Flores.
Moita Flores é também acusado de dois crimes de participação económica em negócio por ter assinado dois contratos de ‘factoring’, obrigando o município a pagar ao BCP duas facturas, de 300.000 e de 200.000 euros, assumindo despesas no valor de 500.000 euros “sem contrato que a justificasse e sem a intervenção do Tribunal de Contas”.
O facto de o banco ter pagado as facturas à empresa com apenas uma assinatura, a de Moita Flores, faltando a da tesoureira do município, em documentos onde foi aposto o carimbo branco atestando o cumprimento de todas as formalidades, foi um dos assuntos de várias das perguntas feitas ao longo do dia, com Moita Flores a afirmar desconhecer como foram entregues ao banco.
No seu depoimento como testemunha, Ricardo Gonçalves afirmou que o município não pagou ao BCP, estando a correr um outro processo judicial.
Em causa no processo está ainda a acção administrativa interposta pela empresa contra o município, para ser ressarcida das obras realizadas, reivindicando um valor de perto de dois milhões de euros (1.968.492,50 euros), a qual a autarquia perdeu por ausência de contestação.
Confrontado, Ricardo Gonçalves disse ter ficado surpreendido quando em 2014 soube que a contestação não fora feita, apesar de estar convencido de que iria ser apresentada, explicando que quando assumiu a gestão do município, no final de 2012, este tinha uma das dívidas mais elevadas do país, da ordem dos 100 milhões de euros, e que era confrontado diariamente com dívidas para pagar, estando os serviços “atafulhados”.
Questionado por que razão não nomeou o perito para a comissão de arbitragem, o autarca afirmou ter indicado o nome do arquitecto Pedro Gouveia, tendo sido determinado pelo Tribunal, por solicitação das defesas de Moita Flores e de António Duarte, a junção, no prazo de 10 dias, do documento que atesta essa afirmação ou a informação de que não existe.
À pergunta da presidente do colectivo sobre o contexto em que surgiu a denúncia, se por “perseguição” como afirmado por Moita Flores, Ricardo Gonçalves disse que, perante a decisão do TAFL, de 2014, que não deixava dúvidas quanto à ausência dos procedimentos que eram exigidos, não lhe restava outra solução que não a participação ao Ministério Público, sob pena de estar agora a responder por não o ter feito.
A audiência ficou marcada pela decisão de Moita Flores de, depois de declarar que não iria responder às questões do mandatário do município, não responder às questões colocadas pela procuradora do Ministério Público, alegando estar a ser alvo de “provocações” e “insultos”, o que levou a magistrada a considerar “muito grave” essa declaração e a afirmar que serão daí retiradas “eventuais consequências”.
No final do depoimento de Ricardo Gonçalves, já depois de encerrada a audiência, Moita Flores dirigiu-se ao autarca chamando-lhe, várias vezes, “aldrabão”, depois de ter confirmado que irá estar presente na sessão agendada para o próximo dia 23, dia em que faz 69 anos, por não querer “perder as mentiras que estão a ser ditas”.