Aparentemente, tudo passou a ser comum no tempo em que alguns tendem a desejar, novamente, banalizar o mal, a miséria (humana e material) e a falta de escrúpulos. Para esses, o objetivo maior é fazerem-nos crer ser necessário sobrevivermos numa sociedade cada vez mais dominada pelo terror e pela paranoia promovidos pelo apelo contínuo ao medo. São os “outros” contra “nós”. Os “outros” que, estranhamente, e por mais incrível que pareça, são de carne e osso tal qual como “nós”.

Este é o terreno fértil para a sementeira do ódio entre os povos e entre as nações. Se olharmos com atenção para o relato de qualquer migrante, este é sempre cru, direto e quase sempre despojado de adjetivos: “(…) se eu morrer, ninguém vai dar pela minha falta (…) nada mais tenho a perder a não ser a própria vida (…)”. Em comum, todos arrastam a ideia da morte para o circuito da sua vida. Pior do que isto é morrerem sozinhos.

Estranhamente, vivemos num tempo em que se consegue meter um míssil na janela do 4.º andar de um qualquer prédio localizado numa qualquer rua no Iraque ou no Afeganistão, mas não se consegue adivinhar, com precisão, a data da erupção do vulcão Semeru, na Indonésia; num tempo em que pessoas são capazes de apertar o gatilho de uma qualquer arma na certeza que vão matar o filho de alguém, mas não conseguem colocar um ponto final na destruição da floresta amazónica; num tempo em que é sabido exatamente qual a quantidade de químicos a serem aplicados numa ogiva nuclear que vai arrasar uma qualquer localidade, mas não conseguem entender-se, sequer, sobre as medidas a serem adotadas para travar o aquecimento global, nem tampouco cumprir com as metas definidas no Acordo de Paris.

Vivemos num tempo em que algumas pessoas se esquecem que as guerras e as alterações climáticas constituem um dos principais motivos associados aos movimentos migratórios. Na génese destes deslocamentos em massa encontramos sempre motivações políticas, económicas, sociais, de desenvolvimento, humanitárias e de direitos humanos que transcendem todas as fronteiras. Estranho mundo este em que vivemos, onde olhamos incrédulos para uma televisão que avariou como sendo um grande problema e não perdemos um minuto do nosso dia a pensar nas pessoas que fogem da violência, da fome, da seca, das violações, das bárbaras execuções ou de uma cidade arrasada por bombas. A natureza humana é, de facto, imprevisível e continua a deixar-me boquiaberto pelo desprezo de alguns em relação à vida de outros. Não há vidas mais importantes que outras – todas contam! Salvar uma vida é salvar o mundo. Afinal, quanto vale a vida de um migrante?

Enredada nas suas contradições e nas suas evidentes dificuldades em assumir políticas sérias, claras e consistentes no que respeita às vagas migratórias, a cegueira dos líderes de alguns países estão a contribuir para dar “borlas” aos movimentos xenófobos que vivem e se alimentam do populismo. Este “nós” contra os “outros” é absurdo e contribui apenas para alimentar negócios à escala planetária que poucas diferenças têm dos sistemas de escravatura. Cabe a cada um de nós refletir nos limites éticos e morais subjacentes à vida das pessoas, sejam elas migrantes ou não. Afinal, vivemos num mundo em que tudo queremos liberalizar, com particular enfoque no movimento de capitais, onde fica claro, para mim, enquanto jovem com os olhos postos no futuro, que o único tabu – aquilo que continua a defrontar-se com uma resistência incrível – é a livre circulação de pessoas. Repita novamente comigo: afinal, quanto vale a vida de um migrante?

Não é sério ficarmos indiferentes ao drama de milhões de pessoas que vivem em situação de pobreza extrema e que veem num qualquer braço de mar ou numa qualquer fronteira terrestre a possibilidade de terem uma vida melhor. Para a semana é Natal e importa pensarmos que nem todas as mães vão ter uma sopa quente para darem aos seus filhos. Mantermos os holofotes mediáticos sobre a questão dos migrantes e refugiados é querermos estar do lado certo da fronteira, aquele que fica do lado de Fora da Caixa.

Pedro J. E. Santos
Estudante de Medicina na FMUL

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