O que têm em comum o “Café Central” e o Mercado Municipal?

São ambos espaços emblemáticos de Santarém.

Quase todas cidades deste país têm um Restaurante ou um Café Central e um Mercado Municipal. Nuns casos ambos funcionam, noutros funciona um deles e, nalguns casos, nenhum funciona.

Na nossa realidade Scalabitana, o Café Central e o Mercado Municipal têm algo de tão positivo, mas que funciona em simultâneo para o insucesso – são ambos espaços de memórias.

Falo por mim.

O Café Central lembra-me o Sr. José João Rodrigues, o Raúl, o José João, o Sr. Madeira, o Sr. Maia, o Sr. Mendes, o Guilherme, a Ana, e tanta gente que ao longo do tempo em que aquele espaço esteve aberto, fizeram parte da minha vida. Lembra-me os almoços com o meu Pai e o José Raúl Vicente que tinham sempre uma mesa reservada. Sempre a mesma durante anos e anos. Quase todos os dias, ali estavam eles, quando não estavam no Abegão do Sr. Mário Madeira, e eu chegava e aproveitava para comer o bife à Central ou o arroz de pato ou o lombo no forno ou outra iguaria do dia e terminava, quase sempre, com um leite-creme ou uma salada de frutas. Ainda hoje me lembro de todos esses sabores. Talvez por isso, ainda hoje, quando encontro o Raúl Rodrigues ou o José João Rodrigues, os nossos olhos brilham, pela amizade que os nossos pais tinham um pelo outro, pelo que eu adorava a mãe deles, e pelas tantas horas que ali passámos juntos, no restaurante, na sala do snooker ou pelas conversas que tínhamos na cozinha do Hotel, no piso de cima, em amena cavaqueira. Foi uma amizade construída ao longo de décadas e que, felizmente, ainda hoje se mantém.

O Central passou depois por um longo processo, que para esta história não releva, mas voltou a abrir uns anos mais tarde, julgo que em 2018, depois de ter estado fechado mais de uma década.

Durante esse período de tempo em que esteve encerrado, as redes sociais foram criando um movimento de saudade sobre o Café Central, numa esperança vã, questionando como era possível aquele espaço, naquela zona da cidade, não estar aberto.

Ilusão. Tudo ilusões, movidas por saudades, por recordações e nalguns casos por se achar que seria possível abrir o Central com a mesma alma que foi tendo ao longo de décadas. E, mais importante, que aquela zona da cidade e que é parte central do Centro Histórico, já não tem a mesma dinâmica nem de serviços públicos que por ali haviam, nem de empresas privadas que circundavam e existiam no CH, nem de movimento de pessoas pelas ruas, que permitiram fazer com que o Central passasse de um café da rua mais movimentada da velha Scálabis, para um dos principais restaurantes da cidade.

As memórias e imagens do passado não permitiram entender que a cidade mudou, cresceu e desenvolveu-se para outras áreas do planalto (bem como para São Domingos e Vale de Estacas à Portela) que o comércio mudou radicalmente com o aparecimento de grandes superfícies e centros comerciais que permitem um “all in one” e que portanto, no CH de hoje existe forçosamente menos pessoas do que há 30 anos. E por isso, o Café Central assim como reabriu em 2018, rapidamente fechou. Por diversos motivos. Talvez porque uma parte do “movimento da saudade” nunca tenha ido ao novo central beber sequer um café, talvez porque uma parte das pessoas achassem que o preço não correspondesse à qualidade, mas eu acho que num fenómeno tão nosso, Scalabitano e português, pura e simplesmente ficámos fechados nas nossas memórias, achando que o Central abriria como o imaginávamos e cada um de nós, à sua maneira, o tinha idealizado.

E assim, o Café Central está encerrado há mais de um ano. Perpetuando-se as memórias.

O Mercado Municipal apresenta-se hoje como um desafio decisivo para o Centro Histórico e para a cidade.

É mais um espaço de memórias.

A aprovação da ideia de projeto do novo mercado Municipal ocorreu no mandato de 2013-2017. Tive a honra de ter feito parte dessa Vereação. Apesar das diversas visões, julgo que todos concordávamos na necessidade imperiosa na sua recuperação, modernização e dotar o Mercado de um espaço multisserviços, única forma de subsistir. Da ideia inicial do projeto, recordo que haveria uma zona reservada para a venda de produtos tal como no passado, mas naturalmente adequada à realidade do número já tão reduzido de lugares que se encontravam ocupados. O mercado ofereceria ainda espaços para a restauração, diversificada, teria um conjunto de lojas para a venda de produtos regionais e contaria com uma área para fins culturais. Uma espécie de um “Mercado da Ribeira” e “Mercado do Lumiar”, mas adaptado à nossa realidade. Nada foi decidido nesse mandato para além de termos aceite e concordado na necessidade de modernização do espaço, de modo a que o mesmo pudesse evoluir, trazer pessoas e dar-lhe vida.

A Câmara Municipal aproveitou e bem o facto de poder candidatar o financiamento da recuperação do mercado a fundos comunitários, o que faz com que uma obra de quase 2.5 milhões de euros (numero arredondado) tenha um custo de pouco mais de 367 mil euros para os cofres da Autarquia.

Mas, esta opção racional, de aproveitamento dos fundos comunitários, nomeadamente ao nível do FEDER, impõe uma regra básica que resulta da impossibilidade das receitas serem superiores ao incentivo. I.E., a Câmara Municipal, cedendo o espaço para concessão a um terceiro, não pode de facto colocar a concurso um preço mínimo de valor muito diferente do que fez, sob pena da autarquia ter de vir a suportar um custo muito superior aos referidos 367 mil euros e ser, desse modo, obrigada a devolver verbas da União Europeia.

Estamos pois perante um problema de natureza muito diversa.

Entre compatibilizar aquilo que as regras comunitárias permitem e obrigam a autarquia, com um valor moral que podemos considerar que deveria permitir, a quem ocupa hoje bancas nas cavalariças da Casa do Campino, de poderem beneficiar de condições especiais para o aluguer do seu espaço de venda, até à opção da gestão do mercado estar sujeita a um modelo de gestão pública ou privada.

Das discussões que me lembro ter sobre o tema, e ainda há dias falava sobre o assunto com o Arquiteto Luís Farinha, não me chocava que a Autarquia pudesse fazer uma gestão inicial do Mercado e no final de um período de tempo, se considerasse benéfico, cedesse a gestão a um terceiro. Nada tenho contra as parcerias público-privadas desde que as regras sejam claras e não sirvam apenas para proteger o parceiro privado e esquecendo que o mais importante é a proteção do interesse público.

Não sei se a Autarquia dispõe de recursos técnicos que lhe permitissem fazer esta gestão. Desconheço em absoluto o atual quadro e a dimensão de Recursos Humanos da Autarquia, bem como as suas diversas competências e habilitações, nem tão pouco sei se haveria a possibilidade da criação de uma equipa multidisciplinar, dentro da autarquia, que se dedicasse a tempo inteiro a este projeto de gestão do Mercado.

Mas, seria contra a ter uma nova empresa municipal a gerir este espaço. Frontalmente contra.

Perante tudo isto, estamos confrontados com um problema que é muito maior do que parece.

Se legalmente a Câmara se encontra impedida de permitir que os comerciantes do antigo mercado, e hoje na Casa do Campino, possam ter um privilégio que a lei não lhes permite, temos por outro lado que o preço colocado a concurso, por estranho que pareça, poderá impedir que a Autarquia tenha de devolver parte da verba recebida para a realização deste investimento.

Estamos perante um problema legal, moral e financeiro.

Um dos azulejos do Mercado Municipal de Santarém, cujo original da foto era propriedade do Sr. Armando Ribeiro, que tinha um estúdio de fotografia por cima do Grandela Aires, e que o Amigo Olavo Aires também tem, mas tirada posteriormente, e que retrata uma pega realizada pelo meu avô, Lúcio Emílio Segurado, na velha praça de Touros de Santarém.

Que não sendo de decisão fácil, mexe com muitas memórias.

Tal como no caso do Café Central, também tenho quase a certeza que muitos do “movimento da saudade” não fossem e não sejam clientes do mercado.

E por isso corremos o risco de tornar o Mercado Municipal num novo Café Central, votando-o ao abandono ou a uma abertura sem sucesso.

E nesta dicotomia, talvez a solução pudesse passar por a Câmara assumir o “risco” que poderia ter de devolver, no futuro, parte das verbas recebidas. Mas, no futuro, esses montantes poderão fazer falta para tanta coisa face às necessidades com que as cidades, as pessoas e as empresas se vão confrontar para sair desta crise para onde fomos mandados.

A decisão não é fácil.

Contém vários riscos e a diversos níveis.

Mas, fundamentalmente, não façam do Mercado Municipal um novo Café Central.

Não condenem aquela que ainda pode ser uma réstia de esperança para animação do CH, a um espaço votado ao abandono.

A 6 meses das eleições, as decisões agora tomadas adquirem um valor ainda maior.

E poderão bem ditar a diferença entre a vitória e a derrota, entre uma esmagadora maioria e uma vitória de Pirro.

Ricardo Segurado

Jurista

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