Ricardo Hipólito nasceu em Alpiarça em 1957. Estudou em Alpiarça, em Santarém e em Lisboa, onde se licenciou no Instituto Superior de Agronomia. É casado e tem duas filhas. Desde há alguns anos que tem desenvolvido a recolha de memórias do Ribatejo. Memórias do trabalho e da política, que se medem em mais de 1200 registos. Se é que estas se podem, em rigor, separar totalmente. Entre essas memórias destaca-se a vida dos avieiros e seus descendentes no pequeno concelho alpiarcense, o património industrial arqueológico, o trabalho do campo e as vivências na vila rural. “Não sou historiador mas sim alguém que há mais de vinte anos começou a cuidar de registar materialmente memórias de Alpiarça. Políticas, sociais, do trabalho”, refere, nesta entrevista ao Correio do Ribatejo, a propósito do 1º de Maio que hoje se assinala. Como amante da imagem, tem também dedicado parte do seu tempo livre à fotografia e à recolha das memórias registadas em fotografia. Trabalhos seus, em texto e fotografia, já foram publicados em vários meios de comunicação, como o jornal Voz de Alpiarça, no Correio do Ribatejo, na revista Rodapé (da Biblioteca Municipal de Beja), blog Café Portugal, entre outros. Actualmente é funcionário da Secretaria de Estado da Cultura.
No âmbito dos “Cadernos Culturais”, um projecto de cariz eminentemente cultural da AIDIA (Associação Independente para o Desenvolvimento Integrado de Alpiarça), foi autor do primeiro número, “Manuel António, a arte de criar um melão”, e de um segundo sobre a vida dos arroteadores das charnecas dos concelhos de Alpiarça e Chamusca na primeira metade do século XX, com o título “Os arroteadores do Vale da Lama da Atela e d’outros vais – A saga da terra e do pão” e, mais recentemente, “A Praça de Jorna em Alpiarça – A Saga do Trabalho e da Dignidade”.

É o autor de vários cadernos culturais que contam histórias antigas de Alpiarça e do Ribatejo. Qual foi a história que ouviu dos mais velhos que mais o fascinou?
Elas são tantas que me é difícil escolher. Porque, para além das estórias (e da História) que me vão transmitindo há, na maior parte das vezes, emoções criadas pelos ambientes em que as conversas se desenrolam e até pela forma com que as pessoas se expressam. Daí que, a partir de determinada altura, na transcrição que faço (as gravações (já se aproximam das 1.200), sejam apenas em áudio, sejam em vídeo, transcrevo-as sempre para o papel) é mantida a linguagem fonética. Já houve pessoas que acharam que eu estava a desconsiderar os meus interlocutores porque, assim, até parecem que não sabem ‘falar’. Não, é para manter, no papel e nos artigos ou nos trabalhos que vou escrevendo, aquela riqueza. Que beleza ir para a Parreira (Chamusca) ou para o Casalinho (Alpiarça) e, passadas tantas décadas, ainda ouvir daquelas gentes termos (e mesmo a pronúncia) do Alentejo.
Ainda sobre os ambientes (e já voltarei à pergunta em concreto), sempre que tal é possível, quero manter as conversas nos sítios onde aquilo que me vão transmitir ocorreu. Nas conversas com avieiros, ou seus descendentes, tanta vez que levei os meus parceiros para o Patacão, o Tôco, ou acompanhei-os no barco, a navegar pelas águas da Vala de Alpiarça ou pelo Tejo. Ou ir até ao Reguengo ou Valada do Ribatejo e meter conversa com idosos para me transmitirem não só os seus conhecimentos mas também o que vivenciaram para eu tentar pincelar ambientes dessas épocas. Lembro-me, uma vez, sentado num mureto, nas imediações da estação ferroviária do Reguengo, conseguir ‘ver’ o ambiente daquelas mulheres e homens a chegaram à estação e a despacharem as caixas de sável.
Quanto a episódios em concreto, e já que o tenho que fazer, talvez dois. Um dia, andava muito entusiasmado a escrever uma espécie de monografia dos avieiros no concelho de Alpiarça (há dez anos em suspenso), fui ter com um carpinteiro, o João Pinhão, que a partir de determinada altura fez praticamente todas as barracas dos pescadores, para recolher o seu testemunho. Naquilo surgiu a sua esposa, Patrocínia, norte alentejana, que começa a falar da vinda dos seus pais para o Vale da Lama da Atela. Bem, fiquei estarrecido. Aquilo foi uma verdadeira epopeia. Atirei-me ao tema e escrevi “Os arroteadores do Vale da Lama da Atela e d’outros vais – a saga da terra e do pão”. Continuei a recolher materiais e testemunhos o que veio a dar uma 2ª edição (aumentada) e, se fosse a dar à corda, já poderia sair a 3ª.
Outro episódio. O Angelino “Lagarto” e a sua esposa, Mercedes, entre estórias e lutas, contam-me quando o Angelino, depois de um dia de trabalho no campo e mal alimentado, por acaso para os lados de Santarém, chegado a Alpiarça ao princípio da noite, largou a alcofa do farnel e, não ceando para não perder tempo, marchou de bicicleta para se encontrar com camaradas em Arraiolos, para troca experiências na luta pelas 8 horas nos campos do Ribatejo e Alentejo. Acabada a reunião, altas horas da noite, lá veio aquela alma de bicicleta e, daí a poucas horas, estava a ferrar novamente. Fiquei tão comovido que as lágrimas escorreram-me pela face.

Qual a lição mais importante que se pode retirar da História?
Que, afinal, a História se repete e que os homens nem sempre aprendem (ou gostam de aprender). Depois da profunda derrota que o fascismo sofreu na década de 40, as correntes fascistas aí estão, é certo que envoltas noutras roupagens mas sempre assentes no populismo mais desbragado. Quando olhamos ou estudamos os embriões dessas ascensões fascistas, quantas vezes não nos perguntámos como é que foi possível a maior parte da população não ter percebido o que dali viria, que era mais do que evidente. E agora, estamos a ver?

De onde vem a sua consciência cívica?
Sem dúvida, pelos princípios que os meus pais me transmitiram. Tive uns pais muito bons. Uns grandes pais. E pelo ‘privilégio’ de ter nascido e vivido em Alpiarça. Acho que Alpiarça não nos podia deixar indiferentes ao que se passava em nosso redor. Apesar de não ser oriundo de uma família onde ocorressem grandes dificuldades (o meu pai era fazendeiro), como referi, não se podia ser indiferente (logo que comecei a ganhar consciência política, aos 14/15 anos) para as dificuldades que grande parte da população alpiarcense passava. População essa que nunca baixou os braços. Um povo que, apesar de tanta dificuldade, nunca deixou de viver a vida. As colectividades tinham uma grande pujança, tal como o movimento cultural. O recreativo não lhe ficava atrás, tendo os carnavais de Alpiarça sido dos melhores do Ribatejo. Uma pequena terra donde saíram vultos marcantes em diversas áreas da sociedade.

Esteve sempre ligado ao movimento associativo. O associativismo, actualmente, está em crise?
Dirigente não o fui. Mas envolvi-me com alguma intensidade nesse associativismo, particularmente durante a década de 70, em actividades do C. D. Os Águias, como o grupo de teatro e na sua Secção Cultural, onde havia uma interessante biblioteca. Promovíamos muito a leitura e desenvolveu-se diversas actividades culturais, chegando-se a promover-se espectáculos musicais. Em 1975 fui eleito, por voto secreto, para uma comissão de moradores em Alpiarça.
Na área da leitura, em Alpiarça era n’Os Águias que realizavam feiras do livro (antes do 25 de Abril e nalguns anos seguintes). Foi um belo canal para fazer chegar aos sócios, e não só, livros proibidos pelo regime ou outros que não eram muito acessíveis. Se não me falha a memória a Livraria Apolo, de Santarém, chegou-nos a fornecer livros à consignação.
No princípio da década de 80, já com o associativismo em declínio e, consequentemente, também na área cultural e com um cada vez maior empenho de certas autarquias, como a de Alpiarça, comecei a colaborar em força com o pelouro da Cultura da Câmara da minha terra. Fi-lo na realização de sessões de cinema, nas quais a autarquia envolveu muitos recursos financeiros, na área do desporto e na fundação da Alpiagra – Feira Agrícola e Comercial de Alpiarça, de que muito me honro.
Com o maior individualismo e materialismo que se entranharam na nossa sociedade, as solicitações e as ofertas de ocupação que todos nós vamos tendo, a exigência a nível de qualidade de qualquer iniciativa que se faça (sejam exposições, espectáculos, etc.) e daí os recursos financeiros necessários, as pessoas deixaram de ter grande apego por tudo aquilo que o associativismo representou (e ainda representa). O que mais se houve é “não tenho tempo”.

Os valores do 25 de Abril de 1974 ainda estão bem vivos?
São valores de tal dimensão que, no que me toca, estarão sempre vivos. Se um ou outro estava bem datado, por exemplo, o fim do colonialismo e o subsequente terminar da guerra em África, outros são transversais aos tempos. Por exemplo, a Democracia, o seu aprofundamento, a sua melhoria, é algo que deverá estar sempre ma mira dos democratas. E, nos tempos que decorrem e os que, infelizmente, se avizinham, é importante não descansarmos na parada.

Foto: Vítor Lopes

As novas gerações estão despertas para isso?
Tenho receio que cada vez haja menos comprometimento com esses ideais. Mas não só a nível dos jovens. Também, o que ainda mais me entristece, pelo lado de muitos que passaram as passas do Algarve na sua vida. Uns, por uma enorme descrença no regime democrático (os que efectivamente mandam na União Europeia abrem alamedas cada vez mais largas para “democratas” hoje, ditadores amanhã e os seus populismos), outros porque acham que tudo está ganho. Não está! Viu-se durante a intervenção directa da troika.
Com o fim da chamada “guerra fria” tive esperança que se daria o fim das loucas corridas a armamentos e que esses recursos iriam ser deslocados para o desenvolvimento dos povos e nações. Engano. De um mundo bipolar (não no sentido médico), passou-se para um mundo unipolar, ainda para mais com o poder político subjugado pelos poderes económicos. Tanta coisa, particularmente a nível do Trabalho, da Saúde, da Assistência Social, que achávamos garantida, tiveram-nos enormes retrocessos.

Este ano, o 1º de Maio deve ser assinalado na rua?
Compreendo as preocupações das estruturas dos trabalhadores mas julgo que, também pelo receio que tal possa vir a causar em termos de saúde pública, tais iniciativas tenham pouca adesão popular, o que acabará por diminuir a imagem das organizações sindicais e, por outro lado, o clamor que se irá levantar contra essas iniciativas (veja-se o que aconteceu com a sessão comemorativa do 25 de Abril na AR), causará um ruído tal que a mensagem que os sindicatos pretendem transmitir, nomeadamente alertando e protestando contra os atropelos aos direitos dos trabalhadores e eventuais medidas de austeridade, passará despercebida. E é pena.

Na sua opinião, os movimentos sindicais têm vindo a perder força? Consegue identificar as possíveis causas desse facto?
É uma evidência. Por um lado, por estratégias sindicais desadaptadas aos tempos, por outro pelas grandes dificuldades em penetrar num mundo do trabalho em que o individualismo (mental) e a forma e tipo de empresas que aquele mundo cada vez mais assenta cria.
Também não é positivo – parece-me – o elevado “funcionalismo” em que assentam as estruturas sindicais.
Além do mais, a Liberdade Sindical ainda é uma treta em muitas empresas e para muitas entidades patronais. Por exemplo, perante a elevada precariedade existente, com o desemprego que aí virá, quantos trabalhadores se sentirão verdadeiramente livres para aderir ao movimento sindical?
E é pena porque entendo que o sindicalismo pode ser uma mais-valia para as empresas. É tempo de deixar de se pensar que o que apenas conta é a duração da jornada de trabalho com o esmagamento dos direitos sociais.

Considera que esta crise sanitária poderá cavar fossos mais fundos em termos de desigualdades sociais?
Infelizmente estou convencido que sim. Tal como em crises financeiras recentes, as riquezas imorais aumentaram de forma imoral. O fosso entre o que os gestores de topo e os trabalhadores ganham cavou-se ainda mais. Os que provocaram as crises acabaram por se refortalecer. Os grandes custos recaíram sobre os “peões”.

Quais são as suas principais preocupações quanto ao futuro do País?
Neste momento, o emprego. E para os que o têm, o valor do salário, tendo também em conta que “as gadanhas que já se começam a afiar”. O líder da Oposição, entre outros, já fala em reduzir e/ou cortar nos salários.
Também me preocupa bastante a falta de perspetivas para os jovens, para os baixos salários e a aviltante precariedade. E a continuada falta de capacidade produtiva do país, porque Portugal não pode ser apenas um país de serviços e do turismo. São importantes mas, e o tecido produtivo industrial? As pescas? A agricultura? Esta crise veio, de forma impiedosa, mostrar essas fragilidades (é certo que não só em relação a Portugal). Em Março passado verificámos que nem álcool produzíamos.
Recomeçam os discursos como aquando da governação “passista”, em que se tirou com violência (tecnicamente isso apelida-se de roubo) tanta coisa. Até a esperança e a alegria de viver nos quiseram subtrair.
Lembrando o que tantos lutaram para se reduzir a jornada de trabalho ou para o pagamento do tempo que se trabalhava (com tanto esforço como o que relatei acerca de Angelino “Lagarto”) e assistirmos, no novo milénio, como normal o aumento do horário de trabalho sem a devida compensação financeira e que está novamente a ser colocado em cima da mesa, não é preocupante?
Discursos onde novamente se potencia a inveja, a mesquinhez. Em que se lançam uns contra outros. E aqueloutros mordem o isco. Em vez de se lutar por o que é mais justo, o que se quer é que todos fiquem pelo pior.
Os grandes saltos do Mundo nunca foram assentes nessa tal mesquinhez, na cultura da inveja, mas sim baseados nos princípios mais nobres, como a fraternidade, a igualdade, o fomento do bem-estar social. Pense-se nisto.

Filipe Mendes

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