Carlos Ferreira, ex-director executivo do ACES Lezíria, traça uma linha temporal sobre as transformações do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Portugal. Com uma vasta experiência desde a criação do SNS, Ferreira reflete sobre as conquistas e desafios enfrentados ao longo dos últimos 45 anos, destacando o impacto da pandemia e o futuro dos cuidados de saúde primários num país com uma população cada vez mais envelhecida.

Ao longo da sua carreira, que mudanças mais significativas observou no Serviço Nacional de Saúde (SNS)?

Entrei na área da saúde no dia em que o SNS foi criado, em 1979. Desde então, observei várias mudanças profundas, especialmente nos cuidados de saúde primários. Enquanto os hospitais mantiveram uma estrutura estável e foram melhorando serviços, os cuidados primários começaram praticamente do zero. Inicialmente, eram geridos pela Caixa de Previdência, que mais tarde criou os serviços médico-sociais. Em 1977, esses serviços juntaram-se aos centros de saúde distritais, e foi essa junção que deu origem ao modelo de cuidados de saúde primários que temos hoje.

Esta organização foi, sem dúvida, uma das grandes conquistas do SNS. Conseguimos combinar dois sistemas: um era muito eficiente, a Caixa de Previdência, que realizava muitas consultas, e o outro, os centros de saúde distritais, era mais eficaz, com consultas de maior qualidade. Este equilíbrio permitiu-nos criar um serviço que prestava cuidados tanto em termos de quantidade quanto de qualidade. A criação das Administrações Regionais de Saúde (ARS), em 1982, trouxe uma estrutura de gestão para os cuidados primários, o que coincidiu também com a implementação da primeira carreira de clínica geral em Portugal. Isso foi crucial para integrar os profissionais de saúde que estavam a entrar no SNS, que até então era uma estrutura relativamente nova.

Que desafios enfrentou na gestão dos recursos humanos?

O grande problema no início foi a falta de enfermeiros, mas em Santarém tivemos a sorte de ter uma escola de enfermagem que nos ajudou a atrair mais profissionais para a região. Noutros distritos, como Setúbal, isso foi um desafio maior. Ao longo dos anos, o recrutamento de médicos também foi um obstáculo, especialmente para zonas menos atractivas. Para resolver essa questão, os governos começaram a oferecer subsídios de colocação, que variavam conforme o nível de desenvolvimento do concelho. Em Santarém, os médicos recebiam cerca de 4.500 escudos por mês, enquanto em concelhos mais pequenos, como Alpiarça, esse valor podia chegar a 16.000 escudos. Era uma forma de incentivar os médicos a trabalharem em zonas mais carenciadas.

E como foi o impacto da reorganização dos cuidados de saúde primários nos últimos anos?

Há cerca de 15 anos, houve uma grande reestruturação com a criação das Unidades de Saúde Familiar (USF), organizadas em três modelos: A, B e C. O modelo A foi a primeira forma de organização, mais simples, e à medida que as equipas atingiam os seus objectivos, podiam progredir para o modelo B, que oferecia uma remuneração superior e garantia de maior qualidade nos serviços. No entanto, as USF modelo C, que exigiriam uma gestão privada ou social, nunca foram regulamentadas. A razão principal para isso é a falta de médicos de família. Calcula-se que faltem cerca de mil médicos para cobrir as necessidades das USF em Portugal, e sem esses profissionais, é impossível expandir esse modelo.

Durante a pandemia de COVID-19, o SNS esteve sob grande pressão. Que lições tirou deste período?

A pandemia foi um verdadeiro teste ao SNS. Tivemos de nos adaptar rapidamente com base na experiência anterior da gripe A, em 2009. A maior lição que aprendemos foi a necessidade de criar um sistema mais resiliente, preparado para crises sanitárias de grande dimensão. Muitas unidades de saúde primárias não estavam prontas para receber o volume de doentes que a pandemia trouxe, e isso mostrou que precisamos de melhorar as infra-estruturas e os sistemas de resposta rápida.

No entanto, apesar das dificuldades, o SNS saiu reforçado, principalmente na sua imagem. A resposta do sector privado foi limitada, enquanto o SNS garantiu o atendimento emergente e suportou o grosso da crise. Isso demonstrou o papel insubstituível do SNS em situações de emergência sanitária. Embora o sector privado seja importante, o SNS mostrou ser essencial na resposta a uma crise desta magnitude.

O ACES Lezíria, sob a sua liderança, alcançou o primeiro lugar no ranking dos agrupamentos de saúde. Que estratégias implementou para alcançar esse resultado?

O mérito vai todo para as equipas de profissionais — médicos, enfermeiros, administrativos — que trabalharam incansavelmente para garantir a qualidade dos serviços prestados. A minha função foi principalmente motivar e incentivar essa equipa. Sempre acreditei nas Unidades de Saúde Familiar (USF), porque com elas conseguimos criar uma cobertura mais eficaz dos cuidados de saúde primários. O segredo foi criar um ambiente de competitividade saudável entre as equipas, incentivando a melhoria contínua e partilhando as boas práticas entre os diferentes serviços.

A campanha de vacinação contra a COVID-19 foi um exemplo claro do sucesso desta estratégia. Conseguimos uma das maiores coberturas vacinais do país, mas é preciso reconhecer que isso teve um custo temporário nos cuidados primários. Durante esse período, muitos profissionais de saúde foram desviados das suas funções regulares para garantir a vacinação, o que atrasou outros serviços importantes.

A pressão exercida sobre os cuidados primários durante a pandemia teve consequências a longo prazo?

Sim, teve um impacto significativo. Como muitos profissionais de saúde foram desviados para a campanha de vacinação, houve um atraso na prestação de cuidados regulares. Consultas de rotina e acompanhamentos de doenças crónicas foram adiados ou cancelados, o que criou uma pressão adicional sobre o sistema quando as actividades começaram a voltar ao normal. Agora, estamos a tentar recuperar o tempo perdido, mas é um processo lento, e a falta de médicos de família agrava ainda mais essa situação.

Com o envelhecimento da população, o que considera que o SNS deve fazer para responder eficazmente?

O envelhecimento da população é um dos maiores desafios que o SNS enfrenta. Muitos idosos vão ao centro de saúde não por necessidade médica, mas para socializar. Há aqui uma questão de saúde mental que não podemos ignorar. Algo que discutimos ao longo dos anos foi a criação de animadores sociais nos centros de saúde, pessoas que pudessem interagir com os idosos e ajudá-los a sentir-se menos isolados. Isso poderia aliviar a pressão sobre os médicos, permitindo que se concentrassem nos doentes que realmente necessitam de cuidados médicos.

Também é fundamental melhorar a organização dos cuidados primários, com Unidades de Saúde Familiar (USF) a funcionar em pleno, garantindo um acompanhamento regular e eficaz da população idosa. É preciso assegurar que os doentes sejam devidamente encaminhados para os hospitais quando necessário, mas também que os hospitais não sejam o primeiro recurso para situações que podem ser tratadas nos cuidados primários.

Acha que os cuidados de saúde mental estão adequadamente integrados no SNS?

A saúde mental tem evoluído, mas ainda há muito a fazer. Nos cuidados primários, temos as Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC), que fazem um trabalho importante, mas a articulação com os serviços hospitalares ainda não é tão forte quanto deveria ser. O grande potencial das Unidades Locais de Saúde (ULS) seria integrar melhor esses serviços, mas isso ainda não está totalmente concretizado.

Além disso, o Centro de Atendimento a Toxicodependentes (CAT) também desempenha um papel crucial no apoio à saúde mental, mas com a extinção da ARS, ainda não sabemos como este serviço foi integrado nas ULS. Acredito que precisamos de avaliar essa integração e garantir que o serviço continua a ser prestado de forma eficiente e abrangente.

Que qualidades são essenciais para um gestor eficaz no SNS?

Liderança é a palavra-chave. Um bom gestor tem de acreditar nas suas equipas, motivá-las e dar-lhes autonomia. É fundamental criar um espírito de equipa, onde todos se sintam responsáveis pelo sucesso do serviço. Para além disso, é importante saber quando um profissional precisa de descansar. O SNS é feito de pessoas, e cuidar bem dessas pessoas é essencial para que o sistema funcione.

A gestão não é apenas sobre recursos financeiros, é sobre pessoas. Por vezes, conseguimos fazer muito com poucos recursos, desde que haja vontade e espírito de equipa. No ACES Lezíria, conseguimos transformar um edifício abandonado em São Bento numa unidade de saúde, e não nos custou um tostão, porque utilizámos fundos comunitários e recursos já existentes. Quando há vontade, as coisas acontecem.

O SNS enfrenta desafios significativos. O que considera mais urgente para garantir a sua sustentabilidade?

A falta de recursos humanos é, sem dúvida, o problema mais urgente. Não temos médicos e enfermeiros suficientes, e sem eles é impossível prestar os cuidados que a população precisa. Precisamos de investir na formação de novos profissionais e de criar condições que atraiam e retenham esses profissionais no SNS. Além disso, a reorganização dos cuidados de saúde primários e a implementação das USF modelo C poderão ajudar a aliviar a pressão, mas, FRISO, só se houver médicos suficientes para preencher essas vagas.

Filipe Mendes

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