Comerciantes despediram-se na passada semana do mercado diário que vai ser intervencionado. O projecto visa aliar o restauro do edifício, classificado como Monumento de Interesse Público em 2012, a uma leitura actual do contexto urbano em que se insere. Os vendedores e lojistas têm a Casa do Campino como alternativa para continuarem os seus negócios, enquanto decorrerem as obras.
O Mercado Municipal de Santarém encerrou portas na última quarta-feira, dia 31 de Julho, a fim de ser lançada a obra de reabilitação do edifício, num investimento aproximado de dois milhões de euros.
Entre os comerciantes do ‘velho’ mercado diário, há um misto de resignação e revolta pela forma como o processo foi conduzido. Dizem-se excluídos, e é com mágoa e incerteza que olham para o futuro.
Na velha praça comenta-se à boca pequena que as obras são o culminar de um lento processo de agonia que se vinha a instalar, progressivamente, há vários anos.
Mário Almeida conhece de olhos fechados cada canto do Mercado Municipal de Santarém: “praticamente nasci cá”, conta, enquanto arruma a sua banca, que teve de desocupar.
Com mais de meio século “de mercado”, foi testemunha das mudanças que se operaram no comércio, no país, e no mercado diário que agora será, segundo garante, “transformado num ‘shopping’”.
Mário sempre esteve na linha da frente daqueles que defendem a modernização do Mercado Municipal. Os projectos foram vários, mas só agora foi possível avançar. No entanto, afirma, o processo “nunca foi negociado com os comerciantes”.
“Foi tudo muito mal feito. A nível nacional, é dos piores. Em todo o país, os mercados têm sido remodelados com acordo dos vendedores. Aqui, é a única câmara que não dialoga. Apenas fez uma coisa: desprezou-nos e rua. Fomos despejados daqui. Houve má vontade e estamos tristes por isso”, disse ao Correio do Ribatejo.
Em causa está um Edital que a autarquia fez afixar na Praça datado de 22 de Julho, em que dava cinco dias para os comerciantes desocuparem todas as lojas e bancas do Mercado Municipal, entregando-as ao Município de Santarém “totalmente limpas, livres e devolutas de pessoas e bens, sendo que se não o fizerem até ao final do prazo que lhes é concedido será imediata e coercivamente efectuada a desocupação com recurso às Autoridades Policiais”.
“Fomos despejados e, ainda por cima, com ameaça de polícia… Somos mandados para a Casa do Campino. Transportes não há… quem lá vai? Ninguém. É uma tristeza… não choro porque não vale a pena”, desabafou.
O mesmo sentimento é partilhado por Susana Silveira: estou cá [na Praça] há 17 anos. A minha avó esteve cá toda a vida… é de família, passou dela para mim”, contou.
Esta comerciante acredita que a requalificação projectada não irá trazer benefícios à cidade: “a ideia que fica é que isto vai ser mais um centro comercial do que um mercado tradicional. Ou seja: numa altura em que muita gente está a voltar-se para este género de mercados tradicionais, é que este fecha. Não faz sentido”, afirmou.
“As pessoas agora querem é mercados tradicionais. Não querem mais centros comerciais. Acho que as coisas deveriam ter sido encaminhadas e feitas de outra maneira, falando bem connosco e ouvindo-nos. Foi coisa que nunca foi feita. Nunca ouviram as nossas necessidades e tudo foi feito sem diálogo”, contou.
“A minha avó viveu toda a sua vida aqui. Sempre ouvi falar nisto, continuei nisto e, agora, estamos sem nada e sem perspectivas de futuro. Vamos para casa sem nada”, desabafou, sem esconder a mágoa que sente.
Segundo disse, as obras vão trazer uma consequente “actualização dos valores pagos pelos espaços de comércio”, para além de implicar investimentos avultados nas novas lojas, suportadas pelos arrendatários; uma situação que poderá tornar-se inviável economicamente caso não haja um aumento de clientes.
“Quem nos dá garantias?”, interroga, esclarecendo que os comerciantes pagam pelo espaço, não um aluguer, mas sim uma taxa de utilização de Feiras e Mercados, e não têm sequer recibos ou contratos de locação, fruto de um regulamento que tem mais de 70 anos e nunca foi actualizado.
A luta dos comerciantes arrastou-se cerca de um ano. Pelo meio, foi lançada uma petição, que reuniu 1700 assinaturas, e interposta uma providência cautelar – que ainda corre nos Tribunais – para impedir o arranque das obras no edifício até que sejam acautelados o que consideram ser os seus direitos. Nenhuma destas acções surtiu efeito.
Concessão a privados
O presidente da Câmara Municipal de Santarém, Ricardo Gonçalves, já fez saber que é intenção da autarquia a concessão da gestão do espaço a um privado, mediante concurso público.
O autarca quer “um mercado dinâmico, que não feche às três da tarde”, reafirmando que “todos poderão concorrer em pé de igualdade”.
Esta decisão esteve no centro do descontentamento dos vendedores, que não aceitam ter de vir a concorrer em igualdade de circunstâncias com outros candidatos, invocando o facto de estarem há décadas neste espaço.
Ricardo Gonçalves afirmou, na altura, que os vendedores das bancas, que actualmente rondam uma dúzia, não terão dificuldade em manter-se no espaço, uma vez que o número de lugares disponível será maior, o que poderá não acontecer com os lojistas.
O autarca diz não ser possível, legalmente, atender às exigências que são colocadas, tanto na concessão de prioridade como no eventual pagamento de indemnizações, dado que as licenças “são precárias e não têm direitos adquiridos”.
A autarquia já fez saber que foram feitos contactos com várias empresas que exploram mercados similares noutras cidades.
Entretanto, a vereadora responsável por este processo, Cristina Casanova garantiu que os vendedores e lojistas têm a Casa do Campino como alternativa para continuarem os seus negócios, enquanto decorrerem as obras.
Projecto arrojado
A intervenção proposta para o mercado, com uma duração prevista de 12 meses, procura aliar o restauro do edifício, classificado como Monumento de Interesse Público em 2012, a uma leitura actual do contexto urbano em que se insere, refere a proposta aprovada pelo município.
Esta requalificação visa associar a gastronomia à promoção turística e à valorização da produção local, temas que estão presentes no projecto de Paulo Durão, considerado em 2013 um dos jovens arquitectos mais promissores pela Wallpaper Magazine.
As obras incluem a recuperação integral do espaço com o objectivo de reparar todos os danos estruturais existentes, criando uma área moderna e funcional, destinada a ser vivida diariamente.
O valor base da empreitada é de 1,8 milhões de euros, acrescido de IVA e o prazo de execução previsto para a empreitada é de 12 meses. O projecto, além da “reabilitação profunda” necessária para a conservação e modernização do edifício, visa “repensar do modo de funcionamento do mercado”.
Segundo Paulo Durão, hoje, o mercado encerra, nele próprio, “a oportunidade de repensar um modo de funcionamento que vá ao encontro da ideia de ponto central na cidade. Um ponto de encontro”.
“O comércio de proximidade, qualidade de produtos locais, é sem dúvida uma aposta, ao mesmo tempo que se procuram criar espaços diferenciados que atraiam e façam ali permanecer os utilizadores”, refere.
Assim, a proposta passa pela opção de demolir toda a Praça do Mercado, criando um novo plano em pedra horizontal, onde, nos eixos que constroem as entradas do mercado se dispõem novos módulos do mercado diário, criando “duas ruas” que partem a grande praça em quatro praças menores.
A grande praça, envolvida pelas lojas da cintura periférica existente é “subdividida em quatro pequenas praças, definidas pela introdução e disposição de novos módulos de mercado diário”.
O centro do futuro mercado será uma “área em forma de cruz”, com 36 bancas destinadas ao mercado diário, que terão em seu redor quatro praças, uma delas destinada a instalar o posto de turismo e as outras destinadas a restauração.
As lojas exteriores também serão recuperadas para a instalação de actividades comerciais diversas, desde artesanato a gelataria, passando por florista, vinhos e loja de conveniência, entre outros.
“O projecto reabilita e requalifica a obra existente, propondo uma transformação efectiva da vivência e do habitar no espaço do mercado. Transformação que resulta na existência futura de uma praça coberta no actual espaço da nave central. Praça que acumulará as funcionalidades de mercado diário e simultaneamente de espaços de permanência, envolvida por um conjunto de espaços comerciais. Ideia que pretende concentrar as vivências quotidianas na praça central do Mercado Municipal de Santarém”, explica o arquitecto.
“Mercado de Santarém: Passado, presente e futuro”
“Mercado de Santarém: Passado, presente e futuro” foi o tema da tertúlia organizada na quinta-feira, dia 25, pela AMSIC – Associação Mais Santarém-Intervenção Cívica, que teve lugar no restaurante Varanda do Parque no Cnema.
O encontro colocou em diálogo as perspectivas de dois arquitectos habituados a pensar a cidade: José Augusto Rodrigues e Carlos Guedes de Amorim. Ambos concordam com a necessidade de obras no mercado, mas deixaram alguns reparos quanto à necessidade de equacionar a utilização futura do espaço, após as obras, pelo que seria importante existir um programa que contemplasse questões de mobilidade e estacionamento.
Para Guedes de Amorim, o mais importante, depois da requalificação, será definir a função de cada uma das lojas: “não é indiferente, para o sucesso daquele espaço, o tipo de estabelecimentos”, afirmou.
“As pessoas, hoje, estão muito atentas ao factor qualidade. Para a cidade de Santarém, é importante que a obra se concretize porque vai permitir uma diversidade de utilizações que poderá ser muito interessante”, apontou, considerando ser necessário resolver as questões de estacionamento e de cargas e descargas.
Questões que também para José Augusto Rodrigues são fulcrais: “do que eu conheço do projecto, falta-lhe enquadramento e estratégia”, afirmou, apontando que ficaram de fora as “áreas técnicas”, assim como o parqueamento e a logística dos transportes de mercadorias.
“O problema do Mercado é o problema da cidade. E muito se deve ao estacionamento pago”, apontou José Augusto Rodrigues, arquitecto que desenvolveu, há uns anos, um projecto de requalificação do edifício que acabou por não sair do papel.
Construído em 1930, com base no projecto do arquitecto Cassiano Branco, o mercado municipal veio substituir o mercado ao ar livre que sobreviveu durante séculos na Praça Visconde Serra do Pilar, conhecida como Praça Velha.
Um edifício de Cassiano Branco que estava fora dos inventários
Foi precisamente José Augusto Rodrigues que descobriu, em 1990, por mero acaso e curiosidade pessoal, que o projecto do Mercado Municipal é da autoria do famoso arquitecto Cassiano Branco que assinou várias outras notáveis obras de arquitectura portuguesa do século XX, como o Teatro Eden em Lisboa.
José Augusto Rodrigues lembrou o “percurso notável” de Cassiano Branco, nome relevante no contexto da arquitectura nacional, que “virou a página das tradições rudimentares e arcaicas para uma actualidade moderna e vanguardista”.
Por todo o país, foi responsável por uma série de obras públicas e privadas, onde se fez denotar pela sofisticação, e pela necessidade de imprimir uma nova imagem daquilo que era uma nação ainda submergida na história.
“Se Portugal ficou a conjugar o presente e o futuro, também o deve a um arquitecto que, ao lado daquilo que erigiu, se assume como uma referência na renovação instrumental e direccional da realidade nacional”, afirmou.
Cassiano Branco tornar-se-ia numa referência na arquitectura nacional, culminando no legado que perpetuou até aos dias de hoje. Personalidade descortinada e explorada pelo meio académico, tanto através de teses, como de ensaios, destacou-se pela inauguração de uma nova e renovada página na história da edificação nacional.
“O fulgor modernista que incorporou nas várias viagens que fez foram sustento para o seu trabalho, não obstante o “Portugal suave” do regime salazarista. Apesar de grande parte das obras ter soçobrado perante as novas gerações de planeamento urbanístico e arquitectónico, a sua referência não mais se perdeu no mapa de personalidades influentes e irreverentes no panorama cultural nacional”, explanou.
Segundo José Augusto Rodrigues, o Mercado de Santarém é, pois, uma obra “que contém aspectos extraordinários e de relevante interesse arquitectónico”, alertando para a necessidade de actuar com “responsabilidade” neste edifício.
Famoso pelos seus painéis de azulejos, 55 figurativos e oito decorativos, que revestem os vãos das portas exteriores das lojas nas alas directamente ligadas à via pública, o mercado poderá agora reassumir-se como o centro das actividades económicas e sociais do Ribatejo.