O veículo automóvel faz parte da sociedade em que vivemos, como instrumento de trabalho — caso dos veículos comerciais, de transporte de mercadorias e de passageiros — e de lazer, resultante da liberdade de circulação, o que levou a uma utilização massiva e simultânea. O uso massivo dos veículos a motor acarreta, contudo, riscos para todos os utentes das vias de circulação, consequência do congestionamento dos acessos aos centros urbanos, das condições climatéricas, do estado das vias e dos próprios veículos, a que acresce o comportamento dos condutores e peões com desrespeito das normas de segurança.
Tal factualidade implicou a aprovação de normas reguladoras de circulação rodoviária, impondo regras para condutores e peões, de molde a garantir a segurança de todos os inúmeros utentes da via pública. O condutor, que detém o controlo do veículo, tem a obrigação de ter atenção às características do local por onde circula e adoptar as medidas necessárias tendentes a evitar acidentes, circulando dentro das devidas regras de segurança.
Esse fenómeno — acidentes de viação — é comum a todos os países onde haja estradas e circulem veículos, resultado da sociedade motorizada em que vivemos. De acordo com informação divulgada pelo ACP (Automóvel Clube de Portugal), com base em elementos que terá colhido junto da GNR, as principais causas de acidentes são: excesso de velocidade, consumo de álcool pelos condutores e desrespeito pela cedência de passagem; os acidentes resultam principalmente de colisão, atropelamento e despiste; os motociclos estão envolvidos em grande número de acidentes, assim como os pesados e depois os ligeiros; o maior número de atropelamentos dos peões tem lugar nas passagens sinalizadas (passadeiras); o maior número de acidentes ocorre habitualmente nas denominadas horas de ponta; no maior número de acidentes são intervenientes condutores com idade compreendida entre os 20 e os 29 anos de idade; o maior número de acidentes com vítimas mortais tem como intervenientes condutores com carta há mais de 20 anos.
Com a evolução da construção automóvel e com o recurso e aplicação de dispositivos com Inteligência artificial (IA) nos novos veículos, que lhes permite circular sem a intervenção humana, será previsível a redução dos acidentes rodoviários, uma vez que a maioria desses acidentes, hoje em dia, resultam de erros humanos. Com o recurso a tais veículos de circulação autónoma será possível todos poderem usufruir do uso dos mesmos, como acontecerá a pessoas com incapacidades, menores ou idosos, em igualdade de condições dos demais cidadãos.
A introdução no mercado e utilização de veículos automóveis autónomos (VAA) contribuirá para um “admirável mundo novo”. De facto, vivenciamos um mundo novo, onde veículos sem um condutor humano não são uma realidade tão longínqua como anteriormente se imaginava. No entanto, para que este “mundo novo” seja de facto “admirável”, urge a necessidade de regulamentação jurídica neste campo tecnológico, atendendo a uma antecipação de eventuais problemas jurídico-penais relacionados com acidentes provocados por VAA. Acresce que, esta regulação deve ser dinâmica “pressupondo uma resposta adequada ao grau de conhecimento do concreto produto. Além disso, cremos que as averiguações de eventuais responsabilidades deverão ser realizadas antes de estes produtos dinâmicos estarem à disposição dos condutores e demais cidadãos.
Mas, prevendo-se uma redução substancial dos acidentes de viação, tal não significa a sua completa eliminação, pois os comportamentos humanos são e continuarão a caracterizar-se pela sua imprevisibilidade nas mais variadas circunstâncias (v.g. peões negligentes), assim como outras circunstâncias imprevisíveis (animais que surgem repentinamente na via, más condições atmosféricas, vias de trânsito com obstáculos inesperados…).
A quem deverá ser atribuída a responsabilidade criminal por um acidente provocado por um Veículo Automóvel Autónomo, cujo resultado danoso decorreu, não de uma qualquer intenção humana, mas de um algoritmo? O produtor? O programador? O utilizador? A própria máquina? Em princípio só as pessoas podem ser responsabilizadas criminalmente (sejam pessoas singulares ou colectivas), surge o problema de saber como programar os crash-algorithms nos carros de condução autónoma. Desde logo porque no caso de acidentes com vítimas (no que concerne à responsabilidade civil seguir-se-á a regra geral), como responder a essa situação em termos jurídico-penais, isto é, além da imputação do resultado provocado pelo veículo com piloto automático, como se deve configurar o software para este tipo de veículos para responder a situações de emergência? Não pode deixar de se responder que quando ocorram acidentes em que o veículo de condução autónoma seja interveniente, a responsabilidade criminal apenas terá como possíveis candidatos, numa primeira abordagem: o ocupante ou o fabricante do veículo. Contudo, não pode ignorar-se o facto de o ocupante não ter tido qualquer poder de decisão sobre a programação do veículo relativamente à forma como o mesmo deve reagir numa situação de emergência e que seja interveniente num acidente de viação de que resultem ofensas à integridade física ou à vida de terceiros, assim como danos materiais. Ora, não tendo tido o utente qualquer poder de decisão sobre a programação do veículo (que estabeleceu as regras de circulação), parece lógico não se justificar a sua responsabilidade criminal — tanto mais assim que o utente/proprietário do veículo não iria adquirir um veículo que não controla e, depois, ser responsabilizado pelas opções do fabricante/programador constantes do respectivo software respeitantes à condução. Daqui resulta que a responsabilidade, em termos criminais, poder ser do fabricante/ programador informático, pois são eles que determinam como vai o veículo reagir em casos de emergência e situações imprevistas. Como programar, pois, o veículo para garantir sempre a segurança do utente, quando colocado em situação de conflito de interesses com terceiros que serão atingidos e desse embate lhes resultem ofensas à integridade física ou a morte? Haverá situações em que, pela sua imprevisibilidade, os veículos autónomos podem encontrar um peão que aparece bruscamente na faixa de rodagem, fora do local assinalado para a travessia de peões (passadeira). Como deverá o veículo ser programado para reagir a essa situação, sendo certo que no passeio lateral (local de fuga) se encontram pessoas a caminhar e na eventualidade de o programa prever que numa situação dessas deve desviar-se para o passeio para evitar o atropelamento do peão que surgiu repentina e imprevistamente na via, atingindo aqueles que caminham em segurança e em cumprimento aos regulamentos e normas aplicáveis, sendo certo que se atingisse o peão que apareceu bruscamente lhe poderia causar a morte e apenas lesões corporais ligeiras aos peões que seguiam pelo passeio? Sendo o direito penal um direito de protecção de bens jurídicos, surge a questão de saber como, numa ‘nova sociedade, global e de risco, caótica e de fluxos instantâneos, marcada pelos desenvolvimentos tecnológicos poderosíssimos, reage a sociedade aos casos de sinistros rodoviários em que sejam intervenientes veículos de condução autónoma. À falta de um condutor humano, surge a seguinte pergunta: como deve o veículo se comportar diante de uma situação dilemática em que a lesão à vida, à integridade física ou ao património do passageiro e/ou de terceiros faz-se inevitável? Uma resposta segura a essa indagação é condição essencial para que os veículos possam ser introduzidos no tráfego viário. Afinal, é preciso estabelecer bases jurídicas sólidas para sua programação, de modo que aqueles envolvidos em sua pesquisa, fabricação, venda, manutenção e uso possam compreender os riscos — aqui, sobretudo os penais — e os deveres legais envolvidos na introdução da inteligência artificial no tráfego viário. Naturalmente, diante da inexistência (atual) de uma responsabilidade penal da própria pessoa jurídica para os casos de cometimento de delitos contra a vida ou integridade física, cumpre especular apenas a respeito da responsabilidade penal das pessoas naturais envolvidas na decisão de introduzir o veículo autônomo no mercado. Também o comprador do veículo deve estar ciente das decisões tomadas pelo programador: alguém compraria um veículo programado para matar os seus ocupantes em caso de situação dilemática? A outra opção seria a de simplesmente renunciar à introdução de tais sistemas autônomos, o que talvez mereça o labéu de temerário em face da anunciada promessa de drástica redução de mortes no trânsito que advoga em seu favor. A programação deverá respeitar os critérios de ilicitude, não podendo ser aleatória ou arbitrária. Não há programas que abarquem todas as situações possíveis. Do exposto, resulta clara a urgente necessidade de ser elaborada regulamentação específica sobre a matéria antes da sua introdução ou da existência da dita “condução autónoma”, de forma a prevenir não só os acidentes, mas também a que estejam sujeitas a uma clara responsabilização pelo facto, em caso de acidentes.
Amanhã sairemos de porta de nossas casas e encontraremos em circulação, nas estradas portuguesas, veículo automóvel autónomo que, dada as suas características inerentes, existe a previsão que irão falhar, pelo que surge a necessidade de repensar nas categorias clássicas do direito penal e adaptá-las a esta nova realidade. Este é o momento.