“Salgueiro Maia – O Implicado” constitui-se como o primeiro retrato projectado no grande ecrã daquele que é considerado o herói e o símbolo mais puro do 25 de Abril de 1974.

Fernando Salgueiro Maia foi um homem que soube pensar o futuro, seguir as ideias, contestando-as, vivendo uma vida cheia, alegre e fértil, solidária e, também sofrida.

O filme biográfico sobre o capitão de Abril, que estreou na passada semana nas salas de cinema, propõe uma abordagem intimista e emocional, retratando as histórias que ainda não foram contadas, tentando fazer “pequenas revelações” que permitem perceber melhor de onde vinha a moderação, a valentia, a educação e a firmeza com que sempre se apresentou publicamente, e que foram a chave para que a Revolução dos Cravos tenha sido como foi.

Realizado por Sérgio Graciano, o filme “Salgueiro Maia – O Implicado” é uma história de ficção baseada em factos históricos, relatos pessoais, e emoções reais de quem acompanhou o capitão ao longo de toda a vida. Um filme que revela o outro lado de uma personagem mítica e que presta homenagem ao homem, ao estudante, ao militar, ao pai, ao amigo e ao ímpar militar de Abril.

Em conversa com o Correio do Ribatejo, Natércia Maia, viúva do Capitão, considerou o filme “demasiado romanceado”: “Sei que tem que ser assim, mas acho que há coisas que se estivessem mais próximas da realidade seriam mais positivas. Em relação à minha pessoa [interpretada pela actriz Filipa Areosa] achei romanceado até dizer basta. Não tem nada a ver com a minha maneira de ser, mas isso pouca importância tem”, diz, com um sorriso.

Em particular, Natércia Maia gostaria de ver projectado no grande ecrã o carisma de Salgueiro Maia, e dá um exemplo: “ele, por vezes, contava a um grupo de amigos como tinha entrado no gabinete do Professor Marcelo Caetano, com um ar de certo ‘gozo’. Ele gostava de contar: “bati os tacões das botas, fiz continência, e disse “apresenta-se o comandante das forças sitiantes. O Sr. já não governa”, era mais ou menos isto que ele contava”, recorda ao nosso jornal.

“Eu talvez não seja muito boa para fazer uma análise do filme… mas é aquilo que eu sinto…”, confessa Natércia que assistiu à antestreia da película no CCB, em Lisboa.
Para Natércia Maia, o filme passa um pouco ao de leve sobre as complexidades dos personagens, as controvérsias políticas e pessoais do Capitão de Abril, chegando a apresentar Delfim Tavares de Almeida, amigo de Maia e colega de curso, quase como “uma muleta” do Capitão de Abril.

“Todos o conhecem como sendo um homem de decisões rápidas e muito determinado, e o filme transmite uma ideia errada: parece que anda ali o Delfim sempre, “Oh Maia isto”, “Oh Maia aquilo”. Quase que passa a imagem de coitadinho. E há outra faceta dele que eu acho que não passa: o que ele era em família, com os amigos. Ele [Salgueiro Maia] era uma pessoa alegre, bem-disposta, franca, com um enorme sentido de humor e disponível para os amigos”, afirma.

“Mesmo na guerra, era uma pessoa decidida”, reforçou contando que, quando esteve na Guiné, com os camaradas de armas, e já estavam para regressar porque tinha acabado a comissão, “o General Spínola disse para não entregarem as armas porque tinham que ir a Guidaje, na fronteira entre a Guiné e o Senegal. Todas as colunas que iam para lá eram atacadas, havia mortes e, na altura, também haviam poucos oficiais. Ele dizia ” a minha preocupação é trazer os homens todos vivos, o que, felizmente, aconteceu”.

Na opinião de Natércia Maia, este é um filme mais sobre um homem nostálgico e, de certo modo, amargo com a vida — filho único e órfão, perdeu a mãe num atropelamento aos 4 anos de idade — e menos sobre o herói nacional.

“Querem dar a ideia que ele é mais que o 25 de Abril – que foi feito por muita gente – eu compreendo. Ele teve senso e calma para evitar sangue… se fosse outro que estivesse no lugar dele, não sei como poderia ser”, desabafa.

“Ele não é só 25 de Abril, e o 25 de Abril não é só Salgueiro Maia”, reafirma.

Questionada pelo Correio do Ribatejo sobre se Salgueiro Maia tinha o hábito de partilhar o seu dia-a-dia, Natércia é peremptória: “Não. Ele não era de contar. Eu as vezes dizia “Oh Fernando, conta lá coisas “, e ele respondia “coisas” (risos). Mas tinha desabafos…. Houve uma altura em que ele me disse que ia sair da Escola [Prática de Cavalaria] porque não estava para aturar aqueles oficiais mais novos. Eu disse que achava mal, porque se saísse estava a fazer o jogo deles”, contou, confidenciando que ele se sentiu “muito magoado” por ter sido colocado nos Açores pela hierarquia militar, durante um ano.

“A sua integridade e frontalidade eram incómodos. Foi por isso que tiveram essa decisão. Pensaram certamente: “este individuo faz-nos sombra. Vamos metê-lo na prateleira”. Mas ele não ligava a esse tipo de coisas. Ele fazia o que entendia que devia fazer, mas isso feriu-o”, afirma.

Salgueiro Maia haveria de regressar ao continente em 1979, para comandar o Presídio Militar de Santa Margarida e só em 1984 regressou à sua unidade, na EPC.

Mas esses tempos, longe da família, foram difíceis: “Apesar de tudo, sempre fui feliz. O meu marido participou no 25 de Abril e era conhecido por isso. Mas, independentemente do 25 de Abril, ele era uma pessoa especial. Com qualidades e defeitos, que falava alto, que cantava desafinado, que não se encolhia, que foi maltratado depois de protagonizar a História”, conclui.

Natércia Maia com os actores e o biógrafo durante as gravações do filme ” O Implicado”

O homem antes do herói

Fernando José Salgueiro Maia nasceu no dia 1 de Julho de 1944, em Castelo de Vide, onde viveu os primeiros anos de sua vida.

Filho de um ferroviário, Francisco da Luz Maia, Fernando José ficou órfão de mãe (D. Francisca Silvério Salgueiro) ainda muito novo. Devido a profissão do pai, várias foram as cidades nas quais morou: Tomar, Leiria, Pombal, Valença, Santarém.

Concluído o 7º ano do Liceu, em Leiria, ingressou na Academia Militar em Outubro de 1964. A guerra colonial, que havia começado em 1961, àquela altura já se estendia às regiões de Angola, Moçambique e Guiné. No final de 1966 apresenta-se na Escola Prática de Cavalaria, seguindo um tempo depois para sua primeira comissão em Moçambique.

“O curso da Academia tinha quatro anos, mas como havia falta de capitães o governo criou cursos intensivos de apenas três. Depois fazia-se o estágio na própria guerra. Foi o que aconteceu com meu marido”, explica Natércia Maia. A partir daí, os caminhos da revolução começaram a ser trilhados.

Salgueiro Maia passou a incomodar os quadros superiores de Exército, com seu espírito crítico e independente. Rejeitou cargos e privilégios dentro do governo que ajudou a instaurar. Desejava continuar apenas como um operacional, dentro da Escola Prática de Cavalaria, o que não veio a acontecer. Foi enviado para os Açores e posteriormente para outras unidades militares, desempenhando sempre tarefas burocráticas dentro de escritórios, as quais abominava. “Mesmo assim cumpriu com dedicação todas suas tarefas e missões”, orgulha-se Natércia.

“A pretexto do cumprimento de escalas, ele e muitos outros capitães foram designados para exercer funções, não menos honradas, mas de menor importância para militares que haviam operado uma revolução”, refere.

Fernando José Salgueiro Maia faleceu no dia 4 de Abril de 1992, com 47 anos. O militar, que àquela altura ocupava o posto de tenente-coronel, deixou ainda dois filhos, Catarina e Filipe.

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