Filipe Palavras, responsável da delegação de Santarém da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla
Estima-se que em todo o mundo existam cerca de 2.500.000 pessoas com Esclerose Múltipla, em Portugal são mais de 5000 doentes, estimando-se uma prevalência de 50 casos por cada 100 mil habitantes. O acompanhamento destes doentes requer uma abordagem multidisciplinar, envolvendo várias especialidades médicas e tendo em conta o impacte da doença na vida da pessoa. No passado dia 30 de Maio, assinalou-se o Dia Mundial da Esclerose Múltipla e, a esse propósito, o Correio do Ribatejo entrevistou o médico Filipe Palavras, responsável da delegação de Santarém da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM), uma delegação recente e vem dar resposta às necessidades dos doentes e famílias da região.
A Esclerose Múltipla começa a manifestar-se frequentemente entre os 20 e os 40 anos de idade, apresentando-se com uma maior incidência nas mulheres em relação aos homens, pelo que o diagnóstico precoce e o tratamento adequado são fundamentais para melhorar a qualidade de vidas das pessoas portadoras desta doença.
Como a Esclerose Múltipla é uma doença que afecta o sistema nervoso central (SNC) e este sistema controla a maior parte das funções do organismo, podem surgir uma grande variedade de sintomas, tais como fadiga, dificuldade em andar, problemas de visão, dormência ou formigueiro no corpo, dor e comichão, espasmos, fraqueza, tonturas e vertigens, problemas de bexiga ou intestinais, alterações cognitivas ou emocionais e problemas sexuais.
Quais são os principais sintomas da esclerose múltipla?
Na Esclerose Múltipla, aquilo que caracteriza a própria fisiopatologia da doença é o aparecimento de lesões dispersas pelo Sistema Nervoso Central, em que existe desmielinização. Ora, a localização dessas lesões é que vai justificar as manifestações clínicas e os sintomas que podem eventualmente ocorrer na pessoa com um diagnóstico de Esclerose Múltipla. Nós diríamos que existem algumas manifestações que são muito típicas ou que são muito sugestivas e nós perante essas, temos obrigatoriamente que pensar nesta possibilidade diagnóstica, nomeadamente no jovem adulto. E a que manifestações é que me refiro? À neuromielite óptica em primeiro lugar, uma situação em que a pessoa tem algumas dificuldades de visão, muitas das vezes descreve-nos como se fosse uma tela a cair sobre o olho. O olho também dói quando faz alguns movimentos, as cores perdem o seu brilho natural. Estas queixas, como digo, num adulto jovem, devem fazer-nos pensar na possibilidade diagnóstica de uma neuromielite óptica, que é uma das manifestações muito sugestivas do diagnóstico de Esclerose Múltipla.
Para além disso, temos outro tipo de manifestações, envolvendo o tronco cerebral e aqui de que é que as pessoas se podem queixar? De desequilíbrio, de falta de coordenação na realização das suas actividades, dificuldades na marcha, de visão dupla e muitas das vezes, de falta de força e de alterações da sensibilidade envolvendo os membros, e com esta localização, os quatro membros. Porque também podem existir, de facto, outras alterações clínicas envolvendo, por exemplo, só os membros inferiores ou se porventura houver manifestações envolvendo os superiores, terá que ser uma localização um bocado diferente para esta lesão. Refiro-me aos síndromes de mielite. A mielite é a lesão da medula espinal e, quando aparece uma lesão inflamatória com esta localização, o que é que pode acontecer? Pode acontecer falta de força e alterações de sensibilidade do nível onde se encontra essa lesão para baixo e, para além disso, também podem acontecer queixas ficterianas. A bexiga deixa de funcionar convenientemente e às vezes também, de forma mais ou menos paralela, o esfincter anal também pode deixar de funcionar convenientemente e a pessoa pode ter incontinência fecal ou urinária, ou pelo contrário, ficar depois com uma bexiga que retém urina e que depois que se esvazia subitamente sem que haja grande controlo sobre isso. Tirando estas manifestações com estas localizações mais sugestivas das lesões de esclerose múltipla, é possível que possam surgir muitas outras queixas associadas, como a fadiga. A fadiga física e até mesmo cognitiva é algo que a pessoa com o diagnóstico de EM vai referindo muitas vezes. Pode surgir dor, pode surgir uma disfunção sexual, pode surgir uma perturbação do comportamento, às vezes determinadas lesões envolvendo o lobo frontal, se muito grandes nas suas dimensões, podem originar uma modificação súbita do comportamento habitual da própria pessoa, pode ficar desinibida, pode ficar muito embotada do ponto de vista comportamental. Diria que basicamente tudo pode ser sugestivo do diagnóstico, desde que nós o equacionemos, pensemos nele e tenhamos à nossa frente alguém que se queixa com estes sintomas ou outros que possam eventualmente surgir, e em quem seja provável ou possível o diagnóstico de uma esclerose múltipla. Não podemos dizer que existem sintomas típicos ou melhor, sintomas patognomónicos, aqueles que se estiverem presentes a pessoa vai ter seguramente esta doença. Não, até porque o diagnóstico diferencial de uma EM, isto é, o conjunto de doenças que nós podemos ter que considerar até chegar ao diagnóstico de uma EM, é um conjunto significativo. Não devemos pensar que só chegamos ao diagnóstico de EM quando outra explicação para os sinais e sintomas que vamos vendo não se consegue concretizar.
Os próprios critérios de diagnóstico, aquela linha que é paradigmática, à falta de melhor explicação, deve considerar-se esta possibilidade diagnóstica e daí que, a experiência de quem faz o diagnóstico é um aspecto importante, porque é dessa experiência que também resulta a capacidade de excluir mais ou menos facilmente outro tipo de doenças que se possam confundir com a EM. Entendemos que, no domínio da neurologia clínica, como uma grande simuladora, porque basicamente tudo se pode confundir com EM.
Em que faixa etária os sintomas costumam aparecer com mais frequência?
A EM é a principal causa de incapacidade neurológica no adulto jovem, logo depois dos traumatismos do Sistema Nervoso Central. Esta é a incapacidade neurológica mais frequente entre os 20 e os 40 anos de idade, é mais ou menos aí que fazemos a esmagadora maioria dos diagnósticos. Convém considerar que esta doença também pode surgir em idade pediátrica e aquilo que está escrito, é que 3 a 10% dos casos, podem ter sintomas que começam antes de cumpridos os 18 anos de idade. E não é infrequente nós vermos por exemplo alguém naquela faixa típica entre os 20 e os 40 anos a quem fazemos perguntas do tipo “e no passado, não houve assim um sintoma A e sintoma B” e as pessoas às vezes dizem “sim, agora que fala nisso, acho que sim, que tive, andei uma semana a ver mal, mas depois aquilo recuperou e eu também não procurei ajuda médica”. Esse episódio poderia corresponder já a uma manifestação da doença.
3 a 10% dos casos podem ter sintomas que começam antes de cumpridos os 18 anos de idade, o que também quer dizer que, naturalmente, alguns doentes poderão iniciar a sua doença depois dos 40 anos de idade. E é verdade que quando pensamos numa forma muito particular da doença, como é efectivamente a forma primária progressiva, a idade com que normalmente os sintomas surgem é um pouco superior a estes 40 anos de idade. Têm perfil de evolução clínica relativamente diferente.
Mas diria que a esmagadora maioria dos diagnósticos, nós fazemos-los em pessoas com idade compreendida entre os 20 e os 40.
O que provoca a doença?
No dia em que nós soubermos responder a essa pergunta, estamos muito próximos da cura e não sabemos ainda o que é que provoca esta doença. Embora nós tenhamos de facto um conjunto de suspeitos que poderão estar implicados no aparecimento de uma doença com estas características. No fundo, a causa para esta doença – que é complexa – é uma espécie de equação, mas nesta equação existem múltiplas variáveis, sendo que, para muitas delas, nós não conseguimos ainda encontrar uma fórmula resolvente que nos ajude a saber quais são efectivamente estas variáveis. Por muito complexo que possa ser o nosso sistema de equações. Nós sabemos que é uma doença complexa e isso quer dizer o quê? Quer dizer que existem provavelmente genes que condicionam alguma susceptibilidade individual à pessoa, que a interacção com múltiplos factores ambientais levam então ao aparecimento desta doença. Nós podemos dizer “então, mas afinal qual é o contributo da genética e qual é o contributo do ambiente?”. Aquilo que nos permite responder mais facilmente a isso são os estudos com gémeos. Se nós tivermos dois gémeos iguaizinhos que partilham o mesmo património genético, o risco de doença é de cerca de 30%, o que significa que 70% do risco poderá ser conferido por factores ambientais que têm que aturar sobre os tais genes de susceptibilidade, para que possa surgir uma doença como esta.
Que factores ambientais é que são? Aí é que podemos disparar em todos os sentidos. Pode ser o vírus Epstein-Barr, pode ser o tabagismo, pode ser a falta de vitamina D, pode ser o consumo excessivo de determinado tipo de nutrientes, podem ser os excessivos traumatismos de crânio que a pessoa vai sendo submetida, enfim uma infinidade de factores que já conseguimos, de certa forma, ligar à doença, por exemplo no caso de EM, a idade pediátrica é uma conversa recorrente na nossa consulta. O facto de adolescentes meninas obesas terem um risco que chega a ser três vezes superior ao da população normal, de vir a desenvolver uma doença como esta. A obesidade infantil, nomeadamente nesta faixa etária, em meninas, aumenta de forma substancial, o risco de vir a desenvolver uma doença com estas características em idade adulta. Não é esta seguramente a causa da doença porque se assim fosse, todas as meninas obesas que aparecessem com um índice de massa corporal acima daquilo que é suposto, todas teriam EM e não é isso que nós vemos. Mas naquelas que têm mesmo o diagnóstico de EM, se andarmos para trás, com alguma probabilidade vemos, de facto, este mesmo factor presente.
Não sabemos qual é a causa, existem múltiplos contributos, genéticos e ambientais, mas no dia em que nós conseguirmos encontrar uma fórmula resolvente para esta equação complexa, estamos mais próximos da cura.
Feito o diagnóstico, como deve ser orientado o tratamento?
O tratamento da EM ao longo dos últimos anos tem vindo a sofrer – e digo sofrer de uma forma muito positiva – avanços absolutamente extraordinários. Se nós nos recordarmos que o primeiro tratamento que chegou ao nosso mercado, mais ou menos em 1996, foi há muito pouco tempo atrás. De lá até agora, nós temos vindo a disponibilizar à pessoa com EM, um conjunto muito vasto de medicamentos que têm ajudado, de forma muito substancial, a mudar a cara a esta mesma doença. Nós diagnosticamos mais cedo, mais rapidamente e tratamos mais cedo e com isso, nós conseguimos proporcionar – e é esse o objectivo da nossa intervenção terapêutica – à pessoa com o diagnóstico uma vida o mais normal possível ou uma vida muito próxima àquilo que era antes do diagnóstico. Não quer dizer que o tratamento vá curar a doença, porque nós não temos ainda essa capacidade, como disse, mas com os medicamentos que temos no mercado conseguimos controlar de forma substancial algumas das manifestações da própria doença e digo algumas porque há formas da doença que respondem menos bem aos medicamentos que nós temos no mercado e há formas da doença que carecem de uma intervenção um bocadinho mais específica e diferente do habitual e isto tem a ver com os tipos de doença que nós encontramos. Na esmagadora maioria dos casos, são formas surto-remissão, são formas em que a inflamação domina claramente o fenótipo clínico e aí, os medicamentos anti-inflamatórios têm o seu papel primordial. Mas também é verdade que alguns doentes que têm estas formas surto-remissão, ao fim de alguns anos de doença, podem entrar em fases progressivas e essas fases progressivas caracterizam-se por neurodegeneração, já sem um papel assim tão relevante da própria inflamação. E isso significa que os medicamentos anti-inflamatórios nestas situações não têm um papel tão significativo nem causam um impacto tão positivo como causam efectivamente nas formas surto-remissão, em que domina a inflamação.
Mas com estes medicamentos nós conseguimos reduzir a taxa de surtos, reduzir as agudizações associadas à doença, atrasar a progressão da incapacidade – limitações físicas e cognitivas que a pessoa vai tendo em consequência da própria doença e também com estes mesmos medicamentos, se olharmos um pouco para o resultado dos ensaios clínicos que vamos tendo e também da nossa experiência no dia-a-dia, vamos reduzindo de forma muito substancial a quantidade de novas lesões que podem ser observadas na ressonância magnética das pessoas com o diagnóstico e portanto se reduzimos a quantidade de lesões, naturalmente reduzimos sintomas e reduzimos a incapacidade. O tratamento é fundamental – esta é uma daquelas questões que normalmente nós dizemos às pessoas que tratar nem se discute – todos os estudos que de facto nós identificamos e lemos por aí, todos referem que o tratamento ajuda a limitar a progressão desta doença e quanto mais cedo for implementado, melhor. As opções terapêuticas que depois vamos escolhendo para cada um dos nossos doentes é que dependem das características particulares da própria pessoa, das suas preferências, dos eventuais efeitos adversos que possam estar associados ao medicamento, porque não há medicamentos sem efeitos adversos, isso é um aspecto importante. O tratamento é um aspecto crucial na gestão clínica desta doença complexa.
Que recomendações dá aos pacientes em relação ao estilo de vida e à necessidade de fisioterapia e de praticar exercício físico?
As recomendações são genéricas e não exclusivas para o doente com EM. Ter um estilo de vida saudável ou tão saudável quanto possível, deve ser um desiderato de qualquer um de nós. Não consumir álcool em excesso, não fumar, praticar exercício físico, não consumir alimentos que sabemos que são prejudiciais à nossa saúde – seja porque têm muita gordura ou muito sal -, tudo isto acaba por contribuir para preservar a saúde cerebral e se nós melhoramos a saúde genérica do nosso cérebro, naturalmente estamos a contribuir para diminuir o risco de incapacidade associada a esta mesma doença, porque sabemos que quando os factores de risco vascular não estão controlados, à medida que os anos vão passando, podem surgir multi-infartos cerebrais, podem surgir problemas vasculares que agravam naturalmente toda a incapacidade que nós já podemos atribuir directamente à esclerose múltipla. Mas isso é verdade para a EM, como é verdade para qualquer outra situação qualquer. Devemos reduzir o impacto negativo que a nossa vida tem sobre a saúde do nosso cérebro e, portanto, fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para poupar a saúde do nosso cérebro e aí, lá está, praticar uma alimentação diversificada, praticar exercício físico, não fumar, não consumir bebidas alcoólicas em excesso, todas essas recomendações que nós já conhecemos. Em relação à fisioterapia especificamente, de facto se existir alguma limitação física associada à doença, à prática do exercício físico e o exercício sistematizado em sessões de reabilitação, realmente pode preservar a função durante mais tempo e conferir também uma sensação de bem-estar à própria pessoa e naturalmente que da nossa parte haverá todo o interesse em potenciar esse tipo de actividade. Como diziam os nossos amigos cardiologistas, mexam-se pela vossa saúde. E também no que diz respeito à EM, é mais ou menos assim. Se a pessoa se entregar à doença, naturalmente que o impacto que isto vai ter no dia-a-dia será muito maior do que aquela pessoa que luta com unhas e dentes para contrariar os efeitos que a própria doença pode ter em si mesmo e assume uma atitude positiva no sentido de contrariar os factores de risco associado ao agravamento da saúde cerebral.
Vê com optimismo o futuro do tratamento e a cura da esclerose múltipla?
Vejo como muito optimismo, o que não quer dizer que a cura esteja já ali ao virar da esquina. De 1996 até agora, nós temos tido avanços absolutamente extraordinários no que diz respeito à terapêutica da esclerose múltipla e hoje em dia, nós conseguimos de certa forma, escolher o medicamento ideal para o doente ideal no momento ideal. E isto permite-nos talhar o hábito em função do monge que é uma coisa que há uns anos atrás nós não conseguíamos, quando tínhamos genericamente dois tipos de tratamento injectáveis para administrar à pessoa com EM. Se um não funcionasse tentava-se outro, se o outro não voltasse a funcionar, voltávamos ao início e andávamos um pouco por aí. Hoje em dia, temos uma capacidade muito mais assertiva de conseguir mudar a história natural desta mesma doença, o que significa que não estamos a falar de cura, mais uma vez. Nós não sabemos qual é a causa e enquanto assim for, pode ser difícil pensar na cura, mas temos uma capacidade já muito interessante de parar a doença. Parar significa não ter surtos, não ter progressão de incapacidade, não acumular lesões na ressonância e começamos já a falar em terapêuticas neuro reparadoras. Começamos a falar em medicamentos com capacidade de repor algum do dano que esteja associado à própria doença. E o estudo da mielinização na EM tem assumido nos últimos anos um papel e uma dimensão muito importante. Diria que estamos já a trilhar um caminho no sentido da neuro reparação, não somente da neuro protecção, mas também da neuro reparação, o que significa quiçá dentro de algum tempo, nós também vamos ter moléculas disponíveis que nos ajudem a reparar o dano que a doença induz à bainha de mielina dos neurónios do Sistema Nervoso Central. Estamos a dar passos muito interessantes no que diz respeito à terapêutica da doença.
Creio que sim, existe esperança relativamente à possibilidade de interferir noutros mecanismos de doença que neste momento ainda são relativamente intocáveis, não temos neste momento no mercado nenhum medicamento que seja especificamente desenvolvido para remielinizar, mas isso está a ser estudado, quiçá dentro de algum tempo nós tenhamos essa possibilidade e quiçá depois deste passo, que é um grande passo, nós conheçamos mais aspectos da fisiopatologia da doença que nos permitam encontrar algo que nos faça chegar muito mais próximo da cura e se não for esta ilusão de querer, este sentimento de procura do estar a caminho, nós também deixamo-nos de mover pela procura de tratamentos para o que quer que seja.
Como dizia o filósofo “filosofar é estar a caminho” e é esta a atitude que deve pautar a nossa procura de soluções para esta e para muitas outras doenças.