Cada vez é mais comum não se conseguir dispensar à primeira as receitas que se trazem do médico. O problema não é novo, mas tem-se agravado nos últimos meses. As situações de escassez atingem, neste momento, uma fase crítica, segundo Manuela Estêvão, directora técnica da Farmácia Batista, em Santarém. Neste estabelecimento, à semelhança do que acontece por toda a região e País, todos os dias tem sido impossível dispensar na íntegra as receitas: “O meu grande problema é passar mais tempo ao telefone a ver se consigo arranjar medicação do que a atender”, diz a responsável, que questiona: “onde andam os medicamentos dos Portugueses?”. E nem a chamada ‘Via Verde do Medicamento’ um mecanismo que deveria garantir sempre acesso a um fármaco – parece ser eficaz para debelar a situação e está a fazer com que as farmácias não possam ter stocks próprios para fazerem uma gestão de proximidade e mais eficiente. Contas feitas, quem paga a factura é o doente, que é constantemente “desrespeitado”, como afirma a responsável.

Porque razão estão a faltar medicamentos nas farmácias?

O problema é multifactorial. A Farmácia faz parte do Serviço Nacional de Saúde (SNS), no que respeita ao medicamento, e o que se passa, efectivamente, com o SNS é uma ruptura total. Vemos isto reflectido, todos os dias nas televisões: são os hospitais que estão na situação em que estão; as condições de trabalho dos profissionais, o clima de descontentamento crescente. Ainda na semana passada, a administração do Hospital de São João [Porto] pediu a demissão por falta de recursos humanos e materiais. Há estes gritos de alerta – que são situações extremas – porque já pediram uma, duas e três vezes e as pessoas chegam a uma altura em que o que está em causa é o seu profissionalismo.

Dou outro exemplo: recentemente, no Hospital Distrital de Santarém, estavam 40 pessoas para subir para quarto e não tinham lugar. E estavam ali, em espera, pessoas com doenças crónicas e outras que precisavam de estabilizar a coabitar com doentes com quadros de infecções respiratórias. É apenas um exemplo que retrata, a meu ver, o estado das coisas. Na Farmácia, e em concreto, o que se passa é que não podemos ter stock de medicamentos.

O circuito do medicamento é: laboratório, armazém e farmácia. Nós [farmacêuticos] pedimos ao armazém o medicamento e eles não têm para o entregar. A questão legítima que todos podemos fazer é: ‘onde andam os medicamentos dos Portugueses’? Agora, o Governo inventou uma ‘coisa’ que se chama a ‘Via Verde do Medicamento’, um sistema com uma plataforma gerida e controlada pelo Infarmed, através do qual, em tese, os intervenientes do circuito assegurariam a disponibilidade de um medicamento, sempre que este não tivesse grandes disponibilidades no mercado.

Funciona da seguinte forma: o doente vem à farmácia, trás a receita, e nós, através da aplicação, fazemos o pedido directamente ao armazém. Acontece que, na maior parte das vezes, só nos mandam no dia seguinte e o doente tem que vir duas vezes à farmácia, isto se se não houver ruptura do medicamento em causa.

Porque é que isto acontece?

Isto acontece, muito francamente, porque isto é uma hipocrisia. E toda a gente faz de conta que não vê. Temos, neste momento um valor residual de medicamentos. Ainda agora fiz o pedido de um medicamento novo para diabéticos: chegou, mas já está em falta de novo.

A Farmácia é um local em que as pessoas ainda têm confiança, ainda vêm quando têm algum sintoma que as preocupa. Aqui, há atendimento personalizado e técnicos prontos a dar o seu apoio. Agora, no que respeita a fornecer medicamentos, neste momento, estamos a ficar muito limitados porque não temos possibilidade de ter um stock próprio que nos permita fazer uma gestão mais eficaz das reais necessidades dos nossos clientes.

Mas, nos meios de comunicação ninguém fala nisso. Eu digo muitas vezes aos doentes que cá se deslocam e não encontram o medicamento disponível: ‘chegue a casa, ligue ao Infarmed, questione, diga que esteve na Farmácia Batista, falou com a Dra. Manuela e não havia o medicamento X’. As pessoas têm feito isso, mas o Infarmed não responde, só faz de conta…

Aliás: nós, em Portugal, a vários níveis, e também na saúde, entrámos no politicamente correcto. As pessoas só dizem aquilo que é politicamente correcto dizer e não querem afrontar o sistema. Eu estou a dizer aquilo que se passa, efectivamente.

Qual tem sido a posição das associações representativas do sector?

Não há nenhuma associação de farmácias que coloque esta questão. Ou seja, não preocupa a Associação Nacional de Farmácias os seus associados não terem medicamentos para fornecer aos doentes? Alguém tem que responder por isto, e quem tem de o fazer será o Infarmed ou o ministro da Saúde.

Pergunto eu: porque é que as farmácias não podem ter stock para fornecer os seus doentes? É urgente dar esta resposta. Repito: nós, em Portugal, estamos a ficar com um valor residual e é desse valor que temos que fazer a gestão de medicamentos para chegar alguma coisa aos nossosdoentes.

De que medicamentos, em concreto, estamos a falar?

Tratam-se de fármacos anti-hipertensores, antiagregantes plaquetários, medicamentos para diabéticos, entre muito soutros. Note-se que estamos a falar de medicamentos para patologias crónicas cuja suspensão tem consequências graves para o doente, sendo que a tal ‘Via Verde’, muitas vezes está em colapso. Nem sempre quando acedemos ao sistema o medicamento está disponível e outras vezes o sistema informa que o pedido foi feito, mas não há para entrega imediata. O ridículo da questão é que, agora, para termos medicamentos, temos que recorrer a este sistema inventado pelo Governo e que não funciona.

Na sua perspectiva, é um problema que se tem agravado?

Claramente. Constato que nos últimos três anos tem-se agravado muito. E, de há um ano para cá, tem sido caótico, cada vez pior. Fiz recentemente um pedido a um armazém de 100 medicamentos e vieram 5. Estavam todos em quebra e dentro que estão em ruptura, uns estão em Via Verde, mas há outros que não, e, nesse caso, temos que andar a ligar para os armazéns a mendigar para que nos enviem. E o doente, às vezes, não percebe estas explicações e chega, por vezes, até a colocar em causa essas mesmas razões. Esta situação insere-se no paradigma que se vive neste momento, que é o paradigma do faz de conta. Vivemos no faz de conta.

Fazemos de conta que os hospitais não têm listas de espera, nem doentes à espera de vagas nas enfermarias e urgências a coabitar com doentes em situação crónica; faz de conta que tivemos vacinas para os nossos doentes…

Em que medida é que a situação tem afectado as farmácias em termos de negócio e imagem?

Tem afectado muito, como é obvio: a Farmácia está aberta ao público, é um negócio, uma empresa, que tem uma parte social e de apoio ao doente importante – está na primeira linha dos cuidados

de saúde – mas temos que pagar vencimentos, facturas dos medicamentos e todos os outros encargos fixos. Quanto menos vendemos, menos rentável é a empresa. E as pessoas vêm cá aviar uma receita e não há o medicamento. Acabam por procurar noutros sítios – onde também não há – e o doente anda nisto. Para cá e para lá. Não há respeito pelo doente, embora, ironicamente, se repararmos no discurso político vigente, todos dizem que o foco é a pessoa… mas não é. Ninguém se preocupa com o doente crónico que precisa daquele medicamento cuja interrupção da terapêutica pode trazer consequências graves para a sua saúde.

Portanto, o foco não é nada o doente. Dou um exemplo muito concreto: há um medicamento para Parkinson, o Sinemet, que não tem substituto. É um fármaco que faz toda a diferença tomar ou não. O doente de Parkinson, se tomar o medicamento consegue ter uma actividade mais ou menos normal, se não tomar, fica imobilizado. O que é que aconteceu? Acabou o Sinemet em Portugal e vieram dizer que tinha sido um problema na produção. É falso, como se veio a verificar, porque depois vieram para a televisão os médicos denunciar a situação e o Ministério da Saúde teve que mandar vir o medicamento de Itália.

Portanto, se fosse um problema de produção, Itália também não o teria. Quando o caso se torna mediático, o problema resolve-se.

Na sua opinião, o que se podia fazer para contrariar esta situação?

Eu acho que, neste especto, as Associações de Farmácias têm muita culpa. Têm que ser os nossos representantes – os representantes das Farmácias – que têm que publicamente vir denunciar esta situação e questionar o Ministério e o Governo sobre as razões da falta de medicamentos para os nossos utentes e exigir uma resposta clara e cabal.

Os medicamentos saem dos laboratórios e não chegam às farmácias e alguém tem que ser responsabilizado por isso. E as associações, que deviam denunciar esta situação não o fazem. Quem está a ser prejudicado é o cidadão comum.

Porque é que uma farmácia não pode ter o stock para os seus doentes? Esta é uma questão que tinha que ser esclarecida e resolvida. Não se fala verdade. Por mais difíceis que sejam os problemas, as pessoas têm que falar verdade, assumir os erros e arranjar solução para o problema. Se eu ligar para o Infarmed e disser que tenho falta de um medicamento, eles dizem que vão tomar nota. Mas, depois, não respondem a nada.

Já temos um dossier só com medicamentos rateados e os medicamentos em falta, para, todos os dias, ligar para os armazéns a mendigar: às vezes, enviam uma embalagem por dia. Determinados medicamentos, que nós vendemos 60 ou 70 por mês, e enviam um por dia… obviamente que não vão chegar. Onde estão os medicamentos?, pergunto eu. Isto prejudica o negócio da farmácia, mas, sobretudo, o utente que se sente desorientado no meio desta confusão toda.

Suspender a terapia do medicamento tem consequências graves: o doente vai para o hospital, ocupa uma cama e são custos acrescidos para o SNS. Nada tem estratégia, nem objectivos. Isto é uma governação à vista. O doente nem percebe o que se esta a passar. Os portugueses nem percebem bem, com tudo o que se passa na Saúde, na Justiça, na Educação. Depois, vêm umas informações nos media a afirmar que vivem no paraíso… Há informaçãoe contra-informação e as pessoas andam baralhadas.

O stock para a vacina da gripe foi suficiente este ano?

Este ano, não tivemos vacinas em quantidade suficiente para vacinar os nossos doentes. Não nos mandaram as vacinas que pedimos: mais uma vez, o ‘faz de conta’. Eu estou aqui, atras de um balcão, e não tenho o medicamento para o doente; o doente, com toda a legitimidade, põe em causa o profissionalismo da farmácia ou do farmacêutico.

Eu, se tivesse que qualificar o nosso País, dizia: “Portugal, neste momento, é um País de politicamente correctos e de faz de conta”. As pessoas até têm medo de dizer o quepensam. Estamos a limitar e a pôr em causa o sistema democrático em que supostamente vivemos.

A vacinação foi um fracasso este ano. Eu não me lembro – e já ca estou há 30 anos – de um fracasso tão grande no que respeita à vacinação. Neste aspecto, os media, por informação errada do Ministério da Saúde, mentiram todos os dias nas televisões.

Todos os anos, fazemos pré-reservas, e as vacinas vinham. Posteriormente, ainda pedíamos um reforço, e eram entregues. Este ano, nem a pré-reserva veio na íntegra. Recebemos cerca de 70 por cento do que foi pedido. Houve muita gente que não foi vacinada. Agora, dizem que vai haver

um surto de gripe – eu não sei se vai se não vai…. o que sei é não houve vacinas. As razões? Desorganização, foram para outros sítios? Não sei… nós não as tivemos.

Resumindo: as urgências estão agora a abarrotar de pessoas com problemas respiratórios e com gripes. Estamos a falar de saúde. E a vacinação é prevenção. Dantes, as vacinas chegavam às farmácias no início de Setembro. Depois, algum ‘iluminado’ disse que era a partir do dia 1 de Outubro e, este ano, foi só a partir do dia 15 de Outubro.

O pouco que tivemos foi só a partir desse dia. Normalmente, nessas alturas, procurávamos reforçar a equipa. Este ano, nem demos por isso. No outro dia, estava a ver na televisão uma reportagem sobre este este surto da gripe onde era feito o apelo para as pessoas se vacinarem.

Eu até achei graça: ‘mas onde é que estão as vacinas?’, questionei-me na altura. Um País que não aposta na prevenção, em termos de saúde, é um País que está condenado.

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