A Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos (ECSCP) do Agrupamento de Centros Saúde da Lezíria, sediada em Santarém, completou o seu segundo ano de actividade no passado mês de Maio. Exemplo de humanização e dignidade de utentes e famílias, assiste doentes com necessidades de cuidados paliativos e acompanha os seus cuidadores no processo de adaptação à doença e no luto. A equipa é constituída por médicos, enfermeiros, assistente social, psicólogo e apoio administrativo. Prestar cuidados a um utente paliativo no domicílio é um “verdadeiro desafio” para o cuidador, para as famílias e para esta equipa, para quem o utente “tem que se sentir pessoa, e têm que ser respeitadas as suas vontades e decisões”.

Os cuidados paliativos visam o alívio da dor e de outra sintomatologia geradora de sofrimento: a afirmação da vida, e a morte, são encaradas como duas faces da mesma moeda: um processo natural que não se acelera nem se atrasa.

Este tipo de cuidados integra as componentes psicológicas e espirituais do cuidar e fornecem as condições para que o utente viva o mais activamente possível até à morte e auxiliam a família a lidar com todo este processo. Pois, para além dos cuidados ao utente paliativo também é um objectivo promover o bem-estar e a qualidade de vida dos familiares, possibilitando a permanência do utente no domicílio.

Para o tratamento destes utentes são usadas medidas farmacológicas e não farmacológicas para controlo dos sintomas, estão presentes aquando da tomada de decisões bem como são respeitados os objectivos do utente. Esta prática de saúde está indicada às pessoas com doenças incuráveis, crónicas e progressivas que lhes proporcionam intenso sofrimento. A diminuição deste sofrimento passa pela antecipação de problemas físicos, psicológicos, espirituais e sociais.

A finalidade principal dos cuidados ao domicílio é promover o bem-estar psicológico e a autonomia pessoal no confronto com as dificuldades e os problemas. O utente tem que se sentir pessoa, e têm que ser respeitadas as suas vontades e decisões.

Na Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos (ECSCP) é unânime o sentimento de pertença. A coesão e a cumplicidade reveladas são factores protectores dos profissionais que saem da sua zona de conforto e trabalham, muitas vezes, sem rede, num ambiente completamente desprotegido. Mas estes profissionais gostam do que fazem e são resilientes. Vestem a camisola e investem nos doentes e famílias, dia após dia, doente após doente, e são, para muitos deles, uma “janela para o mundo”.
São, também, o apoio de que os cuidadores precisam para conseguir manter o doente no seu domicílio, garantindo um “acompanhamento holístico” e uma constante monitorização.

Catarina Esparteiro, médica.

“Os cuidados paliativos são prestados, quer em internamento, quer a nível domiciliário a doentes que estão em situação de sofrimento por doença incurável ou grave, numa fase avançada e progressiva”, explica ao Correio do Ribatejo Catarina Esparteiro, médica de família, com pós-graduação em cuidados paliativos.

A equipa disponibiliza também aconselhamento a clínicos gerais, médicos de família e enfermeiros que prestam cuidados ao domicílio. É a pedra basilar de uma adequada rede de cuidados e estima-se a necessidade de uma equipa por 100 mil habitantes, que permita acessibilidade 24 horas por dia.

“A intervenção tem como base a identificação precoce e o tratamento, além da dor, dos outros sintomas físicos e psicossociais e espirituais. Para abordar estas vertentes há a necessidade de a equipa ser multidisciplinar”, explica a clínica.

“A área de Cuidados Paliativos sempre foi uma das que mais me fascinou, mas também era assustador pensar em cuidar de pessoas com intenso sofrimento. O meu percurso profissional encarregou-se de me colocar frente a pessoas com dor crónica complexa e muitas vezes, em fim de vida. Este sofrimento era mais do que físico, contemplando as componentes sociais, emocionais e espirituais da pessoa. Cedo percebi que era necessário outro tipo de abordagem, outro tipo de resposta, outra filosofia de cuidados”, explicita.

“Quando estava na minha fase final de internato contactei com os Cuidados Paliativos e na altura fiquei um pouco com a ideia de que a medicina está a perder um pouco a parte do humanismo. E, quando fui fazer o meu estágio, a área fascinou-me. Depois, por questões pessoais, tive uma doença que me fez perceber o outro lado. O sofrimento, e o facto de ser importante não ser abandonado…. E durante o meu período de doença foi quando fiz a minha pós-graduação em cuidados paliativos”, disse ao nosso jornal.

Para Catarina Esparteiro é essencial, na medicina, “empatizar com o sofrimento do outro, perceber toda a sua dificuldade, para os podermos apoiar. Sendo que muitas vezes é inimaginável pormo-nos no lugar do outro. Vemos situações tão complexas e tão difíceis e é muito complicado lidar. Às vezes não há palavras de conforto que cheguem para um sofrimento tão grande”.

“Cada vez mais precisamos deste tipo de trabalhos mais humanizados. A medicina está um pouco mecanizada e as pessoas sentem que, quanto não há uma resposta curativa, são deixadas ao abandono. Muitas vezes, os doentes estão deprimidos porque sentiram que houve um grande investimento e, a partir de certo momento, sentem-se deixados para trás. É muito importante aparecermos nesta altura: as famílias também estão muito perdidas e é importante haver um foco, um plano de orientação porque as pessoas não sabem como ajudar da melhor maneira, ajudar o seu ente querido e sentem-se impotentes”.

Desgaste emocional
Para Catarina Esparteiro trabalhar com este tipo de doentes é “pesado emocionalmente”: “eu, como tenho experiência como médica de família, digo que ver três doentes destes por dia equivale a 30… às vezes, é mais pesado psicologicamente. Lidamos com sofrimento, com dor, é um trabalho muito intenso”, revela.

Pedro Carvalhal, psicólogo.

Neste aspecto, a equipa conta com a ajuda preciosa do psicólogo Pedro Carvalhal que, para além do apoio aos utentes também presta apoio aos seus colegas para gerir esta parte emocional.

“Há sempre aqui um grande espaço de partilha onde não falamos só dos casos em termos teóricos, em termos técnicos, também cada um de nós acaba por verbalizar a forma como se sente perante as situações que passamos”, diz à nossa reportagem.

“São situações muito complexas, pesadas, e, neste aspecto, torna-se muito importante esta catarse emocional para que consigamos gerir este tipo de situações”, refere.

“Os nossos doentes precisam, tal como os familiares, deste tipo de apoio porque quando se confrontam com a morte é sempre um sofrimento inimaginável para qualquer uma das pessoas envolvidas. Enquanto equipa, temos a missão de também cuidar de nós. O autocuidado, aqui, é fundamental, se a equipa não estiver bem não poderão ajudar da mesma forma”, afirma.

Para Pedro Carvalhal que está na equipa há pouco mais de um mês, a experiência está a ser “extremamente enriquecedora”: “Passamos a encarar a vida de outra forma, a relacionarmo-nos de outro modo, adoptamos uma atitude muito mais reflexiva em relação à morte, ao sentido da vida e ao propósito da nossa existência. Acho que passamos a “viver mais a vida”, pois temos a consciência diária da sua finitude”, constata.

Uma opinião partilhada pela enfermeira Isabel Santana que, após 17 anos de experiência num serviço hospitalar, decidiu juntar-se a esta Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos.

Isabel Santana, enfermeira.

“Emocionalmente, é muito forte para todos. Enquanto que noutro tipo de equipas se acompanham doentes que se vão curar, que vão melhorar, aqui a visão é outra. Vamos acompanhar até ao fim, até ao outro lado, e tentar minimizar, reduzir os sintomas e o desconforto. Vamos apoiar, do ponto de vista emocional, a família”, diz.

Sob o ponto de vista pessoal, Isabel Santana conta que tem levado várias lições: “tenho dado mais valor à vida e uma atenção diferente a pequenos momentos, que, são, no fundo, importantes. Também valorizo mais a família. Corremos de um lado para o outro e esquecemo-nos de algumas coisas, focamo-nos em coisas materiais e em rotinas e, por vezes, deixamos para o lado essas coisas”.

Vontade de fazer a diferença
É precisamente a vontade de fazer a diferença que move estes profissionais: “Não vamos curar a doença. Mas, às vezes, vamos curar a pessoa. Vamos-lhe dar tranquilidade para que possa partir de forma mais calma e tranquila.

Como ela deseja, num ambiente familiar, idealmente, com o amor da família. A questão é esta: É precisamente nesta área que vejo mais o amor expresso, vemos situações de muito sofrimento, mas vemos situações de famílias que fazem o inimaginável para dar o conforto aos seus familiares. Situações de amor, de afecto. Acaba por ser uma área muito difícil, mas muito bonita ao mesmo tempo”, completa a médica Catarina, para quem “falar da morte é ainda um tabu, pois causa desconforto e angústia”.

“Estas dificuldades estão associadas à incapacidade de reflectir e aceitar a própria finitude. Sabemos que vamos morrer, mas na verdade não pensamos nisso como uma realidade próxima. A verdade é que, cada vez mais, as doenças incuráveis, graves e progressivas afectam pessoas jovens e isso leva a sociedade a confrontar-se com a morte precoce”, refere.

Por isso, a médica defende que é necessário falar da morte e do processo de morrer, reflectir sobre o sentido da vida e o propósito da nossa existência: “é preciso aprender a viver, pois só aprendendo a viver, aprendemos a morrer. Já o luto do outro afecta-nos, pela incapacidade de lidar com esse sofrimento e pela projecção que fazemos de nós próprios aquando da perda. É um sofrimento espelhado, pois reflecte-se em nós próprios. É por isso que a formação específica em cuidados paliativos é uma necessidade e uma exigência quando se cuida de pessoas em fim de vida, pois aprendemos estratégias que nos permitem o afastamento necessário das situações, sem comprometer a eficiência do cuidar”, afirma.

Comunicar a um paciente que a morte está eminente é uma das situações com maior peso diz Catarina Esparteiro: “na maior parte das situações, verificamos que as pessoas sabem… mesmo não sabendo exactamente o seu diagnóstico, percebem que algo não está bem”.

“Agora, de saber a ter a consciência que isso vai acontecer é um passo difícil e há pessoas que têm muita vontade de viver e tivemos alguns casos em que as pessoas estão a lutar porque desejam um desfecho diferente. Não fazemos uma abordagem de choque, vamos dando a entender, mostrando os sinais, mas há situações pontuais em que tem que ser. Às vezes, damos “tantos tiros de aviso” que a pessoa não quer perceber… e temos mesmo que a confrontar com os sinais. E, por isso também a parte psicológica é muito importante. Depois de uma notícia destas é preciso haver apoio”, salienta.

Sempre de prevenção
A equipa disponibiliza um número de telefone aos utentes e familiares. Estes podem-no utilizar sempre que necessário, uma vez que os profissionais estão permanentemente de prevenção.
“Podem ligar-nos se tiverem alguma dúvida. Em caso de necessidade, realizamos uma visita domiciliária. Um elemento fica com o telefone e, quando é necessária a intervenção os profissionais que estão de prevenção respondem via telefone ou deslocam-se ao domicílio do utente.”
Neste âmbito, Catarina Esparteiro sublinha que “para os cuidadores, o facto de saberem que estamos contactáveis proporciona-lhes uma grande segurança e confiança, algo que tentamos construir desde o primeiro momento, não prometendo nada que não possamos cumprir”.

Os cuidadores “são os verdadeiros heróis”
O trabalho da equipa incide também, muito fortemente, na capacitação dos cuidadores. “Não é só o utente que nos preocupa”, diz a responsável, acrescentando: “trabalhamos muito ao nível da preparação do cuidador, no ensino, deixando, inclusive, medicação em casa do utente quando o cuidador está capacitado para o fazer. Mas, no decurso natural da doença, as coisas podem acontecer de repente. É nessa altura que nos chamam e que a nossa presença se torna indispensável.”

É um trabalho muito exigente, a todos os níveis. Mas, na perspectiva dos profissionais, os cuidadores “são os verdadeiros heróis”. Daí a necessidade de “não criar falsas expectativas e lidar com a questão da esperança de uma forma muito realista e pragmática”, remata a médica.

Filipe Mendes

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