“Um médico que só sabe medicina nem medicina sabe”. Estas palavras pertencem ao Professor Abel de Lima Salazar, prestigiado médico, professor, investigador, pintor e ilustre patrono do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto. Na espuma desta asserção, não esqueçamos que por trás de um corpo físico encontramos tantas vezes almas angustiadas com as quais importa saber falar da vida e da morte que faz parte da vida. Há vidas que doem tanto e é por isso que a devoção empática dos médicos (e dos restantes profissionais de saúde) repousa diariamente na mesa-de-cabeceira dos doentes e das suas famílias em situação de profunda fragilidade ou de agonia. Se a humanização é o astrolábio que norteia os médicos esta também é a candeia que ilumina o caminho dos estudantes de Medicina. Não descurando as questões relacionadas com as patologias, importa nunca secundarizar o ser que habita num corpo doente. Citando Montaigne (in Les Essais de Montaignes), “C’est un grand ouvrier de miracles que l’esprit humain!” – que numa tradução livre significa: o espírito humano é o grande percursor de milagres – importa resgatar do espírito humano a força e a coragem necessárias à produção de milagres, sendo a linguagem um poderoso instrumento nesta caminhada uma vez que em cada oceano humano encontramos sempre “reinos maravilhosos” onde, citando Miguel Torga, “o que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite”.
Neste devir, a árdua tarefa em escolher as palavras certas assume-se como um importante veículo de esperança na comunicação com os doentes. Entre estetoscópios, batas brancas e bisturis, existirá sempre um espaço para a escolha das palavras que valorizam o espírito e a sensibilidade de cada paciente. A obrigação ética e clínica de comunicar ao doente a verdade sobre a sua doença constitui um desafio permanente para quem está obrigado a atribuir um nome ou a individualizar um determinado assunto em relação a cada paciente.
É aqui que nos distanciamos da inteligência animal limitada ao “aqui” e ao “agora” para iniciarmos uma viagem sem retorno no domínio da mais profunda abstração: o simbólico. Os nomes e as palavras são símbolos que consolidam as representações da existência humana. Símbolos que caminham, tantas vezes, a par com entidades abstratas que só têm existência no mundo imaterial ou sentimental em que vivemos [e.g. a saudade, a tristeza, a liberdade, a beleza, etc…] mas cuja capacidade em tornar presente, na nossa consciência, tudo aquilo que tantas vezes está longe de nós é evidente. Se aos nomes e às palavras acrescentarmos as ideias, então é a vez de a nossa memória ficar refém de tudo o que está ao alcance dos nossos sentidos [e.g. o cheiro do mar; o toque da mão da nossa mãe; o tom grave da voz do nosso pai; o rosto dos nossos amigos; …].
Deixamos de necessitar da existência física das coisas para nos referirmos a elas e, esta, é a força da linguagem que marca a intemporalidade dos nossos sentidos enquanto seres humanos. Não sendo fármacos nem tendo propriedades curativas, as palavras conquistam uma força telúrica ao veicularem autênticos compêndios de emoções e de sentimentos de compaixão e de delicadeza para com quem sofre.
Um dos maiores desafios da medicina moderna [altamente tecnológica e sofisticada, sobretudo quando praticada a nível hospitalar e em hospitais altamente diferenciados onde, apesar do seu enfoque no doente, muitas das decisões terapêuticas são tomadas multidisciplinarmente e/ou em reuniões de serviço com base em níveis de evidência e em recomendações emanadas pelas mais prestigiadas sociedades científicas internacionais] é não esquecer que a comunicação assenta num processo dinâmico e interativo, onde os silêncios também contam. Emocional e afetiva, mas sem ser piedosa, a humanização das palavras continua a ser o caminho que nos salva da clausura da mais perpétua das prisões: a de ficarmos reféns das palavras. Humanizá-las é pensar Fora da Caixa.
Pedro J. E. Santos – Estudante de Medicina na FMUL