Derrubar barreiras. Criar laços. Facilitar a comunicação. Integrar. São algumas formas de definir o que é a Língua Gestual Portuguesa (LGP). Com apenas 15 anos, António Coito, natural de Rio Maior, decidiu pôr mãos à obra e lançar um projecto que visa tornar a LGP numa língua “acessível a todos”. Chamou-lhe ‘’LGP para todos’’ e consiste na disponibilização de vários recursos (gratuitos) que permitem aos interessados adquirir alguns conhecimentos básicos sobre esta forma de expressão, reconhecida enquanto língua da comunidade surda portuguesa, pela Constituição da República em 1997.
Em que consiste o projecto ‘’LGP para todos’’?
Este projecto consiste num conjunto de vídeo-aulas produzidas por mim, que contém conteúdos dedicados à aprendizagem de Língua Gestual Portuguesa, que são apoiadas de recursos, nomeadamente, fichas de síntese e fichas de consolidação de conhecimentos que reforçam os conteúdos leccionados em cada uma das aulas. Este projecto é 100% gratuito. No site onde se encontram os recursos, existe ainda um local dedicado a dúvidas, onde qualquer pessoa pode expor a sua dificuldade, partilha ou opinião. Tenho dois cursos de formação, mas não sendo profissional na área, tentarei responder com o conhecimento que tenho, afim de garantir que a informação que é transmitida é correcta e objectiva. As aulas são publicadas às quartas-feiras e sábados no meu canal do Youtube (António Coito), no meu website (https://lgp-para-todos.webnode.pt/) e, ainda no meu perfil de Facebook (António Coito).
Porque razão decidiu lançar um projecto deste tipo?
Avancei com esta iniciativa no sentido de tornar a LGP uma língua acessível a todos e de despertar a curiosidade da população em geral. Sinto que há a necessidade de haver conhecimentos básicos sobre a Língua gestual portuguesa, porque, na verdade trata-se da língua materna da comunidade surda e, numa era em que se trabalha no sentido de incluir tudo e todos, creio que seja fundamental a sua aprendizagem. Assim sendo, lancei o projecto ‘’LGP para todos’’ que dispõe de vários recursos (gratuitos) que permite adquirir alguns conhecimentos básicos, mas importantes para conseguir comunicar com alguém que seja surdo.
Quando começou o seu interesse pela LGP?
Talvez seja uma questão que não tem um tempo certo. Todos nós, quando éramos pequenos, jogávamos o jogo da mímica. Para mim, esse jogo sempre despertou muito interesse, uma vez que a partir da nossa criatividade, tínhamos de explicar um dado objecto ou assunto, apenas com gestos. Mas, o acontecimento que fez com que ficasse com interesse em aprender, deu-se em Novembro de 2019, no decorrer de uma viagem à Sicília, no âmbito do projecto ‘’Erasmus+’’. Contactei com uma professora finlandesa que era surda e, acompanhavam-na duas intérpretes. A partir daí, aprendi e percebi que cada país tem a sua língua gestual, não sendo esta uma língua universal. Quando se deu o confinamento, face ao agravar da pandemia, encontrei uma notícia da RTP Ensina que publicitava uma escola virtual de LGP, desenvolvida pela Associação de surdos do Porto, que dava algumas bases gratuitamente. Desde então, já tirei mais um curso de nível iniciação e, agora, encontro-me num curso de nível intermédio.
Como vê o papel do intérprete de LGP na comunidade surda?
A meu ver, os intérpretes de LGP são verdadeiros heróis. Para muitos de nós, passa um pouco ao lado, o facto de haver ‘’a senhora dos gestos’’ no telejornal. Mas, a realidade é que com o agravar da pandemia em Portugal, todos nós percebemos que a sua missão é muito importante e, mesmo que o país pare, os intérpretes também asseguram serviços mínimos à população. Há ainda um longo caminho pela frente, mas o mérito da luta diária destes profissionais que fazem elo de ligação entre a comunidade ouvinte e a comunidade surda, ninguém lhes pode tirar.
Considera importante a população em geral ter conhecimentos básicos de LGP?
Considero fulcral. Imagino muitas vezes a angústia das pessoas surdas. Todos nós temos a ambição de sermos independentes quando crescemos, porém, com esta limitação, no nosso país, tornasse impossível. Quando nos deslocamos a um serviço, seja ele qual for, a sua maioria não tem ninguém que saiba língua gestual. É chato andar sempre com o papel e com a caneta. Seria muito mais fácil se todos nós tivéssemos conhecimentos básicos e, assim conseguiríamos comunicar alguma coisa.
Acha que há interesse por parte da comunidade ouvinte em aprender LGP?
Por experiência própria, e pelo aquilo que tenho ouvido, vindo das pessoas que me têm acompanhado, é que a LGP lhes desperta muito interesse, e eu acredito nisso! Porém, acredito que não seja muito fácil aprender LGP actualmente. Não se encontram muitos cursos disponíveis, as pessoas têm os seus empregos e têm pouca disponibilidade, o dia a dia das pessoas é muito atarefado. De qualquer modo, creio que haja muito interesse por parte da comunidade ouvinte em aprender LGP e, por muitos, não é uma hipótese colocada de parte. Desde que iniciei este projecto, recebi inúmeras mensagens de pessoas que fazem intenções de acompanhar as minhas vídeo-aulas, com a finalidade de aprender alguma coisa.
Defende que se inclua a LGP como língua opcional nos currículos escolares?
No meu ponto de vista, os currículos escolares deviam incluir a LGP como língua obrigatória. Muitos defendem, que não devia existir no currículo e, se existisse, deveria ser apenas como língua opcional, uma vez que os alunos é que devem tomar a decisão. Ora, vejamos. Eu, enquanto aluno, entendi que nos últimos anos tem havido uma tendência progressiva de deixar as escolhas nas mãos dos alunos. Acho muito bem, mas há limites! Muitas disciplinas existem no currículo e não são do agrado de todos os alunos. Eu nunca gostei de certas disciplinas, e sempre fui obrigado a tê-las, e depois?!? Foi isso que impediu que eu evoluísse como pessoa?!? Se é obrigatório ter aulas de línguas estrangeiras, porque não ter aulas de LGP obrigatórias, dado que é uma das 3 línguas de Portugal. E mais, numa era em que se defende a educação inclusiva, não se faz nada para incluir da forma mais adequada. Não é a colocarem os alunos com limitações, sejam elas quais forem, com os alunos ditos ‘’normais’’ dentro de uma sala, que os estão a incluir. Aliás, há testemunhos de pais que dizem que os filhos se sentem mais intimidados e constrangidos quando estão inseridos nas aulas de turma com os colegas. Trata-se de integração, mas isso não basta! Estão a incluí-los se prepararem as pessoas que fazem parte da comunidade no sentido de conseguirem comunicar com aqueles que têm problemas e lhes darem formação e bases para conseguir ter uma vida digna e minimamente independente.
Em outros países, nomeadamente nos EUA, o ensino da LG está difundido e divulgado como uma língua para todos. Em Portugal aparece quase como exclusiva da comunidade surda. O que acha que pode ser feito para mudar esta realidade e sobretudo a mentalidade das pessoas?
Em primeiro lugar, todos os programas televisivos, novelas, filmes, músicas, entre outros, deviam ter interpretação de LGP, uma vez que não é justo os membros da comunidade surda terem de assistir aquilo que está acessível e não aquilo que gostavam de ver e que vai de encontro dos seus interesses. Sempre ouvi dizer que todos nós temos o direito de ter os nossos gostos e preferências, mas não me parece que se aplique à comunidade surda, infelizmente. Em segundo lugar, devia ser incutido através de palestras e eventos de carácter informativo, a importância da LGP para a comunidade surda. Em terceiro lugar, valorizar e disponibilizar meios/formas de ensino de LGP quer para os jovens que se encontram na escola, quer para os adultos que se encontram no activo.
Como foi a experiência no programa #EstudoEmCasa, em articulação com os professores da sua escola e a RTP Memória?
A experiência no programa #EstudoEmCasa foi sensacional. Fez-me crescer como pessoa e como ser humano. Inicialmente, tive alguns receios, mas depois tudo decorreu com normalidade. Para além de ter desenvolvido e trabalhado certas competências, vivi uma nova experiência, contactei com o mundo televisivo e, por coincidência, com algumas intérpretes de LGP que também se encontravam num trabalho árduo com os professores, no sentido de garantir o ensino a todos. Todo este projecto fez-me perceber que mesmo que o mundo pare, o ensino será sempre uma das maiores prioridades, seja em que altura. Há a necessidade de respeitar mais aqueles que garantem o ensino dia após dia. Talvez, para muitos, tenha sido um ‘’abre olhos’’.