Em 2023, o conselho director do Rotary Clube de Santarém decidiu atribuir o Prémio Profissional do Ano a Filipe Castro, arqueólogo náutico com carreira desenvolvida na Texas A&M University (EUA), da qual se jubilou em 2021, e que presentemente colabora com a Universidade Nova de Lisboa e com a Universidade de Coimbra. Luis Filipe Monteiro Vieira de Castro é cidadão português e norte-americano, de 63 anos, casado, com três filhos, nascido em Lisboa, e residente em Santarém.
Quanto ao Prémio Carreira, este será atribuído a Luís Amaral, presidente da APPACDM Santarém, com mais de 25 anos dedicados à gestão daquela Associação, da qual é presidente desde 2006. Luís Amaral, aposentado, de 69 anos, casado, com duas filhas, é natural de Aldeia de Além, Alcanede e residente em Santarém.
A APPACDM – Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão com Deficiência Mental de Santarém foi criada em 1972. Actualmente com cerca de 600 utentes (internos e externos) e 134 trabalhadores. Possui 2 centros de actividades (ambos no Vale de Santarém) e 4 polos residenciais (Vale de Santarém, Cartaxo e dois em Santarém). Em 2025 deverá ter um novo centro de actividades a funcionar no Vale de Santarém. É neste momento a 8.ª mais antiga APPACDM do País (existem 30) e a 5.ª maior.
A entrega irá realizar-se hoje, dia 30 de Janeiro, num jantar a no Santarém Hotel.
“Nós somos o resultado de actos de cidadania”
Qual é o significado pessoal e profissional para si desta distinção [prémio “Carreira”] pelo Rotary Clube de Santarém?
Eu tenho que falar alto aquilo que penso e que sinto. Eu aceito com toda a honra esta distinção, mas tenho que a transportar para uma missão que não sou só eu que a cumpro.
Sou o rosto do cumprimento dessa missão, com uma equipa muito alinhada. A tentar sempre fazer o melhor nesta causa.
A minha presença, a minha liderança na instituição é partilhada: é uma liderança aberta, e só assim se pode fazer as coisas que as pessoas precisam numa instituição desta natureza.
A minha missão aqui está, se quisermos, por cumprir, na sua totalidade, como eu gostaria. E nunca estará totalmente cumprida.
Gostaria de deixar algumas coisas organizadas relativamente áquilo que são necessidades já identificadas à nossa volta, para esta população. Alguém, depois, irá concretizar melhor. Há trabalho para fazer e caminho para andar.
Mas, claro, esta distinção é um orgulho, porque esta é uma instituição que apoia pessoas que são normalmente excluídas, e por essas pessoas eu ponho-me um bocado “em bicos de pés”, não me importo.
Ao longo dos 17 anos como presidente da APPACDM, quais foram os momentos mais marcantes e desafiantes?
Aquilo que me tem custado mais na instituição é o falecimento de utentes residentes, a perda dessas pessoas, que basicamente não têm família, acabam por ser, também, perdas familiares nossas. São sempre momentos muito duros…
No bom sentido, tive o privilégio de conseguir ser presidente da instituição quando ela fez meio século de vida, e houve quatro ou cinco momentos muito importantes para o meu sentir, para ter consciência de alguma coisa estar a acontecer.
Depois, foi o abrirmos, em 2014, uma nova estrutura e um complexo residencial no Cartaxo e termos conseguido que a instituição ficasse com a cobertura do concelho de Santarém e do Cartaxo no apoio aos alunos com necessidades especiais nas escolas. A celebração dos 50 anos, foi, de facto uma data muito marcante porque houve a consciência do grande trabalho que foi realizado.
Como descreveria o impacto da APPACDM na comunidade de Santarém, e não só, durante a sua direcção?
O que eu senti como resultado de alguma coisa que quis fazer foi que a instituição passou a ser mais conhecida, mais aceite. Não há muitos anos, as pessoas passavam – lá na estrada em baixo – e diziam “ali é uma instituição onde estão os maluquinhos”. O que eu senti, como resultado de um esforço grande, e em equipa, foi que, efectivamente, isto mudou. A instituição passou a ser uma mais-valia para pessoas que até determinada altura a entendiam como indesejável na sua presença familiar.
Vai entrar uma utente para a instituição que a família abordou há nem sei quantos anos, e resolveu não a colocar na altura. A pessoa em causa, anda de cadeira de rodas, é uma jovem que se conseguiu quase licenciar, mas que tem um défice cognitivo. Depois destas voltas todas, a pessoa voltou a abordar-nos a perguntar se ainda havia hipótese de voltar a ter um lugar para a sua filha estar durante o dia. Este é só um exemplo de como é que a percepção em relação à APPACDM de Santarém tem mudado ao longo dos tempos.
Nunca tivemos vagas nas residências permanentes, mas nas actividades diárias tivemos anos em que tínhamos vagas e não se preenchiam. Agora, depois do trabalho feito, pessoas que estavam em casa e nos procuraram e até dizem “porque é que eu não vi isto mais cedo”. Tive pessoas que me diziam que levavam o seu filho a uma instituição a Cascais, até saberem da nossa existência.
Isto foi o resultado do trabalho feito, e vamos ter que arranjar capacidade para crescer, também na área do “dia”. Estevamos sempre com 12/15 lugares por preencher e agora as pessoas estão a vir ter connosco.
Como vê o papel das organizações não governamentais, como a APPACDM, na construção de uma sociedade mais inclusiva?
Eu acho que é um papel insubstituível. Queremos trazer as pessoas das instituições para a sociedade, e nunca nos esquecermos que isto são instituições que resultam de grupos de cidadãos: nós não somos nenhuma entidade pública, somos o resultado de actos de cidadania. Actos de cidadania, participação na sociedade, e construção de soluções de integração das pessoas sejam elas com deficiência ou sejam outro tipo é sempre importante o papel destas entidades.
Eu advogo que estas instituições devem ser acarinhadas, apoiadas e acompanhadas. E assim conseguem estar na sociedade, a prestar um serviço que serve todos.
É importante que os cidadãos não se demitam de participar. Não só na política, mas também nestas coisas.
No caso concreto de respostas para pessoas com a abrangência que nós temos, de pessoas com deficiência intelectual, estas entidades é que têm o ‘know how’ para conseguir ajudar estas pessoas a partilhar os sentires da sociedade, de ir ao cinema, mas são precisos estes apoios, sem os quais se torna impossível manter os níveis de serviço.
Não há forma de considerar cidadãos de pleno direito se as pessoas não conseguirem por si e ninguém as ajudar a fazer. Importa colocar as pessoas ao nível de todos os outros. Estas entidades têm que fazer esse trabalho.
Ao longo destes anos as dificuldades também têm sido muitas, quais têm sido as mais prementes?
As dificuldades nestas entidades prendem- se com o recrutamento de pessoas com competências para trabalhar as áreas tendo em conta a capacidade remuneratória que normalmente estas entidades têm.
Hoje em dia, o mercado de trabalho é concorrencial, e estas entidades ainda não estão dotadas da capacidade para poder estar nesta concorrência de mercado de trabalho e ir buscar os melhores.
Os apoios existem, aumentaram, mas as necessidades aumentaram numa escala maior. O que significa que o problema não fica resolvido.
Precisamos de continuar e reforçar apoios em áreas especificas. Na integração de pessoas de alguma idade com deficiência cognitiva em espaços partilhados com outros colegas, é uma resposta que temos de reforçar de uma forma muito selectiva.
Porque há pessoas que têm autonomia para não estarem num Lar. Há soluções de residências de autonomização, por exemplo. Nós já temos duas, e queremos ter mais. Onde podemos ter pessoas que façam daquilo a sua casa, não um Lar tipificado. Também temos pessoas com múltiplas dependências, em que a única solução para o seu bem-estar é terem um lugar para estar onde não falte o apoio, quem os ajude com a comida, no seu banho, a vestir e a fazer a sua higiene. Isto já tem que ser um Lar, e nesta área não pode haver estruturas com mais de 30 pessoas, porque o que se pretende não são asilos.
É tentar familiarizar, aproximar, o mais possível estas pessoas. Mas há pessoas que, por causa do seu perfil de deficiência severa, perdendo a família, não têm outra alternativa. Há que pensar que isto vai acontecendo porque as pessoas vão tendo mais prolongamento na sua idade média de vida.
Qual o grande projecto está agora na calha?
Um é reformular a antiga Escola Primária do Vale de Santarém, onde vamos fazer um terceiro centro de actividades diárias. E o reforço da capacidade residencial, através do projecto do Cartaxo que já tem a arquitectura aprovada e estamos a fazer as especialidades.
Isto porque temos fila de espera de pessoas com o perfil que eu descrevi e que não têm outra alternativa. A residência de autonomização, se conseguir no espaço da escola, seria mais uma terceira unidade de independência, além do centro de actividades diárias.
“Santarém é uma cidade mágica”
O Rotary Clube de Santarém decidiu este ano reconhecê-lo como “Profissional do Ano”. Qual é o sentimento ao receber este prestigiado prémio na terra que o viu crescer?
É uma honra muito grande e um privilégio, que foi, devo confessar, completamente inesperado. Eu tenho passado os meus dias no sótão da minha casa, na zona de São Bento, ao computador, a desenvolver o meu trabalho…portanto, ser reconhecido em Santarém é um prazer enorme.
Qual é a importância deste prémio para si, considerando a sua carreira profissional na arqueologia náutica e os seus laços profundos com Santarém?
Eu cresci cá [em Santarém], passei pela Escola Primária, pelo Liceu, e, depois, enquanto estava na universidade, vinha cá aos fins de semana. Santarém tem um lado mágico para mim porque foi aqui que descobri as primeiras paixões, namoros, os primeiros livros, e é uma cidade à qual vouestar sempre ligado. Foi por aqui também que comecei a desenvolver o meu gosto pela arqueologia.
Como vê o impacto deste reconhecimento na promoção da arqueologia e do património histórico na região?
Para mim é óptimo: eu não tenho contactos nenhuns (risos) – estive 23 anos nos Estados Unidos, e, portanto, não conheço ninguém. Logo, este prémio é uma espécie de abertura de portas e oportunidade de networking.
Estou agora cá estabelecido, na casa que era dos meus pais, e esta cidade interessa-me imenso. Comecei a ler tudo o que havia de relatórios de arqueologia e livros de história sobre a cidade e este prémio, julgo eu, vai-me por em contacto com pessoas com influência e talvez possa vir a contribuir…
Uma das coisas que comecei a tentar fazer foi organizar o meu bairro para fazer uma recolha de lixo, com os miúdos, para perceberem que viver num bairro limpo é muito melhor. Tenho também estado empenhado na causa cívica de tentar com que haja uma redução de velocidade em frente ao Centro de Saúde. Esta cidade é mágica, como já referi, com um passado precioso e que podia ser um centro turístico maior, podia ser uma Óbidos ao quadrado. Faz pena que o património esteja fechado, que não seja valorizado por toda a gente.
De que forma a cidade influenciou a sua carreira e contribuiu para o seu percurso profissional?
Santarém sempre teve para mim uma conotação de cidade misteriosa, a minha vida de miúdo foi, primeiro, na Travessa dos Surradores, depois em São Bento. Eu estava todo o ano aqui: o meu pai era veterinário, mas adorava arqueologia, tinha os livros em casa. Lembro-me de ter ido a primeira vez ao Convento de Almoster, ao de São Francisco… de forma que Santarém, para sim, sempre foi sempre uma cidade mágica, com túneis, com recantos para explorar.
Curiosamente, encontrei uma pessoa no facebook que também fazia essas explorações espeleológicas, que era entrar nas minas de Santarém, um pouco inconscientemente, devo confessar (risos): nós íamos com velas, sem dizer aos nossos pais, se por acaso tivéssemos desaparecido era mais um mistério que ficava!
A cidade tinha muitas minas, sobretudo na zona de S. Bento, e sempre tive essa ideia de que a cidade tinha uma história para contar. Lembro-me de estar junto à porta d’Atamarma e pensar “selvagens, destruíram esta porta”, e claro que tudo isso teve influência na minha forma de estar na vida e escolha do meu percurso profissional.
No Verão, ia para o Baleal, onde havia navios afundados, e onde havia histórias de naufrágios, de pilhagens. Eu estudei engenharia civil, depois fiz um MBA. Depois, com um grupo de amigos, comecei a achar que a minha carreira devia ser na arqueologia e foi o que fiz.
O projecto de descoberta da nau da Índia é notável. Pode partilhar alguns detalhes sobre os desafios enfrentados durante este trabalho e o que esta descoberta significa para si a nível pessoal e profissional?
O navio foi encontrado por um grupo de miúdos em Oeiras, e eventualmente declararam o local ao Museu Nacional de Arqueologia.
Eu tinha encontrado, nos anos 80, um navio no Baleal, e fui ao museu, e foi uma experiência muito frustrante porque os funcionários nem falaram comigo, sei hoje que eles não foram sequer ao local do naufrágio. Mas quando esta Nau da Índia apareceu e a Dra. Simoneta Luz Afonso propiciou a escavação para o pavilhão de Portugal na Expo 98, eu não era arqueólogo, portanto entrei nesse projecto como gestor. Saí do Ministério do Mar onde estava e fui para o Ministério da Cultura, para o Instituto Português de Arqueologia, tentar ajudar a organizar o Centro de Arqueologia Náutica Subaquática, e participar como engenheiro na medição e registo arqueológico dessa Nau da India, que era um navio de 1606, com uma história, como todos os navios, com 400 histórias que convergem ali. Há um missionário japonês que sobreviveu e voltou para a China, e acabou por morrer lá de velho.
Depois, os artefactos, como é obvio, ligam-nos às pessoas, que os usaram e os perderam. A arqueologia é como um álbum de família que em vez de fotografias tem artefactos. Cada navio tem muitas histórias consigo, das pessoas que nele viajam, as suas ambições e ideias.
Foi uma descoberta desafiante?
Sim, eu comecei a ler tudo o que havia para ler sobre o tema: eu acordo cedo e li a biblioteca toda. Antes de começar o dia de trabalho passava uma hora ou duas a ler para absorver o máximo possível. E foi uma mudança de vida radical.
Como espera que este prémio do Rotary inspire outros profissionais e estudantes a seguir uma carreira na área da arqueologia náutica?
Este prémio vem numa altura perfeita da minha carreira: eu sempre tive uma certa aversão a aparecer publicamente, há uma jornalista que se zangou comigo quando eu estava no Texas, porque queria fazer uma entrevista no Público e eu disse que não (risos). Mas uma das ideias que eu gostava de implementar era envolver os miúdos das escolas, ir falar com os Liceus e oferecer-me para dar formação aos professores ou uma aula sobre a Carreira da Índia, uma aula sobre o Século XVI, sobre Portugal no Mundo. Agora há uma grande vergonha dos descobrimentos e do colonialismo, mas há coisas boas e coisas más, não é tudo mau.
Considerando o seu compromisso com a história e a arqueologia, qual é a mensagem que gostaria de transmitir às gerações futuras em relação à importância da preservação do património cultural?
O Património é deles, é nosso, não é do Estado. As pessoas que participam na vida cultural das sociedades são muito mais felizes, e informação é inteligência. Há um filósofo americano que diz que “quando adquirimos ideias, passamos a pensar mais depressa”. As ideias são ferramentas para pensar e quanto mais tivermos mais fácil é pensar.
Que projectos futuros ou objectivos tem em mente no âmbito da arqueologia náutica e da preservação do património histórico em Portugal?
Nós estamos a trabalhar na construção naval do séc. XVI no Mediterrânio, que é de onde vieram as ideias fundamentais que nos permitiram fazer Caravelas, Galeões e Naus. Estou a trabalhar na reconstrução de um navio de 1516, que foi escavado no Sul de França: estou a trabalhar na reconstrução da Nau S. Gabriel do Vasco da Gama, para uma empresa de Lisboa que quer fazer um modelo para levar turistas.
E estou a trabalhar na carta arqueológica subaquática de Portugal. Estou a fazer o inventário dos sítios subaquáticos que há na costa portuguesa, e nos rios. Santarém tem vários. A minha ideia é publicar e convidar os cidadãos a protegê-los. Proteger o património, estudá-lo e viver com ele.
Como vê o papel das organizações locais, como o Rotary Clube, na promoção da cultura e preservação do património na comunidade?
Fundamental. A Declaração Universal dos Direitos do Homem diz que o direito da sociedade a participar na vida cultural das regiões é um direito fundamental.
As organizações mais pequenas, não governamentais, são a base de todas as políticas democráticas, intelectuais, e de melhoria da vida das pessoas. Organizam-se para limpar o bairro, tornar o bairro mais seguro, arranjar jardins… há imensas histórias fabulosas de pessoas que se juntam e fazem um jardim nos pardieiros… Para mim trabalhar com as organizações locais – e eu estou no Centro Dr. Veríssimo Serrão já há bastante tempo – é de um interesse fundamental. E eu adorava e estou disposto a contribuir o mais que posso.