O Professor Cândido Azevedo regressou em finais de 2018 de Macau, onde permaneceu mais de 30 anos, acrescidos de mais dez da sua infância, porque natural de Damão, antigo distrito da ex-Índia Portuguesa, totalizando mais de 40 anos pelo Oriente.
Ao longo de todos esses anos, dedicou particular atenção à história da diáspora portuguesa oriental, investigando sobretudo aspectos sociais e culturais da presença portuguesa nos territórios que desde o início do século XVI se chamou Estado Português da Índia, que se espalhava pela costa oriental africana (de Moçambique à Etiópia), o litoral da Arábia, o Golfo Pérsico, a Índia, o Golfo de Bengala, a região da Indochina, o Japão e a China. Destes estudos foram editados dez livros.
Fruto da passagem por todos esses territórios tornou-se ainda um coleccionador, possuindo hoje um vasto património oriental de quase duas mil peças que gostava que merecessem honras de um museu, sobretudo nos concelhos da região aos quais está mais ligado: Santarém ou Almeirim.
Na presente entrevista ao ‘Correio do Ribatejo’ o orientalista e estudioso da História da Expansão Portuguesa deu conta desse interesse.
Professor Cândido é verdade possuir tão vasto espólio oriental? Fala-se em cerca de duas mil peças. Qual a razão para tal?
Sim, é verdade. Muitos amigos da cidade que estiveram na minha casa tiveram a oportunidade de ver parte em inúmeras vitrines. Agora está tudo encaixotado pois deixei a vivenda de Almeirim e mudei-me para próximo da minha neta no Estoril. Como sabe sou um aprendiz de historiador e estudioso de ilustres exploradores e aventureiros portugueses do século XVI a XVIII. Na minha estadia oriental procurei fazer o seu percurso, visitando os mesmos espaços, tendo já percorrido a maioria dos cerca de 100 territórios que compuseram o antigo Império Português. O próximo percurso que ainda hoje continuo a fazer, será à Costa de Omã, visitando cidades como Mascate, Qailate, Curiate, Sohar, Sib, entre outras, que ao longo de décadas fizeram parte do Império Português nos séculos XVI e XVII.
E sempre a trazer para Portugal recordações desses locais que visita…
Sim, a adquirir inúmeras peças de todos os antigos territórios portugueses do Oriente.
E neste último percurso, qual foi a razão para mais esta viagem?
Seguir o percurso de Afonso de Albuquerque que foi vice-rei da Índia e de Rui Freire de Andrade o grande Almirante de Mar de Ormuz. Nesta região tivemos cerca de 13 cidades, como por exemplo Barém, que ninguém sabe e foi portuguesa 80 anos, e a quem o rei de Portugal deu a António Correia, o herói de Barém, o título de nobre e brasão de armas.
Mas segui outros ilustres portugueses que se notabilizaram na História de Portugal, como os sacerdotes jesuítas Sebastião Manrique, António Andrade, o comerciante Francisco Vieira, o navegador Fernão Mendes Pinto, entre muitos outros.
E o que acaba por fazer nessas viagens?
Na peugada desses percursos de navegadores, exploradores, grandes comerciantes e sacerdotes portugueses tenho convivido com os mais diversos cenários, com uma grande diversidade de povos, com os seus costumes, moral, comércio, justiça ou festas. Tenho tido ocasião de apreciar ricos mercadores, visitando palácios deslumbrantes, apreciando riquezas diversas, não ficando insensível à sua música, danças e jogos. Sendo mais claro: nestas três décadas da minha presença no Oriente adquiri naqueles antigos territórios e feitorias portuguesas várias centenas de peças, recebendo outras por herança paterna, também eles nascidos no Oriente.
E que espólio é esse, hoje na sua posse?
Este património oriental adquirido consta de dezenas de quadros pintados em materiais diversos (papel-seda, marfim, seda, etc.), artesanato de variado tipo, estatuetas de pedras preciosas e semipreciosas trabalhadas, estatuetas de tamanhos diferentes em materiais diversos, adagas, máscaras, caixas trabalhadas de diferentes materiais (osso, marfim, ébano, coral, prata…), cerâmica diversa, porcelanas com séculos de antiguidade, algumas datadas aquando da chegada dos portugueses à China, cloisonnés, bordados, bules, cachimbos de ópio, relógios, móveis antigos orientais, dezenas de jogos, biombo de laca, cerca de uma centena de instrumentos musicais, acrescidos de uma colecção de centenas de piões mais algumas centenas de brinquedos de todos esses territórios, património esse que já me permitiu, com muita dignidade e êxito fazer exposições parciais em Lisboa (Reitoria da Universidade), Coimbra, Bragança, Castelo Branco, ou Leiria.
Hoje, a idade já não me permite a realização de tais exposições onde se levam dois a três dias a desembrulhar cuidadosamente as peças, uma a uma, para uns tempos depois, voltar a fazer trabalho inverso em outros tantos dias.
Falou em centenas de piões?
Piões, sim, de todo o mundo, cerca de 800, com pesos compreendidos entre os cinco quilos e a grama, esse o mais pequeno do mundo de natureza e formas de lançamento diversas, de cordel, magnéticos, de célula, de mola, mecânicos, de fricção, de campainha, eu sei lá…
Daí ter o interesse em reunir todas essas peças numa exposição permanente, uma espécie de museu, é isso?
Julgo que seria um bonito museu no concelho de Santarém, em Pernes, conhecido como a terra de madeira torneada.
E como pretende disponibilizar todo esse espólio? Aceitaria doá-lo?
Sim. Se alguma das autarquias da região, nomeadamente Santarém, o pretenderem e se forem rápidas a decidir. É que já vou a caminho dos 75 anos…
Sempre fiz de Santarém a minha cidade e aqui se alberga Pedro Álvares Cabral o navegador e explorador que comandou a 2ª Armada à Índia e onde a par de alguma inimizade fez amizades com outros governantes locais sendo a sua viagem considerada um sucesso pois os lucros extraordinários resultantes da venda das especiarias trazidas pela sua esquadra, reforçaram as finanças da Coroa Portuguesa e ajudaram a lançar as bases de um Império que se estenderia das Américas ao Extremo Oriente. Império esse enquadrado pelos valores e olhar de cada época como a mentalidade reinante e os condicionalismos da História.
E para si quais seriam as mais valias de um concelho como o de Santarém ter uma exposição como essa?
Este espólio, com peças da mais variada natureza e procedência geográfica, abrangendo vastos períodos históricos, devidamente expostos poderão proporcionar aos visitantes a possibilidade de “viajar” pelo Oriente, oferecendo sentimentos e pensamentos, e porque não sonhos, qual janela ligando mundos, tempos, culturas e pessoas diferentes, assumindo um papel importante na interpretação da cultura e na educação do Homem, bem como no fortalecimento da cidadania e do respeito à diversidade cultural, recordando a primeira globalização mundial feita pelos portugueses.
E certamente poderá ter também uma função didáctica junto das escolas, concorda?
Sim terá seguramente uma função didáctica junto dos estudantes pelas legendas, com locais e toda a informação necessária e que acompanharão as peças visando mais o ensino secundário, porque apoiarei a criação de um gabinete de estudos para o qual disponibilizarei largas centenas de livros de temáticas sobre os territórios que fizeram parte do antigo Império, bem como mobiliário oriental, como secretárias, cadeiras, cadeirões, mesa de trabalho, diferentes colecções pessoais, atribuindo ao aluno com o melhor trabalho de História sobre o antigo Império Português uma bolsa anual de 500 euros, ao longo de cinco anos.
Acrescento ainda que possuo mapas e referências históricas de todos aqueles antigos espaços da diáspora portuguesa oriental, bem como legendas e curiosidades sobre cada uma das peças e conjuntos de peças, que pelas mãos de um arquitecto e de um designer poderiam tornar-se numa exposição viva, curiosa e atraente.
Nunca pensou em vender este património?
Já me têm aparecido compradores para parte deste espólio como artesanato, pedras, armas, etc. Mas considero mais útil deixar todo o conjunto intacto para melhor compreensão dos povos com quem convivemos durante séculos.
Só contactou Santarém para a possibilidade de expôr nesta cidade as suas peças ou contactou outros locais?
Não. Contactei outras entidades que tiveram personalidades que se celebrizaram por aqueles territórios em feitos que a nossa História assinala. Algumas já demonstraram o seu interesse por este espólio, porém repito, porque desde 1974 fiz de Santarém a minha cidade, onde servi diversas instituições e milhares de crianças e jovens, seria prazer meu que todo este património permanecesse na cidade de Santarém, a minha cidade, depois que perdi a terra onde nasci, Damão na antiga Índia Portuguesa. Aguardo agora que a autarquia manifeste também esse interesse.