A jurista Susana Pita Soares lança, sábado, o livro “Crime de Abuso Sexual de Crianças – Valoração da Prova”, no qual defende que as vítimas devem ser ouvidas em espaços definidos, por profissionais especializados, e o fim dos testemunhos repetidos.
Editado pelas edições Cosmos, o livro será apresentado no sábado à tarde na Sala de Leitura Bernardo Santareno, em Santarém, por João Guilherme Gato Pires da Silva, que foi juiz presidente da Comarca de Santarém entre 2014 e 2016.
Susana Pita Soares disse à Lusa que o livro resultou da tese de mestrado que concluiu em 2013, tendo ficado “na gaveta” tantos anos por tratar de um tema que “mexeu muito” consigo, ao ponto de a leitura de alguns acórdãos lhe ter provocado náuseas, e que “mexe com muitas pessoas”.
Para a jurista, a questão da valoração da prova neste tipo de crimes, tema central da sua investigação, “reside exactamente em que, na maioria dos casos, a única prova que existe é o testemunho da vítima”, dado que, quando surge a queixa, geralmente já não há vestígios físicos.
“Seja porque quando chega ao Instituto de Medicina Legal já passou muito tempo, porque quando a criança falou ninguém acreditou, porque só decidiu falar não sei quanto tempo mais tarde”, restando apenas o testemunho da vítima e o do agressor, na maioria das vezes alguém do círculo familiar ou de relações muito próximas com a família.
É a palavra da criança, “muitas vezes atemorizada, quer seja pela sombra dessa figura simultaneamente opressora, mas que, por outro lado, também mima e também acarinha”, gerando uma “ambiguidade de sentimentos”, contra a palavra de um adulto “com um perfil manipulador, sedutor, em que se torna difícil acreditar que aquele homem, inserido socialmente, reconhecido muitas vezes pela sociedade, possa ter cometido aquele tipo de crime”, disse.
A decisão de abordar este tema teve origem num caso que acompanhou ainda antes de tirar o curso de direito, quando era professora em Rio Maior, de uma aluna “problemática, insolente, que ninguém percebia porquê, já que tinha uma família aparentemente funcional”, que um dia lhe contou estar a ser abusada pelo próprio pai e que a mãe não acreditava nela.
“A rejeição começa muitas vezes no seio da própria família. Há muitas jovens que ainda hoje certamente calarão situações parecidas, com a complacência, o beneplácito dos adultos. É o que choca mais”, afirmou, sublinhando a importância de “dar o benefício da dúvida, de parar para ouvir, esclarecer e sinalizar”, o que é “uma obrigação de todos”.
Quando chegam ao sistema judicial, as crianças “devem ser ouvidas em espaços definidos, em salas que têm todo um conjunto de condições para que isso possa acontecer”, disse, salientando o facto de actualmente muitos tribunais já terem salas específicas para esse fim.
A jurista alertou para a “vitimização secundária” que resulta de sujeitar a criança “ao mesmo tipo de interrogatório”, tendo em conta que antes falou “à mãe, ao professor, ao hospital”.
Há ainda os relatórios de acompanhamento dos psicólogos, dos serviços sociais, das Comissões de Protecção (CPCJ), acrescentou.
“Não é só no contexto judicial, a criança vai sendo ouvida noutros contextos e noutras circunstâncias, em que, sem nos apercebermos disso, estamos a contribuir para a vitimização secundária, fruto desta sujeição sucessiva de ‘então, como é que foi, o que é que ele te fez, isto foi mesmo assim?’”, além dos “efeitos colaterais para família e os amigos”, disse.
Por isso, recomenda ao sistema que tenha o “cuidado de se rodear de profissionais especializados nestas áreas (há muitíssimo bons em Portugal)”, em particular continuando o “diálogo” com a psicologia, e que tenha “a capacidade” de “aliar a competência técnica ao humanismo e à sensibilidade que é precisa no tratamento de uma questão tão delicada e que mexe com tantas vidas, da vítima e dos que estão à volta”.
Como exemplo relata o caso da juíza que “sentou a criança no colo e ouviu-a ternamente”, apelando a que, a par de “toda a austeridade, todo o rigor e toda a cientificidade que tem que haver no tratamento destas questões, tratando-se de menores”, haja a “sensibilidade” de se perceber que se está “a lidar com crianças que estão a formar a sua personalidade e que a atitude que se tiver não se vai sentir apenas nesse dia, terá repercussões para muitos amanhãs”.
Por isso, recomenda que se alie “a competência técnica ao humanismo e à sensibilidade que é precisa no tratamento de uma questão tão delicada e que mexe com tantas vidas”.