No coração do Ribatejo, um grupo de músicos tem dado corpo e alma a uma tradição nascida nas margens do Mondego. Há 40 anos, o Grupo de Guitarra e Canto de Coimbra de Santarém (GGCC) mantém-se fiel às origens do Fado de Coimbra, ao mesmo tempo que lhe imprime uma identidade própria, feita de memória e de reinvenção.
Desde a sua criação, em 4 de Julho de 1985, este colectivo tornou-se um dos mais antigos do género no país, símbolo de um diálogo constante entre a herança coimbrã e o pulsar ribatejano. Entre guitarras, violas e vozes, os músicos do GGCC interpretam as baladas que marcaram gerações, e continuam a emocionar públicos de todas as idades com histórias de amor, saudade e resistência.
“Esta música não é apenas estética, tem também um peso social, cultural e até político”, lembra João Luiz Madeira Lopes, guitarrista e um dos fundadores do grupo, que recorda os tempos em que canções de intervenção, como as de Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira, circulavam em segredo e davam coragem a muitos antes da Revolução de Abril. É essa dimensão maior do Fado de Coimbra — enquanto memória colectiva e sinal de liberdade — que continua a alimentar o trabalho do grupo.
A semente do que hoje é o GGCC germinou décadas antes. Desde as primeiras gerações de alunos do Liceu Sá da Bandeira que partiam para Coimbra levando no coração o fado dos estudantes, passando por grupos informais nos anos 50 e 60, o espírito coimbrão fez sempre parte do imaginário cultural de Santarém. Quando, em 1985, cinco músicos — Luís Malha Valente, João Luiz Madeira Lopes, Fernando Martinho, António Viegas Tavares e Raúl Melo Santos — oficializaram o grupo no seio do Centro Cultural Regional, fizeram-no com o desejo de dar continuidade a essa tradição, mas com uma personalidade própria, enraizada no Ribatejo.
Actualmente, a formação conta com uma dúzia de elementos, entre cantores, guitarristas, violistas e sonoplasta. O repertório combina os clássicos de Edmundo Bettencourt, Fernando Machado Soares e Luís Góis com criações originais, como a Balada de Santarém, composta por António Viegas Tavares. Ensaiam regularmente, com maior intensidade nas vésperas de actuações, e levam aos palcos um som depurado e emotivo.
Apesar de manterem o apego à tradição, os músicos não ignoram a necessidade de inovar, ao introduzir novas temáticas e sonoridades. Essa abertura ao novo ajuda a manter viva a ligação às novas gerações, que continuam a ouvir e a sentir estas melodias.
Para João Luiz, a maior recompensa é ver como o Fado de Coimbra ainda ocupa um lugar na alma colectiva dos portugueses. “Quando percebemos que conseguimos tocar pessoas de diferentes idades e sensibilidades, sentimos que a nossa missão faz sentido. É a prova de que a música de Coimbra continua viva.”
Entre o Tejo e o Mondego, a voz de Coimbra ecoa em Santarém. Com a mesma dignidade de sempre — e a certeza de que tradição e futuro podem, e devem, caminhar lado a lado.
No âmbito das comemorações do 40º aniversário do Grupo de Guitarra e Canto de Coimbra, celebrado por meio de uma serenata monumental no Largo do Seminário, João Luiz Madeira Lopes, um dos fundadores, recebeu-nos no CCRS para uma conversa sobre o percurso trilhado ao longo das décadas pelo grupo, desde desafios, momentos marcantes e perspetivas para o futuro.
O que o motivou, juntamente com os outros fundadores, a criar o Grupo de Guitarra e Canto de Coimbra em 1985, e que memórias guarda desses primeiros momentos?
Faz precisamente hoje, dia 4 de Julho, 40 anos que o grupo foi criado. Este grupo foi criado porque em Santarém há uma grande tradição de fado de Coimbra. De resto, houve nomes importantes em Coimbra, no fado de Coimbra, que começaram e aprenderam a cantar em Santarém. É o caso do José Nisa, já falecido, que foi também presidente aqui, do centro cultural, do Fernando Rolim, que já tem 90 anos, mas que continua ainda a cantar. Mas tivemos outros, o David Leandro Ribeiro e muitos outros que começaram aqui em Santarém e depois foram para Coimbra e foram célebres em Coimbra no canto. Portanto, Santarém sempre teve uma grande tradição.
Há até investigação que relaciona o rei D. Luís I que teria publicado um decreto em que autorizava que Santarém também tivesse o uso da capa e da batina, das tradições académicas. Eu fiz aqui o liceu de Santarém e usei sempre capa e batina até ao sétimo ano. Antes havia esse hábito e também havia grupos de fado de Coimbra. Havia récitas anuais dos estudantes nessa altura, no sétimo ano, que equivale hoje ao 11º ano. A récita começava com uma peça de teatro e terminava com o fado de Coimbra. As pessoas aprendiam, uns a tocar e outros a cantar e havia uma serenata aqui, no Largo do Seminário, nas escadarias, com os estudantes de capa e batina.
Nós quando criámos este grupo, o então presidente e que foi o criador, o Luís Malha Valente, convidou-me para fazer parte da direção e gostava muito de cantar o fado de Coimbra. E, portanto, quando foi inaugurado este espaço que estava muito degradado e foi motivo de grandes obras, criou-se aqui o que se chama de ‘café-concerto’, com várias atividades musicais e bailado. E depois pensámos também em haver um momento de fado de Coimbra. Ele cantava no couro do circulo cultural e eu juntei antigos colegas que eu sabia que tocavam guitarra, outros viola, outros cantavam e juntámos aqui um pequeno grupo que foi o grupo fundador. E de então para cá, nunca mais parámos e temos orgulho de dizer que somos o grupo mais antigo de Portugal de fado de Coimbra. Temos muito orgulho nisso, porque temos mantido a continuidade. É claro que não estão todos os elementos de há 40 anos. Alguns faleceram, outros afastaram-se, mas entrou gente nova e temos atualmente alguns jovens que nos estão a dar alento para continuar.
De que forma é que o grupo conseguiu equilibrar, ao longo destas quatro décadas, a preservação da tradição do fado de Coimbra com a necessidade de inovar e dialogar com novas gerações?
Não tem sido difícil. Fazemos muitos ensaios. Durante muitos anos fizemos semanalmente, agora fazemos de 15 em 15 dias, a não ser quando temos a serenata, voltamos aos ensaios semanais. Cria-se uma amizade e as pessoas gostam de conviver. Também às vezes metemos um petisco para animar a festa e, portanto, não tem sido difícil. É claro que também temos, além da serenata tradicional, outros eventos. Temos uma atividade que chamamos serenata Mariana, que é nas escadarias das igrejas, onde nos últimos anos das comemorações do 25 de Abril, costumamos ir a duas/três freguesias rurais cantar temas religiosos dentro do fado de Coimbra. Vamos também dia 8 à homenagem ao professor Veríssimo Serrão que faz 100 anos, num momento de fado de Coimbra, visto que o Veríssimo Serrão foi membro do grupo, tocava viola. Temos também um convite para ir a Andorra no próximo ano, como o apoio do consulado. A 13 de Setembro vamos a Setúbal, nas escadarias da Câmara de Setúbal. Há muitos anos que organizam serenatas Temos sempre muitos convites, já percorremos praticamente o país, já tivemos no estrangeiro, em Gannat, perto de Vichy e temos mantido este grupo, refrescando com elementos novos.
Ao longo destas quatro décadas, houve algum momento ou actuação que considere particularmente marcante ou simbólico para a história do grupo? Pode partilhar essa experiência?
As nossas atuações que eu gostaria aqui de referenciar são de homenagens que fizemos a todos os grandes cantores e guitarristas que passaram por Coimbra. Não só o tal Fernando Rolim, como também homenageámos o José Niza, homenageámos também o Edmundo Bettencourt, homenageámos praticamente todos os cantores e tocadores do fado de Coimbra. Trouxemos o António Brojo, trouxemos os grandes grupos e este ano escolhemos talvez o grupo mais antigo e de referência que é o Raízes de Coimbra.
O grupo tem uma forte ligação à história e identidade de Santarém. Como vê o impacto do grupo na vida cultural da cidade e na valorização do património local?
Eu penso que é um grupo bem acolhido. Estou com esperança de que este ano o Largo do Seminário se encha, como é habitual. Portanto, pensamos que isto é para continuar, com o rejuvenescimento que estamos a conseguir sem grande dificuldade.
Quais considera terem sido os maiores desafios enfrentados pelo grupo nestes 40 anos, tanto a nível artístico como de continuidade e renovação de membros?
Os desafios é sermos convidados para ir a outros sítios. Temos ido quer ao Norte, que ao Sul, já tivemos também no Algarve várias vezes, fomos a Coimbra também, o que nos honrou muito. Já estivemos na Sé velha, nas escadarias onde fazem a serenata monumental. Felizmente há muita gente nova e até mulheres, até há raparigas que tocam bem, há muitos grupos jovens. Temos um jovem na guitarra portuguesa. Depois da serenata, vai começar a ensaiar um outro jovem que também toca na orquestra típica. Temos cantores jovens e temos também na viola gente jovem, estamos a refrescar o grupo. O grupo irá ter continuidade, no meu entender.
Que mensagem gostaria de deixar às novas gerações de músicos e ao público que acompanha o fado de Coimbra, olhando para o futuro do grupo e desta tradição musical?
Que continuem a gostar do fado de Coimbra. É um bocadinho diferente do fado de Lisboa. A guitarra portuguesa nasceu de um instrumento vindo do Reino Unido, depois foi adaptado. A família Paredes deu uma grande importância. Começou com o Gonçalo Paredes e antes com o pai dele, o Artur Paredes e depois o Carlos Paredes foi um nome famoso que é conhecido mundialmente como um grande guitarrista. Embora ele criasse depois um estilo que autonomizou não só a guitarra de Coimbra, como um estilo próprio que foi para além da guitarra de Coimbra. E, portanto, esta família Paredes foi importantíssima e as pessoas que tocam guitarra de Coimbra esforçam-se por tocar o Artur Paredes e o Carlos Paredes, porque são os melhores guitarristas a nível dessas variações de Coimbra que a meu entender são mais ricas a nível instrumental do que as variações de Lisboa. Não estou a criticar o fado de Lisboa e as variações de Lisboa que também tem alguns bons guitarristas, com boas variações, mas não tem nada a ver com a riqueza do instrumental da guitarra de Coimbra.
“Tudo aquilo que me passou pela cabeça eu já tentei pôr em prática”
Para além do Grupo de Guitarra e Canto de Coimbra, João Luiz Madeira Lopes também possui ligações ao Centro Cultural Regional de Santarém (CCRS) – Fórum Actor Mário Viegas, sendo o seu actual presidente, o que evidencia a sua atividade e presença em várias frentes culturais. No ano em que se celebram os 45 anos do CCRS, o atual presidente conta-nos quais são os desafios, as bandeiras e as atividades do centro cultural, pedindo ajuda à direção do centro cultural para o auxiliar com as datas dos próximos eventos.
“Temos a exposição que está atualmente ‘Calcular na Areia’. Temos as ‘Férias Criativas’ que é para a ocupação dos tempos livres dos jovens. Temos sempre ao primeiro sábado de cada mês, para quem se quiser inscrever, o laboratório de fotografia, para saber como é que revelavam os rolos e como é que se passava para o papel”, começa por enumerar Vítor Lopes, vice-presidente do CCRS, referindo que, ao todo, são 140 atividades disponíveis durante o ano inteiro. “Queremos proporcionar um contacto com as artes a quem queira, desde pintura, fotografia, música”, sublinha o vice-presidente.
Apesar das vários ofertas culturais existentes no fórum, a falta de mão de obra, de comunicação e de interesse por parte do público, são alguns dos obstáculos impostos às iniciativas do espaço cultural. “Não conseguimos que as escolas venham às exposições. Era bom que as escolas participassem mais nas atividades culturais. Porque a cultura também é precisa para eles. Tirá-los das tecnologias ou trazer as tecnologias à arte”, expõe Vítor Lopes que refere que o fórum tem de melhorar a sua comunicação com o público. “Temos de melhorar a comunicação para trazer público. O público está muito afastado da cultura”.
Para além da vertente comunicacional, as parcerias entre associações culturais é outra das medidas defendidas por Miguel Canaverde, vogal do CCRS, como maneira de atrair mais público até ao espaço cultural. “Trabalharmos em conjunto para fazer um projeto em coletivo. Pensarmos cada vez mais em envolver as pessoas da cidade, sejam artistas ou não, para isso também trazer cada vez mais público. Dar oportunidade cada vez mais às pessoas para participarem nas nossas atividades e não sermos só nós a fazê-las”, indica o vogal que reconhece, no entanto, que atualmente, “cada associação trabalha muito em conjunto com os seus próprios meios”.
Apesar das dificuldades e problemas existentes, o CCRS tem uma tradição de ligação à comunidade local, procurando contribuir para o desenvolvimento e preservação da identidade cultural da cidade de Santarém. “Nós tentamos proteger os anseios da população. Claro que não somos só nós. Penso que Santarém tem uma série de associações culturais e desportivas que estão muito empenhadas com realce, no meu entender, para o Círculo Cultural Escalabitano e aqui para a Sociedade Recreativa Operária, cada uma nas suas áreas, cada uma tem coisas que se vão completando. E nós colaboramos em conjunto e é importante”, realça o presidente do Fórum Mário Viegas que, apesar dos esforços de união e colaboração entre as associações culturais, “às vezes são sempre os mesmos que gostam da cultura e que aparecem”.
Questionado sobre que projectos ou eventos emblemáticos gostaria ainda de ver concretizados durante o seu mandato, João Luiz Madeira Lopes responde: “Eu tenho dificuldade em responder a essa pergunta. Tudo aquilo que me passou pela cabeça eu já tentei pôr em prática ou sensibilizar esta equipa da direção do centro cultural para pôr em prática. Não tenho assim nada que esteja a conspirar e que diga “vou propor isto!”. Nós temos reuniões, normalmente são de 15 em 15 dias, e vão despertando ideias que vamos aperfeiçoando e vão abrangendo outras áreas que não estão tão atingidas”, refere com um rosto de satisfação e de riso.
Fundada no dia 30 de março de 1985, a sede do Centro Cultural Regional de Santarém desde cedo que se consolidou num projeto de animação, assente na valorização estética do espaço, na altura denominado de fórum, criado para a polivalência de ações, permitindo o intercâmbio de experiências e apostando na diversidade.
Ao longo do tempo, o fórum foi atraindo um público informal e assíduo, através da regularidade das suas iniciativas, como, também, pela qualidade das mesmas. Reforçar a regularidade das ações e aprofundar a sua dimensão regional, são alguns dos objetivos do fórum desde que abriu portas ao público da cidade de Santarém e nunca mais as fechou, estando sempre receptivo às diversas iniciativas que lhe foram sendo apresentadas, ao longo das décadas.
Exposições de pintura, escultura, desenho, cerâmica e fotografia; debates, colóquios, conferências e ações de formação; ciclos de cinema e ensaios de grupos locais; feiras do livros e cursos de artes plásticas, são algumas das inúmeras e diversas atividades desenvolvidas pelo Centro Cultural Regional de Santarém, em 45 anos de existência.
Em 1996, o espaço passou a ser denominado de Fórum Actor Mário Viegas, em homenagem ao falecido actor e poeta, Mário Viegas, natural de Santarém.