Por ocasião dos noventa e cinco anos de meu Pai, Prof. Joaquim Veríssimo Serrão, que se cumprem nesta data de 8 de Julho, não posso deixar de enaltecer os grandes valores que sempre nortearam a sua existência: a capacidade formidável de trabalho na investigação e na escrita, a generosidade de partilha de saberes com colegas, alunos, orientados e todos os que lhe solicitavam pistas de investigação, e a coerência por princípios de dignificação da cultura a que manteve fidelidade impoluta.
Não é pouco para encher uma vida.

Da capacidade de trabalho fala a obra científica que produziu como historiador, que é gigantesca e de dimensão internacional: uma obra sempre rigorosa, assente em fontes primárias e em pesquisas de ponta, renovada em termos metodológicos, actualizada nas fontes seguidas e inflamado no poder de comunicação junto dos auditórios, fossem eles académicos, estudantis ou de maior sentido divulgativo.

Da generosidade de partilha falam centenas de discípulos, desde alunos a orientandos de teses universitárias, a académicos no campo das Ciências da História ou a simples curiosos locais envolvidos em investigações de âmbito regional e local, incluindo num nível mais especializado os seus pares a nível europeu e ibero-americano, numa dádiva de saberes praticada sem distinção de origem social, credos ou raças.

Da coerência de ideias, enfim, falam os passos de vida, sempre em defesa da cultura portuguesa e da maior e melhor internacionalização do nome de Portugal. E neste aspecto não esqueço que, tendo ele sido membro do MUD juvenil nos anos estudantis em Coimbra (pois era desafecto ao salazarismo, por isso muito prejudicado no início da carreira e no leitorado em Toulouse, face aos informes e delações pidescas), foi mais tarde um apoiante sincero de Marcello Caetano, que julgou ser, como tantos outros, a pessoa indicada para abrir o regime do Estado Novo.

A verdade é que não deixou nunca de apoiar o seu amigo, após o 25 de Abril de 1974, em tempos para ambos menos felizes, mantendo fidelidade a ideias conservadoras e envolvendo-se em não poucas polémicas para afirmar os seus valores. Após 1977, de novo, retoma a vida universitária, a presidência da Academia Portuguesa da História, e a carreira brilhante de historiador, de professor e de mestre. Fala por si, a este propósito, a monumental História de Portugal da Editorial Verbo em dezoito volumes (1979-2010), que foi para as últimas gerações de estudiosos, e para imensas pessoas apenas curiosas, o primeiro e mais esclarecedor contacto com a identidade histórica do nosso país.

Acresce um aspecto complementar aos referidos (mas nem nem por isso menos relevante): o amor pela sua Santarém, a cidade a que dedicou tantos estudos e a cujo Município legou a sua biblioteca de 35.000 volumes e o seu acervo documental, incorporados no Centro de Investigação que tem o seu nome. A este propósito, o livro Santarém – História e Arte (1959), por certo uma das melhores monografias dedicadas a uma cidade portuguesa, reflecte essa história continuada de devoção e amor. De há muito esgotado (embora já por duas vezes reeditado), trata-se de uma obra que bem merecia da parte da Câmara Municipal de Santarém o esforço de uma nova edição.

A respeito da efígie de meu Pai, sua «veram imaginem ipsius», desejo referir-me a três retratos pouco conhecidos, da autoria de outros tantos consagrados pintores ribatejanos, e que se encontram, ainda por catalogar, no seu acervo pessoal, destinados (por desejo expresso da família) a ingressar no CIJVS, por dirigido pelo Prof. Martinho Vicente Rodrigues. O mais antigo (1958) é um vigoroso desenho da autoria do pintor Filipe Cadima Tavares (1914-1973), o segundo data de 1960 e deve-se à perícia de Augusto Braz Ruivo (1906-1983), e o último (de cerca de 1980) deve-se ao pintor e restaurador Américo Marinho (1913-1997). Conheci muito bem estes três artistas. Ainda me recordo perfeitamente, sendo muito menino, de assistir à execução dos dois primeiros retratos referidos, na casa em que residíamos no Bairro de São Bento, em Santarém, e muito em especial das conversas sobre arte e património santareno entabuladas entre meu Pai e Braz Ruivo, que além da apurada sensibilidade artística era também um apaixonado conversador.

Sem mais palavras (que nesta ocasião seriam redundantes), recorro a uma poesia de Nuno Júdice, do livro A Pura Inscrição do Amor (D. Quixote, 2018, p. 102), que diz o seguinte: «(…) lembro o que é tão vivo / que já a vida o levou: / mão pousada e leve / no ramo que a ave deixou / ao ver, tão breve, / o mor que ali ficou».

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