Ao Luís de Camões (c. 1525-1579 ou 1580) se deve a belíssima súmula poética em que descreve a antiguidade e os valores histórico-artísticos e lendários de Santarém como ‘o sempre enobrecido Scabelicastro’. Trata-se de um elogio admirável, de recorte clássico, que reflecte muito sobre a familiaridade que unia o vate à capital do Ribatejo e vem, ademais, iluminar a verdadeira importância que auferia no século XVI.
Nesses termos se refere à vila do Tejo em estrofe da sua obra épica Os Lusíadas (III, 55), saída em 1572, valorizando não só a terra natal de sua mãe Ana de Sá Macedo, e à qual o ligavam tantos vínculos de família e relações de amizade, mas também a relevância nuclear santarena no contexto do Reino (e mesmo, pela sua antiguidade, no âmbito da Península Ibérica). A recente Jornada sobre o tempo do Renascimento em Santarém, que o Fórum Ribatejo promoveu, destacou devidamente essas valências plurais, hoje muito esquecidas, lembrando como as melhores élites dotadas de cultura humanística se estabelecem na vila, a seguir ao terramoto de 1531, e nela criam um verdadeiro centro das artes e letras com sentido internacional de ‘aggiornamento’.
Expressão latinizante com que o vate trata de modo tão carinhoso a vila do Tejo, destacando-lhe a antiguidade e a aura lendária, Scabelicastro é, na verdade, uma invenção do próprio Camões, como bem observou Mário Rui Silvestre numa longa apaixonada análise em que explica de modo absoluto, com sólida base de erudição, a referência do vate. Scala(bis) + Belli + Castrum é um topónimo que integra três ‘topoi’ arcanos, todos muito elogiosos e, no seu conjunto, áspide de fama insolúvel. Surge na famosa estrofe ‘o sempre enobrecido Scabelicastro, / cujo campo ameno, / Tu, claro Tejo, regas tão sereno’, permitindo relacionar, ademais, as lendas da fundação de Santarém com a própria grandeza histórica, cultural, política e estratégica da vila.
À lenda do denominado Rei Abidis, filho de Ulisses (o fundador de Olisipo, a nossa Lisboa), espécie de retoma da história de Rómulo e Remo, que geraram a futura Roma, junta Camões toda a cartografia lendária que reforça a ideia de uma Santarém ungida pela fama. Neste caso se integra, naturalmente, a lenda da mártir Santa Iria que, como se sabe, nos conta a saga de uma jovem cristã alegadamente assassinada em Nabância (Tomar) no ano de 653 d.C. e cujo corpo foi lançada ao rio Tejo, tendo aportado, incorrupto, à margem da Ribeira de Santarém. Tornada uma espécie de padroeira emérita, protectora contra as cíclicas cheias do Tejo, Santa Iria adquire maior expressão devocional quando a Raínha Santa Isabel, em 1324, fez assinalar o lugar do alegado achado da sepultura com um padrão que, com diversas modificações, se preservou até aos nossos dias e constitui um dos emblemas míticos da cidade.
Sabemos que o verso de Camões inspirou outros poetas sucedâneos. Mas nenhum é tão explícito sobre o papel de Santa Iria no imaginário, escalabitano e nacional, como um poeta do século XVII chamado Manuel Tomás (1585-1665). Este admirador do vate era de origem cristã-nova e nasceu cinco anos apenas após a morte de Camões. Pertencia ao ramo dos Abravanel, tendo os seus irmãos fugido às perseguições da Inquisição e buscado radicação em Amsterdam. Apesar dessa sua origem, era católico fervoroso e escreveu uma obra poética com destacado peso devocional que teve certa celebridade no seu tempo, sobretudo a ‘Insulana‘, poema em dez cantos dedicado a João Gonçalves da Câmara, 4º conde de Vila Nova da Calheta, e publicado em Antuérpia em 1635. Ora é aí que lemos (livro I, estrofe 35) o seguinte: ´Sempre em Cabelicastro, o trigo louro, / Offereçe honrando os campos, tal que espanta, / Mas mais os (h)onra com Eiria santa’.
Assim se refere a Santarém este poeta do século XVII, leitor de Camões e conhecedor da referência que consta n’Os Lusíadas, destacando os seus pergaminhos lendários e históricos e, em particular, a lenda de Santa Iria. Por certo Manuel Tomás conheceu Santarém em alguma viagem, antes de se radicar na Ilha da Madeira, onde escreveu a ‘Insulana’. A evocação escalabitana de Tomás em homenagem ao vate evoca os férteis campos da lezíria regada pelo Tejo, dos quais diz serem honrados pela eterna protecção de Santa Iria Mártir…
O poeta Manuel Tomás nasceu em Guimarães em 1585, filho de um professor de Medicina, o judeu converso Luís Gomes de Medeiros (Joseph Abravanel) e de Grácia Vaz Barbosa. Era mercador como ganho de vida, mas cedo se destacou como poeta e escritor de recorte católico. Na qualidade de declarado converso, estabeleceu-se na Ilha da Madeira, estando já documentado no Funchal em 1610 e tendo, entre outras, a função de intérprete dos navios estrangeiros; em 1629, aliás, vemo-lo a substituir nesse ofício um certo Fernão Favila de Vasconcelos, que lhe pagaria parte do seu ordenado. A biografia, fixada por Rui Carita e outros autores, mostra que foi membro de confraria e irmandades funchalenses e na cidade atlântica viveu, com grande respeitabilidade, até à morte ocorrida em 1665, tendo já oitenta anos, quando foi assassinado pelo filho de um ferrador da cidade por razões ainda ignotas. Foi sepultado, sem ter podido fazer testamento, no Convento de São Francisco do Funchal, tendo merecido loas dos seus concidadãos.
A obra poética de Manuel Tomás é numerosa e mostra que, católico fervoroso que era, nunca deixou de ter contactos com círculos protestantes e judaizantes dos Países Baixos, onde tinha familiares e onde conseguiu ver editados alguns dos seus livros. Contradições ou não, certo é que não consta que sua obra merecesse suspeitas do Santo Ofício em tempos que tão perigosos eram para liberdades de ousar e temerárias cogitações do espírito… O encómio de Diogo Barbosa Machado (1682-1772) a este poeta, integrado na famosa ‘Bibliotheca Luzitana’ (tomo III, pp. 395-396), enfatiza a sua crença: lemos aí que já aos dezassete anos ele revelava grandes dotes ao escrever um poema em louvor de São Tomás de Aquino, que considerava o seu santo protector. Cedo começou a destacar-se, diz Machado, em ‘poesias tanto misticas como heroicas com que deixou eternizado o seu nome, que aplaude Dom Francisco Manoel de Melo’…
Manuel Tomás tem merecido ultimamente a atenção dos estudiosos do campo da Literatura seiscentista e da História Regional madeirense (no caso, João David Pinto Correia, Nelson Veríssimo, António Rebelo, Margarida Miranda, Martinho Soares e Rui Carita, entre outros). Dizem-nos estas fontes que «a sua obra combina erudição clássica, metáforas exuberantes e elementos históricos, sendo considerada uma fonte literária e documental fundamental sobre a Madeira do século XVI». Não só sobre a Ilha da Madeira, acrescentaria eu, quando a verdade é que na ‘Insulana’ se encontra um retrato tão exacto e bem informado da história do Reino, no seu conjunto – como o atesta a eruditíssima referência a Santarém-Scabelicastro, e a Santa Iria…
Além da referida ‘Insulana’, poema em dez cantos e publicado em Anvers, 1635), escreveu o ‘Poema del Angelico Doutor S. Tomás’ (Lisboa, 1626), as ‘Rimas Sacras Dedicadas a Todos os Santos’ (Anvers, 1635), o ‘O Fénix da Lusitânia, ou Aclamação do Sereníssimo Rei de Portugal, João IV, poema heroico dirigido a Gaspar de Faria Severim‘ (Ruão, 1649), a ‘União Sacramental oferecida a El-rei D. João IV do Nome e XVIII Entre os Reis Portugueses’ (Anvers, 1650), o ‘Tesouro de Virtudes’ (Anvers, 1661), e o opúsculo ‘Décimas a Um Pecador Arrependido’, que foi dado à estampa em folha volante acompanhada de gravura devocional e, ainda, vários panegíricos, romances e loas.
Julgo ser da maior relevância destacar, acima da biografia de Manuel Tomás, a força literária de Scabelicastro, o topónimo elogiativo criado por Camões (e retomado por Tomás em 1635) para enaltecer as valências raras da vila de Santarém, qualidades essas que a tornavam famosa e antiquíssima entre todas as celebridades na geografia do Reino.
O vate sabia que ao reunir na palavra Scabelicastro tais referências latinizantes, eternizava o elogio a uma vila a que, conforme Mário Rui Silvestre vem demonstrando nas suas pesquisas, tão ligado estava por vínculos de amizade e de família. Mas o elogio de Camões não é apenas e só retórica clássica própria da máxima erudição – é, sim, o comprovativo das valências de Santarém, tanto nas lendas clássicas, na saga de Tróia e no historial arcano, como no panorama das artes e letras do seu tempo. Eis, pois, o largo e longo tempo do Renascimento, em que a vila se elevou, no plano cultural, ao nível de verdadeira capital portuguesa.
BIBLIOGRAFIA: João David PINTO CORREIA, ‘O descobrimento da Madeira num poema épico do século XVII: a Insulana, de Manuel Tomás’, Lisboa, 1993; IDEM, ‘O descobrimento da Madeira em textos de poetas “insulares” (principalmente na Insulana, de Manuel Tomás, e na Zargueida, de Francisco de Paula Medina e Vasconcelos’, Porto, 2008; Martinho SOARES, ‘Quem foi Manuel Tomás, autor da Insulana? Um lapsus linguae e outros equívocos’, in O mundo clássico e a universalidade dos seus valores. Homenagem a Nair de Nazaré Castro Soares, coord. de António Rebelo e Margarida Miranda, volume II, 2020, pp. 179-185; ed. da ‘Insulana de Manuel Tomás’, Ed. Afrontamento, vol. I da colecção Epopeias Madeirenses – Obras Completas, 2025; Rui CARITA ´Introdução à Insulana de Manuel Tomás: O poeta Manuel Tomás e a Madeira do seu tempo’, idem, pp. 40-55; e Vítor SERRÃO e Mário Rui SILVESTRE, ‘Camões: Altos Cumes, Scabelicastro e correlatos’, Edições Cosmos, 2024.

