“Serranos, Campinos e Bairrões – Etnografia e Falares do Ribatejo”, a nova obra literária de Francisco Santos Serra Frazão e Luís Duarte Melo foi apresentada ao final da tarde do passado dia 21 de Junho, na Biblioteca Municipal de Santarém/Sala de Leitura Bernardo Santareno, em Santarém, no âmbito da programação do Verão In. Str 2023.
Nesta obra, o alcanedense Luís Duarte Melo biografa neste livro o seu bisavô Francisco Serra Frazão, nascido em 1881. Para além da narrativa sobre a multifacetada biografia pessoal e profissional de Francisco Serra Frazão, na obra “referencia-se a sua actividade como jornalista, publicista e investigador, resultado de pesquisa a fontes primárias em arquivos públicos e privados, ancorada ainda em obras relevantes para efeitos de contextualização, bem como nalgumas fotografias coevas”.
A leitura deste livro “evidencia “abundantes fundamentos” que levaram Luís Duarte Melo a biografar o seu bisavô e a “contextualizar os seus registos de vários Ribatejos em mudança, a transcrever alguns artigos de imprensa e a resgatar do cofre forte de Leite de Vasconcelos manuscritos inéditos redigidos em Santarém entre 1936 e 1940”.
Condições materiais, língua, crença, mito e sabedoria ancestral das comunidades da Serra, Lezíria e Bairro ribatejano, são revelados através da escrita, a par das suas reflexões, críticas, desilusões, tiradas de humor e paralelismos com outros locais onde a vida o levou.
Uma visita ao quotidiano da alma ribatejana, por intermédio da língua portuguesa na boca do povo – um poderoso meio de mundividência e coesão social- , que Francisco Serra Frazão promove a precioso reduto de vocábulos e modos de dizer, por vezes crus, mas propositados e entendidos por toda a gente, que urgia fixar antes que passassem ao rol dos esquecidos.
Qual foi a motivação por detrás da escolha de biografar o seu bisavô, Francisco Serra Frazão, e explorar a etnografia e os falares do Ribatejo?
Desde há alguns anos que nutro curiosidade pela produção literária de meu bisavô. Depois de conhecer as suas obras publicadas, fui em busca do seu espólio inédito. Fiquei impressionado pela respectiva extensão, qualidade e relevância. Senti então a necessidade de o partilhar publicamente, creditar o contributo deste incansável e pouco conhecido autor e estimular outros investigadores a estudar e divulgar a sua obra. A singularidade dos textos levou-me depois a pesquisar a personalidade e o seu intenso percurso de vida, buscando pistas para melhor compreender a obra.
Como foi o processo de pesquisa para resgatar os manuscritos inéditos escritos em Santarém entre 1936 e 1940?
Depois de inventariar conteúdos e detentores do espólio, disperso por vários arquivos públicos e privados, foquei-me nos materiais enviados por Serra Frazão a Leite de Vasconcelos, e que este, por morte, legou ao Museu Nacional de Arqueologia e à Faculdade de Letras de Lisboa.
O interesse regional que quis dar a este livro justificou a inclusão de textos antes publicados pelo autor, mas de difícil acesso, nomeadamente na Revista Lusitana em 1939, no Ribatejo Ilustrado em 1934-35 no Primeiro de Janeiro em 1939-41 e no II Congresso Ribatejano em 1947.
Quais foram os principais desafios encontrados nessa tarefa?
Nada realmente insuperável. Talvez a extensão dos materiais, a respectiva transcrição e os limites impostos pelos detentores privados de alguns materiais.
Quais são os elementos mais destacados no livro em relação às condições materiais, língua, crença, mito e sabedoria ancestral das comunidades da Serra, Lezíria e Bairro ribatejano?
No domínio da etnografia, a relação das comunidades aldeãs com os elementos do meio natural, faina agrícola, quotidiano doméstico, alimentação, crenças, práticas religiosas, festividades, estórias, sabedoria popular, ensino, administração e relação com o mundo exterior.
Quanto a maneiras de falar, expressões de linguagem e vocábulos antigos, a paixão do autor pela língua portuguesa, a defesa do português clássico e o combate ao emprego crescente de exotismos de linguagem por parte da elite do país e dos intérpretes da política cultural do Estado Novo. E sobretudo, a valorização dos termos de português clássico ainda usados à época pelo povo das aldeias isoladas, já caídos em desuso nas cidades.
Qual foi a abordagem de Serra Frazão para transmitir a atmosfera do Ribatejo aos leitores?
Antes de mais, a vivência imersiva do autor das realidades descritas, a sua capacidade de observação e leitura em profundidade, os segmentos sociais e personagens que povoam os textos, com enfase nos mais desfavorecidos. Depois, a alma que Serra Frazão colocava no que escrevia, expressa por exemplo em reflexões, causas, críticas, desilusões e tiradas de humor.
As “Crónicas da Borda d´Água”, publicadas na imprensa para uma larga audiência, transmitem particularmente a atmosfera do Ribatejo em diversíssimos quadros temáticos.
Quais foram as reflexões mais significativas que Serra Frazão partilhou no livro, em relação às mudanças vividas nessas regiões do Ribatejo?
São inúmeras ao longo destes textos, tais como a importância de registar a cultura popular antes que se desvanecessem as suas formas antigas, a necessidade de introduzir alma no que escrevia, o olhar critico da razão quanto a crenças antigas e explicações para alguns factos observados, o desejo de melhorar as condições de vida das gentes do campo, apenas recordadas em “solenes ocasiões” …
Quais são as principais críticas ou desilusões expressas na obra em relação à preservação cultural e às transformações da sociedade ribatejana?
A sobrevalorização do núcleo central da nova Província do Ribatejo (formalmente criada em 1936, destacada da Estremadura) em detrimento da identidade cultural das restantes sub-regiões, as críticas à política do espírito e censória do Estado Novo, o “adormecimento” do povo português, as críticas às touradas que considerava promover instintos perversos e contendores dos direitos dos animais, as críticas ao estado do Museu de S. João de Alporão …
De que forma a língua portuguesa, na boca do povo, se torna um poderoso meio de mundividência e coesão social, como mencionou?
Os artigos sobre o calão de Minde são, talvez, o testemunho mais expressivo deste ponto. Transcrevendo Frazão: “Este calão é uma espécie de vestido diário, fato de trabalho que todos usam diariamente; mas os demais calões, tantos quase, como os interlocutores, tantos quantos a fantasia dos interventores se lembra de trazer a terreiro, esses não será fácil estudá-los. Não bastaria, para isto, viver em Minde, como se minderico fôramos, seria preciso, primeiro que tudo, ser minderico”.
Como vê o papel do seu bisavô, Francisco Serra Frazão, na promoção e preservação dos vocábulos e modos de dizer do Ribatejo?
Não tendo eu investigado o contributo de outros estudiosos quanto a esta matéria, não me é fácil fazer um juízo comparativo.
De qualquer modo, Frazão foi pioneiro no estudo e publicação sobre o Calão de Minde, julgo que o único que se debruçou sobre modos de falar da Serra de Santo António e registo de vocábulos antigos ainda em uso no Ribatejo. Para além disso, é de assinalar o caracter “enciclopédico” de vocábulos e modos de dizer, incluindo os respectivos contextos.
Diga-se, ainda, que o contributo do autor nesta matéria ultrapassou largamente o que consta neste livro, já que publicou sobre filologia em largo número de jornais e revistas.
Como descreve a relação entre o mundo desaparecido que é retractado no livro e a nossa vida colectiva na actualidade?
Respondo convocando Arturo Pérez-Reverte: “Se não se conhece a História, não se tem ferramentas para conhecer o presente. Somos o que somos porque fomos o que fomos no passado. Não ensinar aos jovens a origem de onde tudo vem, é condená-los à orfandade. E, quando alguém é órfão, qualquer um pode dizer que é seu pai. É esse o perigo.”
Na sua opinião, quais são os maiores desafios enfrentados para preservar a identidade cultural e os falares tradicionais do Ribatejo nos dias de hoje?
Não reflecte maduramente sobre o assunto. Muito se tem investigado e escrito sobre muitas localidades, o que em muito ajuda a preservar a memória. O que não sei e se esses conteúdos, depois de publicados, são efectivamente lidos, discutidos e assimilados por uma parte significativa da população. Outras formas de expressão desta identidade, como o teatro ou o folclore, podem ter um papel muito importante nesta matéria. Parece-me também importante encontrar novas formas de comunicar com os mais jovens e incentivar diálogos inter-geracionais. Há que descentralizar a cultura para o plano local. A leitura dos programas de festas tradicionais locais, mais ou menos homogéneas de norte ao sul do país, variando aqui ou acolá no nome do DJ ou dos efeitos de luz, deve fazer-nos reflectir.
Durante o processo de pesquisa e escrita, houve algum momento que o surpreendeu ou teve um impacto significativo na sua percepção sobre as comunidades ribatejanas?
Não propriamente no sentido da surpresa, mas muitas vezes dando por mim a pensar que o que acabava de ler fazia sentido, conectado com algo que estava antes na minha memória difusa ou mesmo inconsciente. É esse um dos benefícios da Cultura.
Que tipo de leitor espera alcançar com a obra “Serranos, Campinos e Bairrões”?
Por um lado, gostaria que, 80 anos depois, estes textos cumprissem o principal destino que lhes foi dado pelo autor: chegarem a intelectuais e estudiosos da etnografia, etnologia e filologia, que os possam criticar, depurar e aproveitar para trabalhos de maior folego científico. Depois, sendo textos datados, produzidos em determinado contexto, gostaria que pudessem ser vistos também na perspectiva histórica. Finalmente, gostaria que fossem apreciados por todos aqueles que se interessam pela cultura e identidade desta região.
Quais são as principais mensagens ou lições que gostaria que os leitores retirassem do livro?
Não gosto de fazer tal coisa. Preferiria que, da leitura que cada um faça destes textos, saia algo de novo para a sua vida. Reproduzindo o que escrevi na “Crónica da Igreja de Alcanede”, ancorado no Pe. António Vieira: “fica a cada leitor o convite à navegação por este país estrangeiro que é o passado e a liberdade de ligar os respectivos sucessos à sua obra de construção do futuro, sabedor que umas vezes repartirá a sua ciência, outras a sua ignorância”.
Como vê o papel da etnografia na preservação da cultura e na compreensão das tradições regionais, como aquelas presentes no Ribatejo?
Recorro aqui ao Mestre Leite de Vasconcelos: “Pertence à Etnografia examinar o que dá índole e coesão a um povo, e o que o distingue de outro; o que nele é congénito e primitivo, ou que, com o tempo, e por apropriação do que lhe chegou de outro povo, se tornou típico”.
Além do Ribatejo, mencionou paralelismos com outros locais onde Serra Frazão viveu. Pode dar alguns exemplos desses paralelismos e como eles enriquecem a compreensão das comunidades ribatejanas?
“Sobre o chavelho para o azeite da untura, cabe relembrar os brados de que se fez eco toda a imprensa portuguesa, numa prova de insciências lamentável, aí por 1920, se não estamos em erro, em que verberava indignadamente o procedimento inaudito da gente dos Açores, que tinha lá tanta manteiga, que até untava com ela os eixos dos carros. Li isso um dia num jornal de cá, quando me encontrava na mais linda ilha do Arquipélago. E, ao ver a cara enjoada com que os Açoreanos viam a tremenda trepa que os jornais do Continente lhes aplicavam, disse, sem querer ofender uns nem desculpar os outros, insinuei:
– Ora… digam-lhes que cada qual serve-se do que tem de portas a dentro; porque, se vocês aqui untam os carros com manteiga de vaca, eles lá no Continente untam os seus com o rico azeite de oliveira!
Não se calcula a cara dos Açoreanos, que tanto apreciam o nosso azeite do reino, quando eu lhes disse que em Portugal se chegava a untar com ele o rodado dos carros de bois. “–E nós por cá sem uma gota dele, senhor…”. Somente a muita ignorância das condições de vida do nosso povo continental e insular nos podem conduzir estes excessos. Mas isso não é para este lugar”.
Como descreve o impacto da língua portuguesa na preservação da identidade cultural e na coesão social das comunidades do Ribatejo?
Deixo a questão para os filólogos e etnólogos.
Como espera que esta obra contribua para um melhor entendimento do passado e da importância das comunidades ribatejanas na vida colectiva actual?
Para além do que já referi antes, vejo este livro como uma oportunidade para alargar o registo, escrito e publicado, da história, cultura e tradições populares da região.
Quais são os próximos projectos ou áreas de pesquisa que pretende explorar, tendo em conta a temática abordada em “Serranos, Campinos e Bairrões – Etnografia e Falares do Ribatejo”?
No decurso desta investigação surgiu em paralelo significativa quantidade de textos de Serra Frazão sobre história, etnografia e etnologia de Angola, os quais estou a digerir… O tempo dirá.
Filipe Mendes