Hoje, assinala-se o centenário do nascimento do Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão, figura maior da historiografia portuguesa e referência intelectual indissociável da cidade de Santarém, com uma cerimónia de homenagem na Igreja da Misericórdia, às 15h00, uma sessão solene no Convento de São Francisco, às 17h00, e um concerto na Catedral de Santarém, às 21h30. O Correio do Ribatejo dedicou-lhe na sua passada edição um suplemento especial, evocando a dimensão do historiador, do pedagogo e do humanista que marcou gerações através da sua obra, do seu magistério e da defesa intransigente da memória colectiva. Neste conjunto de textos, traçou-se o retrato do homem, do académico e do cidadão que fez da História uma missão de vida.
Joaquim Veríssimo Serrão – Um Amigo de todas as horas…
Falar ou escrever sobre Joaquim Veríssimo Serrão é um desafio, mas também uma imensa satisfação. Muitos o farão melhor do que nós e, sobretudo, sendo capazes de exaltar na justa medida o seu percurso académico e enaltecer as honrarias a que o seu labor, tão proficiente e inspirado, fez jus. Por isso, não nos atrevemos a entrar por esse caminho…
Temos uma profunda e imorredoira admiração pela trajectória do académico e o mais profundo respeito pela sua vasta obra, mas sentimos que falar de Joaquim Veríssimo Serrão não se pode esgotar apenas nesta dimensão intelectual, sem dúvida a mais importante e expressiva, mas não exclusiva. Gostamos de analisar a vida de uma pessoa em todas as suas perspectivas, especialmente nas que extravasam aquela que é a matriz principal da sua existência, no caso do Amigo Veríssimo Serrão a sua magnífica obra de historiador e a respeitada função docente ao mais alto nível do ensino superior.
Nunca perderemos de vista esta dimensão, porque ela é, de facto, especialmente relevante para não ser devidamente exaltada; mas, e o Homem sensível e generoso, e o Cidadão tão consciente das suas responsabilidades cívicas e sociais, e o Amigo dos seus Amigos, sempre solidário e presente?
É desta personalidade tão marcante no quase um século de vida que Deus lhe concedeu que mais nos apraz evocar na celebração do centenário do seu nascimento. E tanto ficará por dizer…
Para além de evidenciar muito cedo uma inteligência perspicaz e uma vontade indómita de aprender, Joaquim Veríssimo Serrão foi um rapaz igual a tantos outros com quem lhe foi dado conviver nos bancos da escola ou nas ruas da velha urbe pela qual sempre evidenciou uma paixão sublime.
Guardava dessas épocas muitas amizades que perduraram toda a vida, porque não obstante o seu prestigiado percurso académico, no país e no estrangeiro, Joaquim Veríssimo Serrão nunca se deixou deslumbrar pelas novas vivências e nunca esqueceu os companheiros de sempre. Continuava a ser o mesmo amigo de todos os dias, de tal modo que quando passava uns dias em Santarém e se cruzava com esses velhos colegas, estes, cientes do seu prestígio e admiradores da sua trajectória, tratavam-no reverencialmente por “Senhor Professor”, no que eram imediatamente admoestados, pois o prestigiado académico não lhes consentia outro tratamento que não fosse o dos antigos bancos da escola, e logo lhes dizia: “Oh! Manel, ou me tratas por tu ou nunca mais te falo!” Sempre esta simplicidade o acompanhou, no que ainda mais reforçava os laços de amizade e de afecto pelos antigos colegas.
Joaquim Veríssimo Serrão não foi um aluno brilhante no ensino liceal. Cumpriu. Não por falta de capacidades intelectuais, mas porque este jovem escalabitano era também irreverente e boémio, gostando de viver os prazeres da vida juvenil, no que encontrou excelentes companheiros entre os quais João Gomes Moreira, António Cacho, Celestino Graça, Edmundo Vaz Mourão, Joaquim Grais, José Manuel Nogueira Gonçalves, Joaquim Martinho da Silva e tantos outros…
A vida juvenil sempre seduziu Joaquim Veríssimo Serrão para outras actividades, tendo sido um dedicado dirigente da Associação Académica de Santarém onde desenvolveu uma notável actividade cultural, que incluía exposições, conferências, espectáculos artísticos e, até, representações teatrais. Joaquim Veríssimo Serrão soube conquistar a disponibilidade e o empenho de todos os Amigos e Colegas para se aventurarem a ir mais além do que era suposto e nunca hesitou em solicitar a qualquer um destes colegas para fazer uma palestra sobre determinado tema, o que os obrigava a estudar mais aprofundadamente o assunto para no tempo certo dissertarem perante os restantes Colegas.
Por vezes eram convidadas figuras ilustres da nossa Cultura para fazer conferências sobre os mais diversos assuntos, às vezes até um pouco a beliscar a “moral e os bons costumes” da época, o que lhe valeu algumas referências por parte dos “guardiães” do regime… Joaquim Veríssimo Serrão não estava conotado com o regime então vigente e sempre pensou pela sua cabeça.
No entanto, as preocupações com a história e com o património escalabitano sempre o acompanharam, pelo que desde muito cedo escreveu e publicou artigos e livros sobre estes temas, tão importantes na época, pois tornaram-se peças fundamentais para uma primeira abordagem a esta área da cultura santarena, cumprindo o importante papel de iniciar nestas matérias muitos dos seus leitores.
Nas páginas do “Correio do Ribatejo, onde plasmou tanta da sua erudição e saber, e de que chegou a ser “Director de Verão”, a convite do saudoso Dr. Virgílio Arruda, afirmou-se um homem de profundas convicções e um denodado defensor de causas, não olhando às incomodidades que a sua posição, consciente e fundamentada, lhe pudessem acarretar. Joaquim Veríssimo Serrão foi sempre um Homem íntegro e vertical, não amenizando os seus pontos de vista para agradar a gregos e a troianos. Defendia aquilo em que acreditava!
Quando exerceu as prestigiantes funções de Director do Centro Cultural Português de Paris e de Leitor de Cultura Portuguesa na Universidade de Toulouse, a sua residência em terras de França era uma autêntica embaixada da amizade, pois amiúde ali recebia a visita de bons amigos, com quem sempre manteve excelentes relações.
Do mesmo modo, quando exerceu a docência na Faculdade de Letras e foi Reitor da Universidade de Lisboa, Joaquim Veríssimo Serrão promovia anualmente a visita dos alunos estrangeiros que frequentavam o Curso de Português à sua cidade de Santarém, onde lhes era proporcionado um périplo pelos monumentos escalabitanos e um almoço típico no Jardim das Portas do Sol, durante o qual se exibiam os Grupos Infantil e Académico de Santarém, dirigidos e apresentados pelo seu Amigo Celestino Graça.
Sempre Santarém no coração e no espírito pelo que nunca desperdiçava qualquer oportunidade para aqui passar uns dias e para aqui viver os últimos tempos da sua existência, tendo tido um acto de inexcedível generosidade, quando, com a concordância da sua Família, ofereceu à Cidade o espólio que constitui o Centro de Investigação Prof. Doutor Joaquim Veríssimo Serrão.
Lembrar nesta grata circunstância Joaquim Veríssimo Serrão é um dever de reconhecimento e de gratidão, mas outrossim, um privilégio para quem continua a salvaguardar a memória de um Homem profundamente bom e de um Intelectual dos melhores entre os seus pares. O tempo não mata a saudade. Sempre Presente!
Centro de Investigação Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão – Onde o conhecimento encontra abrigo
Pelo Professor Doutor Martinho Vicente Rodrigues
O Centro de Investigação Joaquim Veríssimo Serrão, para cumprimento dos seus fins, tem como objectivo a promoção da investigação, estimular a adopção de práticas e processos abertos de criação, partilha e utilização do conhecimento científico nas áreas das ciências sociais e humanas / ciências e tecnologia.
O Centro de Investigação apresenta uma intensa actividade, de reconhecido prestígio, tendo como base e activo a doação feita pelo Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão à Câmara Municipal de Santarém, da sua Biblioteca, documentação manuscrita, ficheiros, diplomas e condecorações, em 9 de Novembro de 2009. O Centro de Investigação foi criado no dia 1 de Março de 2011, ao abrigo de um protocolo estabelecido com a Câmara Municipal de Santarém. O Centro de Investigação abriu-se ao mundo no dia 26 de Maio de 2012.
O Centro de Investigação é constituído por cinco secções: secção das Assembleias de Investigadores, secção dos Protocolos, secção Técnica e Administrativa, secção Editorial e Multimédia e secção de Biblioteca e Arquivo.
O Centro de Investigação Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão, conta com 1100 Membros, nacionais e estrangeiros, que se encontram por 33 países: Albânia, Alemanha, Angola, Argentina, Bélgica, Brasil, Cabo Verde, Canadá, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Espanha, EUA, Finlândia, França,
Guiné-Bissau, Holanda, Índia, Irlanda, Itália, Japão, Macau, México, Moçambique, Perú, Porto Rico, Portugal, Reino Unido, República do Congo, Roménia, Rússia, Singapura e Venezuela.
O Centro de Investigação Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão conta com 27 Protocolos, em articulação com universidades nacionais e estrangeiras, politécnicos, academias, centros de investigação, autarquias e associações.
A acção do Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão é certa a evoluir como evolui o património da humanidade, sendo imperativo do Centro de Investigação Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão divulgar novidades, problemas, expectativas, processos de mudança tecnológica adoptados e novos conhecimentos científicos.
A exposição do sentido da investigação do seu desenvolvimento e aperfeiçoamento de conceitos, teorias e modelos, está nas suas assembleias de investigadores que se realizam em Santarém, Coruche (em conjunto com a Universidade Aberta), Évora (em conjunto com o Conselho Regional da Ordem dos Advogados de Évora) e em Lisboa, na Academia de Marinha.
As Revistas Científicas do Centro de Investigação vão somando numerosos estudos para uma nova reflexão a substanciar o conhecimento científico, tendo, por base do seu sustento, o espírito da inovação tecnológica que é praticamente omnipresente na periodicidade semestral de publicações: a Mátria XXI, no mês de Maio e a Mátria Digital, no mês de Novembro.
Também são muito diversificadas as matérias das publicações do Centro de Investigação com apoio da “acção do mecenato” e da Câmara Municipal de Santarém.
O Centro de Investigação atribui Prémios que têm por objectivo distinguir e premiar Membros do Centro de Investigação nacionais ou estrangeiros, de reconhecido mérito científico e/ou cultural, que tenham contribuído de forma notável para o progresso e o engrandecimento da Ciência e/ou da Cultura e para a projecção internacional do país.
O montante global do prémio pecuniário é inteiramente suportado com o apoio de Famílias e de Empresas. Os premiados recebem, igualmente, um Diploma comprovativo da distinção.
O Centro de Investigação, numa posição de entidade nacional, criou um Fundo Novo durante os seus 13 anos de vida, dado por permutas e doações, que mais eleva no seu projecto de vida, consagrando o património material e imaterial.
O Centro de Investigação Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão tem as suas instalações em salas determinadas no espaço do Presídio Militar.
O Presídio Militar nasce no decorrer dos anos de 1870 e 90, pertencendo a sua concepção e traço aos engenheiros Adolfo Loureiro (1836-1911), Alexandre da Conceição (1842-1889) e José Cecílio da Costa (1844-1918), que tomaram como modelo os pressupostos arquitectónicos emanados por Luís Victor le Cocq e Ricardo Júlio Ferraz, responsáveis pela construção das penitenciárias distritais de Lisboa e Coimbra.
A aprovação do projecto das obras da penitenciária distrital é determinada em assembleia municipal de Santarém, no dia 7 de Abril de 1881.
“Foi presente um ofício do Excelentíssimo Governador Civil deste distrito, na qualidade de representante da Comissão Administrativa da Cadeia distrital. Enviando o duplicado do projecto elaborado pelo engenheiro encarregado da direcção das obras de penitenciária distrital, para o aformoseamento do local da igreja do extinto convento de São Domingos que foi demolido. A Câmara aprovou o mencionado projecto, e deliberou que hoje mesmo se desse conhecimento desta resolução ao presidente da dita Comissão” (1).
O Centro de Investigação Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão ocupa onze salas no espaço do antigo Presídio Militar, hoje Casa de Portugal e de Camões, nas quais está inscrito o pensamento forte da ciência.
Num princípio qualificativo exemplar, o Centro de Investigação tem em vista a sua mudança para a Casa das Palmeiras, na Avenida 5 de Outubro.
O Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão significa o triunfo da inteligência.
Não vou debruçar-me sobre o seu valioso currículo de homem universitário, de historiador e conferencista, porque já tanto está dito. No entanto, desafiado a pensar sobre sementes sopradas da escola Professor Joaquim Veríssimo Serrão, que vaguearam pelo mundo, naquela escuta das fontes, veio-me à memória o tipo da conclamada lição-diálogo, vivida em muitos anos, com o Senhor Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão, no jardim de sua casa no Salmeirim ou na “catedral”, a sua Biblioteca. Guardo dessas horas imensuráveis o potencial do Historiador.
Nesse Salmeirim, onde escrevia a sua História de Portugal, o Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão procurava o trilho de vidas e pessoas de há centenas de anos, fruto da análise dos diferentes níveis da complexa realidade histórica de cada época, apoiado no seu ficheiro de milhares de fichas e na sua biblioteca, que ultrapassa os quarenta mil livros, pouso obrigatório para tantos dos seus alunos.
Tinha um olhar atento sobre os problemas reais, cheio de esperança no mundo, sempre com a preocupação da valorização do homem na sua condição terrestre, longe de encerrar o ciclo de uma formação excepcional.
Adepto de nada deixar de fora, tudo analisar, tudo procurar compreender, num esforço permanente de aproximação à verdade. Numa das suas entre vistas ao jornal “Diário de Notícias”, o Senhor Professor dizia:
“Aquilo em que acredito firmemente é que a vida fez-se para dignificarmos a pessoa humana e para honrarmos o tempo que nos foi dado viver, fazendo o bem e não fazendo o mal.”
O insigne historiador, que tanto tem prestigiado a Cultura Portuguesa, dizia com humildade: “Saí da faculdade como aprendiz de História e continuei aprendiz de História toda a vida. A história é de tal modo grande e importante que estou sempre a rectificar e a rever.”
Sobre o global do homem, o Senhor Professor pegou no tema e disse: “A minha vida é o vício da leitura: assim como não posso viver sem água, não posso viver sem livros.” Para logo acrescentar – “Hoje há uma especialização levada ao exagero, embora não possa haver uma especialização assente na cultura geral, por isso não sou especialista de nada. Interesso-me por tudo, sou especialista do geral”.
A resposta dada ao “DNA” numa entrevista, o Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão, na própria prática pessoal, aberta, mas quanto fecunda da sua Escola, tão exponencial, exacta e sempre esplêndida:
“- O Senhor Professor não usa a internet?
– Nem uso a internet nem uso o computador…
– Escreve à mão.
– Escrevo à mão, arrumo as ideias e escrevo depois à máquina. Faço tudo sozinho. Não sou capaz de escrever no computador, aquilo parece-me um monstro. Tenho as minhas fichas, fichas cronológicas, antroponomásticas, toponímicas, e interpreto a documentação de que disponho para valorizar a minha interpretação”.
Continuamos a sentir-nos na Escola do Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão.
Nota: (1) Vd. AHCMSTR, Livro de Actas da Câmara Municipal de Santarém, 7 de Abril de 1881, pp. 111 e 112.
Um Perfil de Historiador-Humanista
Com meu Pai, na Praça dos Restauradores, Dezembro de 1961
A obra historiográfica de Joaquim Veríssimo Serrão (1925-2020), meu Pai, tem merecido justo destaque científico pelo facto, unanimemente reconhecido, de ter contribuído para inovar a metodologia de pesquisa e as bases teóricas da disciplina da História-Ciência. A sua sólida formação nos princípios franceses da ‘école des Annales’ (Marc Bloch, Lucien Febvre) permitiu-lhe definir uma visão da História ancorada tanto nos microcosmos regionais e locais, como em esclarecidas visões em globalidade, com uma postura progressista do devir.
Aspecto que a sua vastíssima obra nunca descurou na sua agenda de investigação e ensino foi o papel da História como espaço de contextualização de saberes. o facto histórico. A solidez da sua formação em França, onde obteve o primeiro Doutoramento na Universidade de Toulouse (1953), a que se seguiu um segundo doutoramento em Ciências Histórico-Filosóficas na Universidade de Coimbra (1956), permitiu-lhe afeiçoar essa vertente de investigação em nome de uma História-ciência global. Livros como História e Conhecimento Histórico (Ed. Verbo, Col. Presenças, 1968, reeditada pelo CIJVS em 2022) constituem marcos de renovação de um pensamento historiográfico, que o magistério na Faculdade de Letras de Lisboa (a partir de 1961) veio fortalecer.
Nesse e outros ensaios de referência, é já a própria «História como manifestação de Arte» que se desenvolve como esteio do conhecimento científico do passado, ao destacar na prática historiográfica, para além do rigor heurístico, do seu imperativo sentido ético e do assento na análise das fontes primárias, o recurso fundamental a «ciências auxiliares» em que a Paleografia, a História da Arte, a Arqueologia, a Epigrafia, a Esfragística, a Numismática, a Etnografia, etc, tomam lugar e em que a iconografia e as bases imagéticas não podem deixar de ser consideradas como «meios ao serviço de um pensamento criador».
Santarém – História e Arte, edições de 1951 e 1959
O livro Santarém – Histórias e Arte (1959), preito de homenagem ao património da sua cidade, insere-se nesse espírito.
A visão de conjunto defendida como marca da análise historiográfica tem de partir, diz Veríssimo Serrão, de um cuidadoso escopro microscópico adequado ao tecido estudado, em leitura micro-histórica (na linha de Carlo Ginzburg), atenta às fontes documentais e físicas que melhor o possam iluminar. O olhar diacrónico e sincrónico lançado sobre comportamentos periféricos que se agigantam – o papel, por exemplo, dos procuradores dos mesteres de Évora, o barbeiro João Barradas e o borracheiro Sesinando Rodrigues, liderando as famosas alterações anti-filipinas de 1637 — permite explicar melhor, em cores de esclarecimento, o pulmão humano que dá sentido aos factos históricos (ver O Tempo dos Filipes em Portughal e no Brasil (1580-1668), Lisboa, Colibri, 1994, pp. 27-31).
O interesse de Veríssimo Serrão pelas questões da Cultura, da Arte e também da Literatura — como referenciais de uma visão histórica em globalidade — encontra-se já em estudos de início de carreira. É o caso do ensaio que dedicou ao poeta santareno Guilherme de Azevedo (A mundividência na poesia de Guilherme de Azevedo, Santarém, 1948), poeta ‘realista’ e pioneiro do movimento republicano, e do conjunto de trinta textos a que chamou ‘Fragmentos de Oiro’ (1947-1948), saídos no Correio do Ribatejo, dedicados a alguns dos melhores sonetistas portugueses desde Camões e Diogo Bernardes aos contemporâneos (série que mereceu estudo de conjunto da saudosa historiadora Maria Teresa Lopes Moreira), selecção que merecia ser reunida e publicada).
A sua obra incidiu muito nos humanistas do século XVI como António de Gouveia, Diogo de Teive, Francisco Sanches e Manuel Álvares, pensadores livres em difíceis tempos de censura inquisitorial, mostrando constante interesse pela liberdade de criação, expresso nos três tomos da ’Historiografia Portuguesa’ (Verbo, 1972-74). A inovação decorre das investigações inéditas, mãos dadas com a vertente pedagógica, com princípios e métodos em que formou gerações de alunos e seguidores, portugueses e estrangeiros.
A vertente por uma História Política como História Cultural alia-se ao sentido de defesa do património, seja ele edificado, artístico, documental ou arquivístico. O imperativo da salvaguarda sempre esteve presente na sua agenda. O esforço de constituição do Arquivo Distrital de Santarém, por exemplo, decorre da dinâmica que imprimiu à História Regional e Local. Mas é o caso da Torre do Convento da Trindade, salva da demolição in extremis, que merece maior referência dado o impacto público que o assunto mereceu.
Torre da Trindade, em desenho de A. Braz Ruivo, e em fotografia de 1958, antes da demolição da antiga igreja
A conservação da vetusta Torre setecentista do antigo Convento da Trindade, hoje integrada e a dominar no espaço da Escola Prática de Cavalaria, deve-se a Veríssimo Serrão.
Ontem como hoje, a afirmação e participação da sociedade civil na salvaguarda do património é fundamental; se em 1958-59 estes bens eram tão pouco considerados, maior valia tem a sua intervenção, ao conseguir evitar uma destruição totalmente desnecessária, dado o estado de conservação da torre, e gravosa para a imagem histórica da cidade. Esta vitória cívica pode considerar-se, aliás, um grande estímulo para o movimento que viria a dar origem à Associação de Estudo e Defesa do Património Histórico-Cultural de Santarém, nascida em 1977.
Retrato de Joaquim Veríssimo Serrão (1947); desenho, por A. Braz Ruivo (1960); e fotografia no seu gabinete de trabalho em Santarém (2010)
O que restava da igreja e adjacências do velho mosteiro gótico dos frades trinitários foi demolido pelo camartelo municipal nos anos 50 do século passado e só devido à intervenção do historiador pôde escapar a torre setecentista. Um dinâmico movimento cívico em sua defesa agitou as forças vivas de Santarém, em 1959, em que interveio também o Engº Zeferino Sarmento e o pintor Augusto Braz Ruivo, enfrentando forças vivas poderosas, e conseguiu em boa hora reverter a decisão e travar o crime lesa-património que se anunciava. Assim foi salva a torre, que constitui um emblemático ex-líbris da cidade, dominando o conjunto da Escola Prática de Cavalaria, espaço mítico da Revolução do 25 de Abril. Era imperioso, também, travar outros processos destrutivos e pugnar pela salvaguarda integral do centro histórico da cidade, tarefa para a qual deixou vários contributos (Cf. ‘Páginas da História de Santarém’, Academia Portuguesa da História, 2008).
A postura de Veríssimo Serrão assentou nestes grandes pilares: uma História-ciência assente no estudo exaustivo das fontes primárias, um magistério virado para o estímulo à investigação de temas portugueses e uma estrutura teórico-metodológica com signo de globalidade. É o olhar pluridisciplinar que lhe serve de âncora: a História de mãos dadas com outras disciplinas, como a Economia e a Sociologia, esteios de saberes melhor estabelecidos se deixarem perceber os anseios das comunidades nos diversos tempos em apreço. A teoria económica marxista, reconhece-o com desassombro no citado livro de 1968, «deu um impulso à investigação histórica, permitindo um melhor enquadramento da investigação em matéria social e económica: como viveram os homens em sociedade, de que ideias forjaram o espírito, qual a sua participação no quadro político do seu tempo, em que estratos sociais decorreu a sua vida, quais os seus anseios materiais – em suma, qual o valor do homem e a natureza da História ?».
Quatro gerações: Joaquim Vicente Serrão (1904-1990), Joaquim Veríssimo Serrão (n. 1925), Vítor Serrão (n. 1952) e Diogo Serrão (n. 1974), em Santarém, no final de 1987
Veríssimo Serrão junto ao antigo armazém de seu pai Joaquim Vicente Serrão, com o filho Vítor, os netos Diogo e Leonor e o sobrinho António Miguel Semedo. Santarém, 1960
Em Alfange, o Tejo ao fundo, com seu neto Diogo e o amigo de sempre, João Gomes Moreira, nas primícias de 2014
Tem-se insistido muito na postura de Joaquim Veríssimo Serrão como sendo um historiador de corrente conservadora e pessoa alinhada politicamente com o Antigo Regime. Nada mais falso ! Na verdade, o que a sua biografia mostra é o oposto: intelectual de origens humildes (filho de uma família de camponeses da Sinterra), formado em Coimbra em tempos de chumbo, desde muito jovem surge alinhado como estudante na Universidade (e, depois, durante o leitorado em Toulouse) com posições anti-salazaristas. Essa oposição ao regime prejudica-lhe por mais de uma vez a progressão na carreira universitária. Tendo pertencido ao M.U.D. Juvenil em Coimbra, justificou, por isso, vigilância apertada da PIDE, a organização repressiva do regime do Estado Novo, constando em matérias de denúncia em diversos relatórios (no livro de Paulo Marques da Silva ‘A PIDE e os seus informadores. O caso de Inácio’, Coimbra, Palimage, 2017, incluem-se várias denúncias contra Veríssimo Serrão nos relatórios secretos desse esbirro da PIDE). Ainda em 1962, sendo já professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, envolveu-se na célebre greve académica, violentamente reprimida pelo regime salazarista. À data, o então Reitor, Prof. Marcello Caetano, demitiu-se do cargo por discordâncias com os métodos de repressão usados contra os estudantes.
A amizade profunda com Marcello Caetano — convívio que remontava a 1959, depois de se terem conhecido num congresso no Brasil, e que os acontecimentos de 1962 cimentaram — , levou Veríssimo Serrão a acolher com expectativa, a seguir à morte de Salazar, aquilo que muitos portugueses acreditaram então poder ser a abertura do regime do Estado Novo por via reformista. A dureza da repressão policial prosseguia e o ambiente escaldante envolvendo as guerras coloniais e as lutas sociais eram pouco propícias a reformas e, muito menos, às anunciadas «aberturas» da chamada «primavera marcelista» no sentido de acabar com a Ditadura e restaurar a Democracia em Portugal.
É nessas circunstâncias muito difíceis que Veríssimo Serrão aceitará o convite para ser Reitor da Universidade de Lisboa (1973-1974), cargo que assumia à data da Revolução do 25 de Abril de 1974. Em annus horribilis, em que eram impossíveis quaisquer medidas, como se dizia, «liberalizantes», vemo-lo nesse cargo, apesar de tudo, a proteger professores e alunos perseguidos e a tentar pontes dialogais com o regime, mas que a conjuntura tornava impossíveis. Exonerado do cargo no calor das paixões que se seguiram ao derrube da Ditadura e, também, temporariamente saneado da docência universitária (o que especialmente o magoou por ser unanimemente considerado professor de excelência), viveu a fase mais difícil da sua vida. Aproveitou esses anos, porém, para mergulhar num projecto a que dedicou renovado entusiasmo: a redacção de uma monumental História de Portugal pensada para vinte volumes e publicada pela editorial Verbo a partir de 1977 (de que saíram dezanove tomos).
O facto de, ao contrário de quase todos os seus antigos apoiantes, manter relações fraternas com Marcello Caetano, o último presidente do Conselho de Ministros do regime deposto, levou-o a visitá-lo amiúde no exílio brasileiro, daí resultando uma abundante troca de correspondência (trezentas cartas, só em parte publicadas no livro ‘Marcello Caetano — Confidências de Exílio’, Verbo, 1985), que constitui uma fonte riquíssima sobre o período conturbado que precedeu e sucedeu ao 25 de Abril e que permite melhor compreensão de alguns dos acontecimentos, nacionais e internacionais, então ocorridos, e a complexidade dos papéis protagonizados por muitas figuras envolvidas. Segundo o autor, «…para fortalecer essa amizade que era de afecto e estímulo da sua parte e de respeitosa consideração da minha, desloquei-me nos anos de 1978, 1979 e 1980 ao Rio de Janeiro para o acompanhar no dia do seu natalício, a 17 de Agosto»…
A correspondência trocada com Marcello Caetano mereceu ser em parte divulgada no livro de 1985, e não pôde merecer a atenção devida por parte do público devido ao clima de plurais paixões com que a obra foi recebida, entre incomodidade e manifesto júbilo por parte de saudosistas do regime deposto, que viram em Veríssimo Serrão, injustamente, um prosélito do salazarismo. Foi assim que as coisas se passaram: tal livro só poderia mesmo receber referências distorcidas, leituras pessoalizadas, aproveitamentos abusivos e deslocadas paixões, à margem do seu evidente interesse histórico. Mas não subsistem dúvidas de que, libertos do seu lastro de polémica, tanto o livro como a documentação em que assenta (conservada no arquivo do CIJVS sob reserva científica, e ainda parcialmente inédita) virão a merecer da parte dos historiadores do futuro outra atenção como fonte histórica relevante.
O mesmo se diga do imenso fundo de correspondência trocada por Veríssimo Serrão com gerações de seus pares, portugueses e estrangeiros. Esse acervo encontra-se depositado no Centro de Investigação Prof. Joaquim Veríssimo Serrão (CIJVS), criado pelo Município de Santarém em 1 de Março de 2011 para acolher o espólio bibliográfico e documental do historiador, por si doado à Câmara Municipal, com direcção de um seu discípulo e amigo, o Prof. Doutor Martinho Vicente Rodrigues.
O Prof. Doutor Martinho Vicente Rodrigues com Maria Virgínia Guimarães da Silva em 2020, em visita ao Centro
O Centro foi criado tendo como base e maior activo a doação feita pelo historiador, aceite na Sessão de Câmara de 9 de Novembro de 2009, tendo a sua abertura decorrido a 26 de Maio de 2012. O CIJVS está instalado na Casa de Portugal e de Camões no antigo Presídio de Santarém, conservando mais de 38 mil livros, medalhas, condecorações, quadros e centenas de pastas com documentos pertencentes ao arquivo pessoal do doador. A melhor maneira de homenagear Veríssimo Serrão é, por certo, dar o pleno desenvolvimento a este projecto, tal como foi imaginado por si, dinamizando-o como casa de saberes partilhados: um centro de cultura, de investigação e de pesquisa que estimule a História-Ciência no seio das novas gerações.
Em síntese: a figura, a obra científica, o percurso intelectual e a carreira de docência universitária são partes de uma vivência que se confunde, naturalmente, com um difícil arco temporal que contém, necessariamente, aspectos controversos. Mas o traço do historiador-humanista está sempre presente. É unânime destacar, a par do rigor do historiador e do brilho do pedagogo e conferencista, a sua generosidade, o respeito pelos outros e a coragem para agir sempre acima de freios ideológicos e de distinções político-partidárias.
O historiador no seu gabinete de trabalho na Academia Portuguesa da História (Foto de Arlindo Homem)
Não se pode esquecer, ainda, a sua acção de renovação da Academia Portuguesa da História, a que presidiu desde 1975 e até à jubilação (sendo substituído pela Prof. Manuela Mendonça, sua discípula, mas mantendo-se como Presidente de Honra da instituição), e no impulso dado à criação do Instituto Politécnico de Santarém (IPSantarém), de que foi primeiro presidente. A longa carreira foi distinguida com títulos da maior relevância, como sucedeu em 1995 com o Prémio Príncipe das Astúrias em Ciências Sociais. Foi académico efectivo da Academia das Ciências de Lisboa e pertenceu a outras instituições científicas como a prestigiada Academia de Yuste, em Espanha. Em 9 de Junho de 2006 foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago de Espada.
As suas palavras de síntese são todo um programa de vida e uma coerente agenda de trabalho na senda de mais saberes em torno dos factos históricos: «Animado pelo amor ao ofício de historiador e orientado pela procura da inteligibilidade dos fenómenos históricos – que envolve aturado estudo e conhecimento das fontes documentais – dediquei uma especial atenção à presença dos humanistas portugueses na cultura europeia de Quinhentos, à história local, com particular atenção por Santarém, à formação do Brasil, assim como à historiologia portuguesa e às figuras axiais da vida política portuguesa nas últimas décadas do Antigo Regime e início do Liberalismo».
A terminar, uma reflexão pessoal, enquanto filho e enquanto historiador de arte cuja linha vocacional e carreira devo ao estímulo paterno. É-me difícil falar de alguém a quem me ligam vínculos tão apertados: existe, além da dimensão do historiador e professor, a dimensão vivenciada. Além desta, a Morte, a ausência, são feridas permanentes que não se explicam, mas se sentem no silêncio das estantes de uma biblioteca, na intrincada derivação dos afluentes da memória ou mesmo na ardência dos poros.
Nunca como neste nosso tempo o acto de estudar, investigar, ensinar História – e seus correlativos saberes humanísticos, da História da Arte à Arqueologia, à Filosofia e à Antropologia — foi tão importante neste nosso país e neste nosso mundo. Mesmo que «a História (seja) essa certeza que se produz no ponto em que as imperfeições da memória se cruzam com as insuficiências da documentação», como nos diz o historiador francês Patrick Lagrange, referencial fictício imaginado pelo romancista Julian Barnes no seu maravilhoso livro ‘O Sentido do Fim’… Mas, por isso mesmo, mais essencial se torna este desejo de perscrutar para além do silêncio dos tempos e dos velhos reinos das nuvens: e esse é o verdadeiro sentido da História-Ciência.
O tempo escorre sempre como espuma fina, desprega-se da cal dos muros, abre rugas de estrada e, por vezes, senti-lo é algo de nostálgico em demasia. As recordações pesam, atravessam-se-nos no caminho. Recorde-se Ruy Belo, outro poeta de referência de Veríssimo Serrão, em ‘Aquele Grande Rio Eufrates’, livro que, estranha coincidência!, é precisamente de 1961 tal como a imagem desbotada em que me revejo a caminhar com meu pai, em manhã de Inverno, em plena Praça dos Restauradores. Um dos poemas é de ausência, e diz assim: «… Mas hoje o sol / morreu como qualquer de nós / Ficou tão triste a gente destes sítios / Nunca foi tão depressa noite neste bairro». Já um outro, mais sereno e optimista, traz este luminoso testemunho: «… Dia a dia mal o sol subir pela manhã acima / e alcançar conveniente altura / escreverei em tua honra esse poema a que a tarde virá / pôr / um ponto final tão rubro como um poente / e chamar-lhe-ei o poema de um dia».
Vítor Serrão