Ferramenta importante na evolução da capacidade crítica e de tomada de decisões, o xadrez é muito mais do que um jogo de tabuleiro ou de fim-de-semana. É um desporto de alta competição, adoptado, em vários países, como ferramenta pedagógica, um suplemento positivo para que muitos jovens alcancem o tão esperado sucesso escolar.

Em Santarém, a modalidade está a ganhar um interesse crescente: o Vitória Clube de Santarém criou recentemente uma nova secção dedicada a este desporto, um antigo objectivo que foi concretizado com a filiação oficial na Federação Portuguesa de Xadrez.

Além da formação de jovens jogadores, o clube está a promover o regresso a Santarém de alguns dos melhores jogadores de sempre da história do distrito, visando a participação imediata nas principais provas do circuito nacional.

Também o GFEC – Grupo de Futebol dos Empregados no Comércio de Santarém, está apostado em desenvolver a modalidade, dinamizando uma escola para jovens praticantes. Intitulada de “Projecto Jovem”, esta escola visa a aprendizagem da modalidade e, posteriormente, direccionar os atletas para a competição. O Correio do Ribatejo esteve à conversa com o dirigente José Campos Braz, que revelou o que levou o clube à criação deste projecto. Já António Pereira dos Santos, mestre internacional e seleccionador nacional da modalidade – que vai orientar os atletas jovens dos Caixeiros nesta fase inicial – explicou o processo de aprendizagem e aquilo que os iniciantes podem esperar no clube.

José Campos Braz, dirigente Grupo de Futebol Empregados do Comércio

O que levou o Grupo de Futebol Empregados do Comércio (Caixeiros) a abrir esta escola de xadrez?
Santarém manteve, ao longo de vários anos, uma tradição neste desporto. E uma das coisas que sempre me fez confusão foi o facto de a cidade nunca ter defendido as modalidades desportivas em que era representada a nível nacional. Uma delas era, precisamente, o xadrez. Este desporto era representado em todo o país e até Espanha, pelo grupo de xadrez de Santarém.
As modalidades, que não o futebol, foram sempre esquecidas e negligenciadas pelos sucessivos responsáveis políticos e tiveram sempre falta de apoio e foram definhando. Agora, como tenho um pouco mais de tempo e disponibilidade, apresentei a proposta ao clube, até porque, futebol e até outras modalidades já existem na cidade, e com alguma qualidade.
Eu, e a minha equipa, ficámos responsáveis pelas modalidades ditas ‘amadoras’: além do ténis de mesa e do xadrez, ficamos ainda com o andebol e respectiva formação onde, felizmente, temos registado um grande incremento. Dentro de cerca de um mês já iremos ter um torneio de andebol, com grandes equipas, e temos, claro, um grande orientador e treinador que é o Artur Roldan. Então, dentro desta estratégia, avançámos exclusivamente com estas três modalidades. Ao nível do Xadrez, tive de ir ver como é que se faz porque estive 30 anos afastado da modalidade e hoje está tudo diferente. Já conhecia o António Pereira dos Santos há muitos anos, talvez seja quem mais sabe de teoria em Portugal sobre a modalidade e é uma pessoa extraordinária, isto para responder já ao motivo da escolha. Fui à procura, tive a felicidade de ter bons contactos e o primeiro que fiz foi junto de uns amigos meus que têm vindo a ser campeões nacionais há vários anos. Eles são da Vila de Montemor-o-novo, o que é até estranho porque sendo eles de uma pequena vila ganham tudo há dois anos. Pensei logo que custava milhares de euros, fui lá saber o que é que eles tinham feito e falar sobre o “Projecto Jovem”. Eu achei muito interessante e pensei: “tenho de ir fazer isto!”. Depois eles explicaram como é que fizeram e as dificuldades que existiam, ainda por cima no interior. Eles também tiveram alguma dificuldade mas menor do que aquela que temos aqui hoje. E decidi que era isto que queria fazer aqui. Havia dois ou três miúdos cá a jogar, fui à Pampilhosa e falei com o António Pereira dos Santos e foi assim que este “Projecto Jovem” arrancou. Depois disso já realizámos um torneio e o de 2020 está marcado para 5 de Outubro, será o segundo torneio Manuel Martinho Lopes. Tínhamos a família do Manuel que se predispôs logo a ajudar porque para além dele ter sido jogador de xadrez, escritor e poeta, a família é uma das mais antigas da cidade de Santarém e são pessoas que sempre viveram em Santarém. Começámos nas escolas a convidar alunos para fazerem parte deste movimento e estamos também à espera de algumas ajudas, andamos a inventar e a descobrir. Só agora foi possível ter cá o António Pereira dos Santos para começar a ser o treinador e orientador.

Que objecivos tem a modalidade?
Os objectivos vão ser a aprendizagem e, posteriormente, conforme a evolução dos atletas, irá ser a competição. Além disso, também temos alguns jogos com jogadores internacionais que nem sempre vêm cá pois nem sempre podem, nem eles nem nós. O início disto deu origem a três clubes de Xadrez em Santarém. Formou-se um com indivíduos mais velhos já com perto de 60, 70 anos, que está bem, apareceu outro com miúdos de vinte e tal anos do Politécnico que está também muito bem. É bom que haja estes três clubes porque perante os recursos financeiros que temos para os trazermos todos para aqui era missão impossível. Assim está toda a gente dividida. Um jogo tem quatro jogadores e se tivermos 30 ou 40 jogadores uns ficam de fora, nunca vão e depois chateiam-se. É bom que haja os três clubes desde que haja boa fé nas coisas e nós estamos disponíveis a ajudar quem quiser. O nosso projecto é diferente, é uma coisa nova direccionada só para jovens para ter resultados obrigatórios dentro de quatro anos.

Qual é a expectativa que o clube tem para a secção?
A expectativa é dentro das nossas possibilidades estarmos nos campeonatos nacionais, os atletas estarem a jogar e ter uma equipa só nossa sem ter de recorrer a ninguém estrangeiro, que é o caso. Exactamente como fizeram os de Montemor-o-novo que também começaram com a ‘prata-da-casa’ e já são mesmo muitos. Uma coisa que peço publicamente é aos professores de educação física, que libertem os jovens e os canalizem para os clubes. Serem eles os primeiros a canalizar os miúdos para os clubes porque eles aprendem lá a modalidade, e muito bem, mas depois chegam a um nível e param o desenvolvimento. E os clubes existem exactamente para isso, para eles se desenvolverem mais. No desporto escolar chegam a um certo nível e depois tem de haver outro desenvolvimento porque senão ficam estagnados. É o caso aqui em Santarém, há um professor que é bom até um certo nível. Daí ter convidado o António para haver esse desenvolvimento uns níveis acima. Essas pessoas devem dizer que quando alguém chega a esse ponto que deve ir para um clube. Já temos 18 atletas, um deles é uma atleta feminina que apareceu assim de repente e que tem um nível de aprendizagem muito bom e até já jogou.
Ao nível da competição também vamos estar no campeonato jovem, agora em Março. Depois iremos estar, consoante o plano do António, em vários torneios e no campeonato nacional. O António é que fica responsável pela avaliação dos atletas porque ele é que é especialista da modalidade. Eles têm de evoluir e temos de traçar o plano elaborado pelo António. Ele irá estar cá várias vezes nas próximas semanas e depois virá consoante a avaliação que fizer que fica ao critério dele. Este é o ano zero! Primeiro temos de fazer bem as coisas e colocá-las em marcha o que é o mais difícil. Em competição eu também gosto de ganhar e ninguém gosta de perder, mas temos de ter um poder de encaixe por ser o ano zero. Estamos a começar e para o ano teremos outras exigências. Agora temos de trabalhar esta parte da formação, de os ensinar, de nós aprendermos porque já há coisas que nos falham. Mesmo as pessoas que estão na secção, tirando o Gamelas, não estavam dentro disto. É uma coisa nova que estamos a iniciar, é também um desafio e nós gostamos de desafios. Um desafio interessante e saudável.

“O Xadrez pode renascer na cidade”

António Pereira dos Santos, mestre internacional e seleccionador nacional

O que o levou a aceitar o convite do Grupo de Futebol Empregados do Comércio para coordenar este “Projecto jovem”?
O José Braz foi muito insistente. Apresentou-me a ideia e eu achei interessante. Ainda estou a definir o objectivo e âmbito destes treinos porque, normalmente, venho treinando com vista à competição. Ainda estamos a aferir o nível dos jovens. Depois, então, é que iremos traçar os objectivos que se pretende atingir dentro da competição.

Como se cria uma escola de Xadrez?
Em termos gerais, penso que é importante o nível de apoios que se tem. Por exemplo, nas grandes cidades, aproveitam as estruturas que já existem. Nas Escolas, oferecem o Xadrez como actividade de tempos livres e integram-no no âmbito do Desporto Escolar, aproveitando Xadrezistas com vontade de ensinar e de aprender. Mas a base, realmente, já existe, e é a escola. Para os pais, é uma grande vantagem ter o Xadrez como actividade extracurricular: ficam descansados, e os miúdos podem praticar esta actividade sem terem que se deslocar das suas escolas. O Xadrez é um desporto que se ensina sem grandes custos associados: é preciso mesas, cadeiras, tabuleiros e relógios. Em contraste com outros que precisam de estruturas feitas de propósito e que, muitas vezes, nem podem ser usadas em conjunto com outras modalidades. É muito fácil entrar no Xadrez, mas é mais difícil gostar. Eu também falo por mim: quando era miúdo, era-me mais fácil gostar de uma bola.

Que vantagens tem a modalidade?
O Xadrez é um excelente desporto que desenvolve várias capacidades e até pode ajudar a obter bons resultados na escola. Desenvolve a concentração, o que é bom para a matemática, por exemplo. Eu acho, sinceramente, que qualquer modalidade desportiva é boa para o desenvolvimento emocional. Para os adultos, há também vantagens: desde logo, o aspecto lúdico é muito importante. Obriga a raciocinar, obriga a competir e a competição faz parte das sociedades. Isto claro, desde que não se entre pelo caminho que, por exemplo, o futebol está hoje a seguir, com todos os problemas associados às claques. Há testes que dizem que o Xadrez ajuda a criança hiperactiva, ajuda, como referi, na concentração, e no raciocínio lógico. Ajuda ainda, na minha opinião, na especulação e na capacidade argumentativa: quando uma pessoa argumenta está a especular, e o Xadrez também é isso: é um puzzle, é um jogo, que dá muita luta, e tem imensas possibilidades.

Também é importante que a juventude mostre interesse por este desporto?
O Xadrez, nos últimos 25 anos, em Portugal, viu os campeonatos nacionais de jovens modificaram-se completamente depois dos planos de desenvolvimento de Xadrez de Lisboa e de Loures serem implementados. Agora pode dizer-se que existem torneios por todo o país. Pode não ser com aquela magnitude, mas há por todo o país. O Xadrez entrou nas escolas, logo nos primeiros anos de desenvolvimento. Do primeiro ao nono ano, realmente entrou com grande pujança e há muita miudagem a aprender a jogar Xadrez. Isso vê-se nos campeonatos nacionais de jovens, onde participam centenas de atletas. E, curiosamente, participam muito mais nas camadas mais jovens. A partir dos 16 anos, há algum desinteresse nas provas, isso é notório. O Xadrez é, realmente, muito apelativo aos jovens, mas, na fase adulta, acaba por reduzir um pouco esse interesse. E, hoje, há uma coisa que realmente afasta os jovens, não só do Xadrez, como de outras modalidades, como do convívio, que são os jogos electrónicos. Hoje, é quase caricato ver duas pessoas a falar uma com a outra no café, ao mesmo tempo que escrevem nos seus telemóveis. Há uma tendência para escolher os ritmos muito rápidos e o Xadrez leva o seu tempo.

Qual a sua opinião sobre a modalidade na região?
Quando comecei a jogar, Santarém tinha uma Associação de Xadrez, tinha clubes, fazia campeonatos associativos e estava muito activa na modalidade. Neste momento, acho que está bastante mais pobre a nível de clubes. Na altura, havia muito mais jogadores, e alguns com grande qualidade. É evidente que o Xadrez pode renascer em Santarém, tal como acontece em outras zonas do país. Tem é que haver ajuda, tem de haver renovação: com o passar dos anos, as pessoas ficam mais velhas e é complicado continuar a dinamizar os clubes.

Como é que se iniciou no Xadrez?
Foi por mero acaso. Não tenho um percurso normal, não comecei a jogar Xadrez em miúdo… quanto aprendi, já tinha quase 17 anos. Há muita gente que aprende o movimento das peças, mas só começa a jogar mais tarde. Eu conhecia as damas, não tinha conhecimento do Xadrez. De resto, só os jogos com bolas, dentro de campo. Achei piada ao campeonato do mundo, que estava, na altura, a ser transmitido em horário nobre. E eu, e os meus irmãos, como ficámos intrigados e curiosos, perguntamos como se jogava. Quem nos ensinou, curiosamente, foi uma pessoa quem nem joga, em termos competitivos. Nunca mais o vi, mas foi ele que nos ensinou a jogar com peças “imaginadas”. Estávamos a jogar futebol e, no intervalo, fizemos um tabuleiro no chão e as peças eram imaginadas com pedras. E com ele aprendemos os movimentos do jogo. E eu perguntei logo: “então, agora, onde vamos jogar?”. Depois, houve um irmão meu que viu clubes onde nos poderíamos inscrever e fomos parar a um, em Lisboa. Mais tarde, mudei de clube…aliás, ao longo da minha carreira já passei por muitos. Mas, claro, nada daquilo que era o Xadrez nessa altura é aquilo que é hoje.

Que conselhos dá a quem quer praticar Xadrez?
Antes de mais, tem que gostar. Se o objectivo for meramente lúdico não há grandes conselhos a dar. Se tiverem intenções competitivas, isso vai exigir alguma evolução. Se o jovem quer evoluir, jogar melhor, tem que jogar muito. Jogar contra adversários mais fortes, evoluir a cada jogo, e, depois, há a troca de ideias, a discussão. Foi assim que eu evoluí. Discutir com os meus adversários, analisar as partidas. Agora, para subir de nível com estabilidade, tem que se estudar. Hoje em dia, ao contrário de quando eu comecei a jogar, é muito mais fácil. Consegue-se aprender o mesmo em muito menos tempo, exactamente por causa da informática. Há muitas bases de dados, muita informação disponível, há muitos vídeos com mestres a dar explicações, enquanto que eu tinha que estudar por livros, que ter um tabuleiro para ir orientando as peças e perdia muito tempo. Mas valeu a pena.

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