Foto: Joaquim Domingos. Contador de histórias, fadista e quem me apresentou a cidade

Reflexos – Nuno Domingos

Com os seus cinco anitos, desceu cuidadosamente as escadas do segundo andar do prédio da Rua Júlio Araújo, n.º 7 e encaminhou-se para o largo da graça (Largo Pedro Álvares Cabral). Com a sua placa central relvada, era o local natural das brincadeiras com os amigos: o “Cálitas”, que vivia com a avó no n.º 1 da Calçada da Graça, o Mário, filho do Sr. Óscar com barbearia na Travessa da Graça (Rua Vila de Belmonte), o Eurico e alguns outros, naquelas tardes de futebol, num tempo (fim dos anos cinquenta) em que os automóveis eram raros e a rua era deles.

Mas hoje não era dia para isso, e assim, desceu a poeirenta “Rua da Amargura” (Braamcamp freire), passou frente ao Chafariz da D. Rita, local de banhos, quando a Câmara mandava retirar o lodo próprio da água salobra e logo no início da subida, virou à esquerda e entrou no “pátio”. Na primeira casa do lado esquerdo, morava o tio Joaquim e naquele dia estava marcado um passeio à cidade.

O tio Joaquim adorava aquele sobrinho. O primeiro rapaz daquela família de cinco irmãos, onde tinham nascido mais três raparigas. Tinha-lhe até dado o carinhoso diminutivo de “Caninita”, palavra que proferia com um sorriso aberto, ele era um homem sério, com uma voz grossa e até um pouco rude.

– Ó Tio Joaquim, porque é que um homem deve ter sempre dois lenços limpos?

– Pensa um pouco. Porque será?

Pelo seu quinto aniversário tinha-lhe construído uma enorme camioneta de madeira que nas brincadeiras com a irmã, dois anos mais nova, servia para a transportar, puxando-a, com um cordel mais forte, por todo o lado.

Na época, no verão, era naquela camioneta que se colocavam os sacos com o almoço e calçada abaixo se ia passar o dia ao Tejo. O José Lobo, velho pescador avieiro residente em Alfange, com o seu saveiro transportava a família para as praias da outra margem do rio e guardava a camioneta para o regresso.

O tio Joaquim trabalhava na serração do Sr. Quintino, na Avenida António dos Santos (onde hoje existe o conjunto de edifícios que alberga o restaurante Kook), e sofria de terríveis cólicas renais. Uns amigos recomendaram-lhe o uso de um grosso arame de cobre em torno do pulso, mas o médico prescreveu-lhe alguns medicamentos e disse-lhe que fazer caminhadas seria a melhor ajuda.

E, por isso, o sobrinho teve a dita de conhecer a cidade pela mão do tio. Foram longos passeios ao Miradouro do Liceu, à Rafôa, à “Aldeia dos Macacos” e, naquele dia às obras do anunciado Colégio Andaluz.

– Mas ó tio Joaquim, porque é que um homem deve ter sempre dois lenços limpos?

A resposta foi um sorriso enigmático.

Na época, a cidade acabava no largo das amoreiras (Largo Cândido dos Reis). Depois, para quem vai no sentido do Sacapeito, havia, na atual Praceta Pedro Escuro, um polidesportivo de ar livre, onde se jogava ténis, basquete e outras modalidades de salão e, a seguir era o vazio urbano, pois a Avenida Afonso Henriques ainda não tinha sido construída e viam-se as traseiras do Bairro Operário, constituído pela Avenida Laurentino, paralela à Rua Pedro de Santarém, (atualmente retratada num painel de azulejos ali existente). Aquela zona era, pois, um descampado que após o recinto da Feira do Ribatejo, se transformava num olival, com um estreito caminho poeirento, onde pululavam tojos e carrascos, sempre colhidos para as fogueiras dos santos populares e para onde invariavelmente fugiam os toiros vindos da Calçada da Junqueira, aquando das entradas por ocasião das diversas feiras de então.

Próximo de onde se situa hoje a Rotunda do Forcado, ficava a taberna do Manuel Caneco, numa espécie de pequena quinta, afamada pelas primeiras e melhores aguapés, depois, o Moinho de Fáu, ainda em pleno funcionamento e ambos ligados à família Narciso, e mais além, no maciço calcário, com deslumbrante vista sobre o tejo e os campos de Almeirim e de Benfica do Ribatejo, construía-se o tal Colégio.

O passeio exigia descanso e merenda que a distância era grande e o regresso um longo caminho.

O Colégio funcionaria até junho de 1975, quando o Conselho Geral da Congregação, decidiu a alienação do Complexo Andaluz, concretizando a sua venda ao Ministério da Educação e Cultura. Mais tarde, em 1978 ali decorreu um curso internacional de teatro o TIP (Theater International for Young People), organizado por Carlos Oliveira, Vitor Alves, Artur Oliveira e Nuno Domingos, que reuniu em Santarém cerca de cem participantes dos cinco continentes e foi nestas instalações, já então do Instituto Politécnico de Santarém, que, em 1981, se reservou um espaço para acolhimento dos ranchos folclóricos presentes no Festival Nacional de Gastronomia que tiveram que pernoitar na cidade.

– Ó tio Joaquim, está tudo bem, mas ainda não me disse porque é que um homem deve usar sempre dois lenços limpos!

– Tu precisas sempre de um lenço para te assoar. Não é assim? – questionou.

– Sim, respondeu o pequeno. – Mas e o outro?

O tio sorriu, passou a mão pela cara de pele escura, áspera, enrugada pelas coisas da vida e pelas dores nos rins e acrescentou: – Se tu caíres e te magoares nos joelhos, ou se precisares de acudir a uma senhora, achas que podes usar um lenço sujo? E respondeu ele próprio: – Não podes, pois não!

Era assim o meu tio Joaquim e na primeira gaveta da minha mesa de cabeceira, com um J bordado, ainda hoje guardo dois lenços dele.

Leia também...

Ponto Final: Confinados de novo

A semana que está prestes a terminar começou com ameaças de um…

40 anos do Festival Nacional de Gastronomia: o Rui Dias José e a Antena 1

“Aos domingos, sair por aí, à bolina… Feirar de terra em terra.…

A Contradança do Malaqueijo

Anualmente Malaqueijo cumpre a mais que centenária tradição da “Contradança”, uma original…

Correio Policial: Problemas ódios longos, por M. Constantino

O ódio, um ódio de morte, teve início quando os dois homens…