O ano de 2020 ficará marcado pelo início da pandemia de COVID-19 e suas consequências. Além do impacto severo na Saúde, na Economia e na forma como nos relacionamos, fica também um efeito menos evidente: o público assistiu em direto ao desenrolar da investigação científica sobre o vírus SARS-CoV-2, como a um reality show televisivo. De súbito, a investigação científica, tida como “bela, recatada e do lar”, apareceu aos olhos de todos com a sua verdadeira natureza: criativa e contraditória na formulação de hipóteses, útil mas falível na previsão de cenários, probabilística nos resultados, e feita por gente irrequieta, nem sempre concordante entre si.
Até 2020 a Ciência foi vista como os resumos dos jogos de futebol mostrados em compacto nos noticiários: um condensado de golos, jogadas emocionantes, lances polémicos. Os lances inconsequentes, as jogadas falhadas e os tempos de espera ficam de fora. Só em 2020 o público assistiu a um jogo completo no relvado da Ciência: os passes falhados, as táticas, as contradições entre jogadores, treinadores e dirigentes, as jogadas que deram em nada, e as jogadas que ficaram por fazer. A Ciência ganhou visibilidade e adquiriu estatuto de modalidade por completo.
Tal como no futebol, ou noutro desporto coletivo, a Ciência revelou-se também como um fiel de balança entre a competitividade individual de cada jogador e a necessidade de construir um bem coletivo. Apesar de cada jogador competir com outro para ser titular na equipa principal, o individualismo tem de ceder à necessidade de um bom jogo coletivo porque o sucesso é uma construção da equipa. Em Ciência é assim também: uma atividade extremamente competitiva para cada uma das pessoas e instituições que a faz mas aos problemas de todos, como uma pandemia, por exemplo, tem de corresponder uma solução de todos. Só assim seremos bem sucedidos a derrotar a pandemia. E na Ciência, como no futebol, uma verdade é indesmentível: o jogo só acaba no fim.
Miguel Castanho – Investigador em Bioquímica