Vicente Batalha, ex-presidente do Instituto Bernardo Santareno.
Há precisamente 60 anos, desde 1961, o mundo inteiro celebra o Dia Mundial do Teatro, a 27 de Março, por iniciativa do Instituto Internacional de Teatro, organismo da UNESCO.
A partir do ano seguinte, Jean Cocteau inaugurou o ciclo das grandes mensagens, para celebrar o Teatro – Mensagem do Dia Internacional do Teatro – escritas pelas mais reconhecidas personalidades do universo teatral, cultural e artístico de todos os continentes.
Porque o Teatro, “essa coisa que vem dos gregos”, é um ritual tão antigo como o próprio Homem e tem um papel único, pessoal, insubstituível e directo na transformação das sociedades. Jean Genet dizia que “o Teatro é o lugar de todas as liberdades”.
E é esse quê de liberdade, de criação, que o autonomiza como a única arte que se faz corpo a corpo, respiração a respiração, sem intermediários. O Teatro é uma relação que se estabelece entre Eu e o Outro, cara a cara, palavra a palavra, gesto a gesto, intenção a intenção, silêncio a silêncio. É um diálogo livre e aberto, uma luta entre iguais, actores e público, porque um não existe sem o outro.
Que as salas de teatro abram portas e os palcos se encham da luminosidade e magnetismo das gentes do teatro e que as salas se encham de públicos ávidos de criatividade e imaginação, de se ver ao espelho das emoções, de rir e chorar.
A forma ideal de celebrar o teatro seria uma festa, uma grande festa no palco do mundo em paz. O caminho da Utopia à Realidade!
Como disse William Shakespeare, o mais célebre dramaturgo de todos os tempos:
“O mundo inteiro é um palco.
E todos os homens e mulheres não passam de meros actores. Eles entram e saem de cena e cada um no seu tempo representa diversos papéis.”
Fiz teatro amador, universitário e profissional. Como muitos de tantas gerações, fui saltimbanco andei de terra em terra, de norte a sul do país, em festas, feiras e romarias. Fiz digressões por terras distantes, e sempre ouvi falar em “crise” do teatro. Mas, sempre vi salas cheias, esgotadas, praças a perder de vista com milhares de pessoas a ver e aplaudir, É o paradoxo do Teatro, que tem esse sortilégio da atracção, da comunhão e da partilha.
É facto que tudo tem um tempo. Como nos ensinou Ortega Y Gasset “O homem e as suas circunstâncias”. Somos o que somos no quadro das circunstâncias que nos rodeiam. A carteira profissional foi a conquista de uma época para valorizar a classe. Integrei a Comissão Coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos (STE) sob a presidência de José Morais e Castro, e vivi intensamente os objectivos da unidade da classe e da sua valorização. Hoje, lutamos por um Estatuto que dignifique realmente a classe e a proteja em todas as circunstâncias, no trabalho, na doença, na falta de actividades artísticas. E lutamos por um Orçamento de Estado (OE) que reconheça a cultura, não como o tal parente pobre, mas como um desígnio natural, a base e suporte de um futuro mais digno em que nos reconheçamos de corpo inteiro. Infelizmente, tal não tem acontecido, apesar das promessas e da criação de falsas expectativas.
Os artistas estão a viver uma crise sem precedentes, tal como largos sectores da nossa sociedade. O país não pode deixar morrer a cultura, o teatro, porque isso é o seu próprio enterro. Não esqueçamos que Federico Garcia Lorca nos deixou este sério aviso: “Povo que não tem teatro, se não está morto, está moribundo”.
A questão central é uma questão cultural. A cultura é a nossa identidade. Preservar a cultura é preservar quem somos. A cultura é vital para o desenvolvimento, é o próprio progresso das sociedades.
É insofismável que a pandemia COVID-19 alterou as nossas vidas, suspendeu-as, colocou-as entre parêntesis, fracturou-as. E veio trazer à tona de água as contradições e dificuldades estruturais da cultura, em geral, e do teatro, em particular.
As novas tecnologias foram um recurso, por vezes, imaginativo e criativo, onde os artistas tentaram passar uma nova realidade virtual consentânea com as circunstâncias. Se veio para ficar? Considero que vai fazer seu caminho e deixar seu rasto. As novas gerações afirmam-se com esse novo paradigma, com essa nova linguagem, que dominam, mas nada pode substituir a pessoalidade de um momento no palco com público ao vivo.
No entanto, tudo isto cria uma natural angústia, que poderá aprofundar a criatividade e a necessidade de libertar fantasmas e desafiar as grandes inquietações humanas.
A interrogação sobre a criação de novos públicos está sempre em aberto. Como fazer? Não sei se haverá receitas, mas sei que há sempre trabalho a desenvolver nesse sentido e que devemos percorrer o caminho com os elementos que tivermos à mão: imaginação, criatividade e encontro de linguagens, o despertar de novas curiosidades.
Bernardo Santareno é o genial dramaturgo do século XX português e um dos maiores da história do teatro em Portugal, que não pode resumir-se a Gil Vicente e Almeida Garrett. Por isso, o reconhecimento da obra de Santareno nunca está concluído e deve ser prosseguido e aprofundado: quer, com a inclusão das suas peças no repertório das grandes companhias de teatro, incluindo no repertório dos nossos teatros nacionais; quer, com o regresso das suas obras aos programas escolares, para conhecimento e contacto com as novas gerações, seja a antológica peça “O Judeu”, no 12º ano, seja o livro de viagens à pesca do bacalhau “Nos Mares do Fim do Mundo”, como leitura recomendada ou mesmo curricular.
Nesse reconhecimento, as Comemorações do Centenário, impulsionadas pela saudosa Fernanda Lapa, deram um bom contributo, apesar da terrível pandemia que nos assolou. Santarém uniu esforços e vontades e assumiu um papel de grande dinamismo e qualidade, com o envolvimento dos agentes culturais, escolas, associações e autarquia.
No entanto, a cidade de Santarém está ainda longe de assumir o seu papel institucional por inteiro. Há muito caminho a percorrer, assim se entenda a genialidade de Bernardo Santareno na sua verdadeira dimensão. Comemorar Santareno é um acto de dignidade e de justiça, pelo que se torna imperioso prosseguir, com todas as iniciativas que não foram possíveis concretizar-se.
Nesse sentido, a continuidade do Prémio Nacional de Teatro Bernardo Santareno seria mais um exemplo da projecção do dramaturgo e da sua cidade de Santarém e um contributo para o aparecimento de novos dramaturgos, como Santareno tanto ambicionava com o apoio e incentivo que dava aos mais jovens.
Termino com as palavras que nos deixa Helen Mirren, na Mensagem do Dia Mundial do Teatro 2021:
“O impulso criativo de escritores, desenhadores, bailarinos, cantores, actores, músicos, encenadores, nunca será sufocado e no futuro muito próximo ele florescerá com uma nova energia e um novo entendimento sobre o mundo que todos partilhamos. Mal posso esperar!”
Texto publicado originalmente na edição impressa do Jornal Correio do Ribatejo de 26 de Março de 2021.