A pandemia veio expor fragilidades e desigualdades no sector das artes e da cultura, mas trouxe também uma oportunidade única e derradeira para a sociedade civil reflectir e valorizar o valor da cultura e da arte nas suas vidas. A trabalhar a ‘meio-gás’ há vários meses, o Círculo Cultural Scalabitano (CCS) tem tentado reinventar-se para debelar as dificuldades e promete uma luta cada vez “mais acérrima” pelo seu projecto cultural, como garante, em entrevista ao Correio do Ribatejo, Eliseu Raimundo, presidente do CCS.
De que forma a pandemia de Covid-19 afectou o sector da cultura em Santarém e, em particular, o Círculo Cultural Scalabitano?
O Covid-19 afetou de forma dramática o sector da cultura e particularmente o Círculo Cultural Scalabitano, onde, num primeiro momento, ainda continuámos com alguma actividade, de acordo com um plano de contingência próprio que seguiu os princípios definidos pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), mas a breve trecho a actividade artística e formativa foi interrompida, para num terceiro momento ser retomada, na componente formativa, mas apenas mediada pelos meios disponibilizados pelas redes sociais.
Neste contexto, a Orquestra Típica Scalabitana interrompeu a sua actividade, tendo sido decidido reavaliar a situação em Setembro; o Coro do CCS tem vindo a ensaiar por naipes, e o Veto Teatro Oficina realizou alguns espectáculos para crianças, ao ar livre, no dia Mundial da Criança, em Santarém, e com o apoio da Câmara Municipal. No mês de Agosto foi possível ao Veto montar e estrear um espectáculo novo, em colaboração com a Academia de Dança e Expressão Corporal do CCS, mas concebido de forma muito especial, para garantir o necessário distanciamento social dos próprios intervenientes, que teve a sua estreia em Almeirim, ao ar livre, no passado dia 15 de Agosto, o qual tem por título “Obrigado Bernardo, Santarém de Portugal”, e que foi montado no âmbito das comemorações do centenário do nascimento de Bernardo Santareno.
O que é que o CCS tem pensado para debelar as dificuldades?
Trabalhando com as nossas Secções, Academias e Departamentos, tentando encontrar formas de financiamento; recorrendo ao mecenato; criando com as pessoas amigas do Círculo o “Grupo de Amigos do CCS”; pedindo um esforço aos nossos associados e aumentando, embora de forma muito ligeira, a quotização; tentando o aluguer do nosso Teatro Taborda ou estabelecer protocolos para a sua rentabilização; aumentando a oferta formativa, nomeadamente na área da música e dança (para isto precisamos urgentemente de espaços); solicitando reuniões com a Câmara Municipal de Santarém e União de Juntas de Freguesia; estando preparados para a itinerância pelos concelhos, nomeadamente pelo de Santarém; apresentação se possível ainda este ano o novo CD da Orquestra Típica Scalabitana, entre outros.
E em termos de apoios? Autarquia e poder central estão a fazer o seu papel?
De facto, não existe apoio do estado central para as associações culturais de base, situação a que de resto, a Federação das Colectividades de Cultura e Recreio, tem dado o justificado eco. Apenas foi disponibilizado, recentemente, singelo apoio para a adaptação de espaços. Esse era o espaço que uma Direcção Regional de Cultura poderia ocupar e o apoio que poderia disponibilizar e que, neste caso, não existe. A nível local, no caso do Círculo Cultural Scalabitano, a situação já era muito difícil, porque somos vistos e comparados com outras associações com realidades não comparáveis. Clarificando: o Círculo tem três grupos artísticos: a Orquestra Típica Scalabitana, o Coro do CCS e o Veto Teatro Oficina. Para além disso tem três dimensões formativas: as Academias de Dança e Expressão Corporal, de Música e de Teatro. Ora a estrutura de custos da Orquestra e do Veto, são similares cada uma a uma Banda Filarmónica e a do Coro à de um Rancho Folclórico. Ora o Município tem sistemas de apoio especiais para estes grupos artísticos (Bandas e Grupos Folclóricos), mas quanto ao Círculo, considera- o no seu todo como apenas uma unidade artística.
Desta incompreensão e do inerente tratamento de igual forma do que é diferente, resultou que o apoio municipal que já era reduzido, sofreu um corte superior a 50 por cento, no ano de 2019, o que nos deixou em grandes dificuldades. Neste contexto, apanhados pela pandemia, com a actividade interrompida e portanto, sem receitas, com o apoio municipal ainda congelado e sem conclusão à vista, confesso que a situação é extremamente preocupante.
Mas o CCS, as suas Secções e Academias então à disposição para a itinerância como referi anteriormente. Assim sejamos convidados o que não tem acontecido ao longo dos últimos anos.
Senão repare-se: a OTS e o Coro têm-se apresentado nas freguesias do concelho? Não. E o Veto Teatro Oficina? Entram em cena e saem de cena espectáculos atrás de espectáculos e os mesmos são vistos no concelho? Não. E teatro para crianças? Há quantos anos o Veto não vai a Alcanede, Amiais de Baixo, Romeira…? E workshops de teatro, música ou dança pelas aldeias e vilas do concelho fazemos? Não. Mas então não temos excelentes maestros, professores de dança e de teatro? Temos. Mas iremos continuar. A luta pelo nosso projecto cultural será cada vez mais acérrima pois sabemos que estamos no caminho certo.
As linhas de apoio às entidades artísticas e de adaptação de espaços foram disponibilizadas recentemente. O CCS pondera concorrer a este incentivo?
É nossa intenção apresentarmos uma candidatura face aos apoios disponibilizadas. No entanto temos algum receio de que eles venham a ser atribuídos muito depois das adaptações concluídas, o que no poderá obrigar a encontrar formas de pagamento alternativas já que, à data, e em termos de tesouraria, estamos à beira da rotura.
Os projectos digitais serviram para “manter a relação” com o público. Na sua opinião, a Cultura pode sobreviver apenas nesse registo?
As redes sociais podem dar uma ajuda importante e penso mesmo que foi dado um salto significativo nesse sentido. Mas não podem, pelo menos actualmente, só por si garantir a sobrevivência das estruturas criadas e em funcionamento. A primeira função de uma associação é promover um espaço de socialização e isso implica contacto, toque, exemplo, orientação para a acção e, tudo isto exige presença.
Depois, a criação artística se em alguns casos pode ser um acto isolado, não o pode ser na sua maioria. Uma orquestra precisa de juntar os músicos para tocar; um Coro só o é, quando as vozes se unem; o teatro só acontece quando a representação, que pressupõe a presença simultânea de actores, se encontra com a presença simultânea de um público e, muito do que então acontece tem a ver com esse encontro.
O facto de este território não estar tutelado por uma Direcção Regional de Cultura pode dificultar, ainda mais, o acesso a financiamento de projectos?
Do nosso ponto de vista, isto é, do ponto de vista dos agentes artísticos, é gravíssimo, pois nem a essa fonte de apoio podemos recorrer. Mas muito mais grave do que isso, é o facto de não haver um pensamento cultural estratégico para a região, nem planos/projectos de itinerância das artes: produções, residências, formação, reflexões, etc.).
Consideramos mesmo que é incompreensível o silêncio e a falta de reivindicação dos agentes culturais e políticos do território a este respeito. Deste ponto de vista, somos vistos pelo estado como cidadãos de segunda, pois não temos os mesmos direitos, neste caso culturais, do resto do país.
Há muito que o Círculo Cultural Scalabitano se tem batido pela criação da citada Direcção Regional.
Seria importante pensar a globalidade deste território, em termos culturais?
Tal como antes referi, esse seria um passo essencial. O que hoje temos são iniciativas
escassas e naturalmente de pequena dimensão, desenvolvidas pelos agentes do território. É o
caso de iniciativas meritórias e de grande qualidade, mas transversais apenas a alguns municípios, como a Artemrede e da Associação Materiais Diversos, ou a um outro nível, o grupo de amigos que constituem o Fórum Ribatejo, espaço fundamental de reflexão e pensamento estratégico da região, mas com meios que se cingem à capacidade das pessoas que o constituem.
Faz falta um pensamento sistemático e organizado, uma estrutura de reflexão e acção consequente que respeitando a diversidade, dê unidade a este território, já de si dividido por razões de políticas de financiamento europeu.
Este ano, toda a programação cultural do Verão de Santarém foi suprimida. Concorda com a medida ou acha que podiam realizar-se alguns eventos tendo em linha de conta as recomendações da DGS?
Naturalmente que percebemos as dificuldades colocadas pela gestão territorial em tempo
de pandemia e a necessidade de não promover situações onde a saúde pudesse ser posta em causa. Mais, compreendemos a novidade que o processo representou e a dificuldade em pensar como fazer face ao que estava a acontecer.
No entanto, já nos parece incompreensível a total suspensão de actividade, pois mesmo na situação mais crítica haveria uma série de acções culturais que poderiam ter sido desenvolvidas, nomeadamente, para não falar em espectáculos, a exposição de fotografias nas varandas dos Centro Histórico, a arte Urbana, o convite a artistas, nomeadamente locais e regionais para apresentarem / desenvolverem intervenções artísticas, particularmente no Centro Histórico, nos jardins, etc.
O Círculo Cultural Scalabitano tem estado disponível para actividades pontuais, tendo apresentado à Câmara Municipal um conjunto de iniciativas que, em nosso entender, poderiam ter sido realizadas. (E ainda poderão).
Repare-se, por exemplo, promovemos por iniciativa do W Shopping e do seu director, um mês de actividades naquele espaço comercial, que foram desde a música, à dança, à magia, ao teatro etc. Toda esta actividade foi levada a cabo tendo por base o plano de contingência do W Shopping o qual segue as directivas da DGS.
Mas… o entendimento de quem dirige os destinos do concelho foi outro e nós, sinceramente,respeitamo-lo como não poderia deixar de ser.