O Dia da Europa é comemorado anualmente a 9 de Maio. A data assinala o aniversário da «Declaração Schuman», uma proposta histórica feita em 1950 por Robert Schuman, ministro dos Negócios Estrangeiros francês, que lançou as bases da cooperação europeia.
Pedro Canavarro, emblematicamente nascido a 9 de Maio (de 1937), em Santarém, viveu de perto a construção europeia.
Esta sexta-feira, 9 de Maio, dia em que completa 88 anos de vida, lança o livro ‘O infinito à cabeceira’, até porque, afirmou ao Correio do Ribatejo, “todos nós dormimos com o infinito à cabeceira desde que nascemos”.
“Não direi que é uma autobiografia, é um livro de uma pessoa a olhar para si próprio, em liberdade e sem medo”, conclui.
O prefácio é de Adelino Ascenso e a editora a Caleidoscópio. O livro vai ser apresentado pelo historiador Guilherme Oliveira Martins, pelas 18h00 desta sexta-feira, na Casa Museu Passos Canavarro.
Tendo sido deputado no Parlamento Europeu, entre 1989 e 1994, como observa a evolução da União Europeia nas últimas décadas, especialmente face ao crescimento dos populismos e nacionalismos? A Europa de Schuman, dos anos 50, é a Europa em que vivemos?
Não é, até porque a história tem a sua dinâmica própria, portanto, nunca poderia ser. Foi muito interessante a experiência que tive nesses quatro anos como deputado no Parlamento Europeu, ora em Estrasburgo ora em Bruxelas. E é engraçada a existência dessas duas sedes. Estrasburgo procura manter a relação histórica entre a França e a Alemanha. Há essa necessidade dos países europeus se encontrarem e trabalharem em conjunto, mas logo nessa altura se percebia que era necessária uma dinâmica paralela, com Bruxelas a assumir o poder de decisão. Bruxelas é hoje muito mais a capital da Europa do que Estrasburgo. Essa Europa era uma europa de Estados e não de cidadãos. Eu tive o privilégio de conhecer ambas. Quando fui eleito fui integrado no grupo Socialista, que era o maior grupo na altura, em 1989. Onde me apercebi da complexidade que era olhar para a Europa numa perspectiva política. Caiu o muro de Berlim três meses depois de eu lá chegar. Não me esqueço da noite em que fomos todos com archotes até ao Teatro do Povo, na Avenida das Tílias, na velha Berlim, fomos festejar atravessando a porta de Brandemburgo, fomos manifestar no fundo o desejo de uma União alargada, a levar a democracia a países que não tinham esse conhecimento.
E como foi conseguido esse entendimento?
Sabendo desde logo que seria extremamente difícil conseguir reuniões de trabalho produtivas e efectivas a vários níveis, recordo-me que os nossos conceitos linguísticos não eram interpretados da mesma maneira por eles. Havia um divórcio, resultado de anos e anos de domínio soviético e percebemos que ia ser muito difícil. Em todo o caso, tentou-se e começou a haver a adesão desses países à UE. Mas também constatei que havia, em paralelo, a união dos Povos, a união daqueles cidadãos que têm uma base cultural e de identidade que não são reconhecidos como Estados. Foi nessa altura que deixei o grupo Socialista e integrei um grupo administrativo que na altura existia, o grupo arco-íris. Nesse grupo encontrei cidadãos da Escócia, da Flandres, da Córsega, Galiza, Catalunha, Frísia, enfim, de muitas áreas geográficas que tinham uma noção de Nação, mas que não tinham meios para a aplicabilidade desse conceito.
Na Bretanha, por exemplo, lembra-me o entusiasmo que era a afirmação que eles pensavam estar a contruir versus a França. Isso veio dar-me um conceito de cidadania participada muito mais alargado. Essa cidadania levava a ajudar aqueles que nos solicitavam, na ideia que a Europa devia ser sobretudo uma Europa de Nações e não uma Europa de Estados. E isso trouxe muitas dificuldades quando havia a necessidade de aprovar leis ou normas que fossem identitárias com a UE em construção.
As populações não queriam, mas acabavam por depender dos apoios que a UE dava.
Naturalmente, desenvolveram-se também os conceitos de cidadania mais participada e muito mais distribuída por tudo o que é geografia europeia. E havia uma grande dificuldade, sobretudo para os estrangeiros, em lidar com a Europa porque não sabiam onde estava o poder da Europa. Lembro-me de casos como o Japão ou os Estados Unidos de preferirem fazer acordos bilaterais com a Inglaterra ou a Alemanha do que encarar os processos da comunidade. Era de tal maneira diluída a noção de quem é responsável pela decisão que demorava demasiado tempo para a celebração de um acordo ou de um tratado.
Essas duas realidades existiam, mas não eram tão visíveis para o público em geral. Hoje talvez possam já não existir.
Foi por essa altura que nasceu no distrito de Santarém a Casa da Europa no Ribatejo. Com que finalidade?
Criámos a Casa da Europa no Ribatejo. Durou 10 anos, podia ter durado mais, mas infelizmente só durou 10.
Chegou a haver em Santarém um Centro de Informação Europe Direct instalado junto ao Politécnico que só existia para conceder apoios e subsídios e limitar a Europa da cidadania que nós estávamos a levar a cabo.
A Casa da Europa acabou em Santarém. Porquê?
Eu acho que foi por questões financeiras, por um lado, e depois mal-entendidos entre o presidente e o presidente da Assembleia Geral que, infelizmente, nunca tiveram sequer a coragem de acabar a sério com a Casa da Europa.
Na sua opinião, que medidas a União Europeia deveria adoptar para reforçar os valores democráticos e combater a ascensão de movimentos populistas?
É difícil definir de imediato um modus faciendi para acabar com esse ritmo de crescimento expressivo e alargado porque, quer queiramos quer não, a própria História tem a sua dinâmica.
O tempo que foi necessário, resultante do fim de uma II Guerra Mundial que levou à UE, levou à procura de certos valores e de uma unidade que se achava necessária no pós-Guerra. Isso já se sentia, agora não se sentia esta dinâmica mais alargada desse populismo, ou seja, acaba por ser um populismo mais ligado à cidadania que vai apoiar e pôr em contestação o pensamento estruturado e balanceado em valores que definem uma política ou as culturas.
Hoje, graças à tecnologia e a esta facilidade de comunicação, a vários níveis, pelo mundo inteiro, os cidadãos sentem-se em processo de realização mais rápido através desses poderes mais fáceis, do que se integrarem as próprias instituições. Daí nascerem estas dinâmicas que se alargam pelo mundo inteiro com reflexos espantosos quando vemos o que se passa nos Estados Unidos da América, onde o populismo é exaltado ao extremo e nos é vendido a pataco, e o que se procura é mostrar que se tem poder para assustar.
Falou dos Estados Unidos, ainda recentemente Trump apareceu ao mundo vestido de Papa nas redes sociais. O que lhe pareceu isso?
Primeiro parece-me mal. Acho que há figuras que merecem respeito, e sobretudo este Papa. Ir procurar essas figuras publicitando-as são tudo formas de desmistificar os alicerces da cultura, do institucionalismo, de órgãos responsáveis pela administração pública que sejam representativos do povo. Acho que tudo isso que se está a viver hoje é a desmistificação de todos esses valores. A gente ri, porque gostamos de rir do contrário ao senso, mas devemos interrogar-nos: para onde é que estamos a ir?
E eu acho que na História muitas vezes se deve perguntar para onde se vai.
Eu não me parece que seja tão de espantar o que está a acontecer porque nos últimos anos é um facto que não sabíamos para onde íamos. Íamos à procura do ‘El Dourado’ Comunidade Europeia.
Eu pergunto: hoje esta facilidade que há na guerra, em pensarmos em aliados com o quê e com o quem, a falta de garantias de diálogo faz com que estejamos individualmente mais isolados e perigosamente mais receosos. O individuo tem medo de estar só. Mas o estar só é imensamente enriquecedor pelo silêncio que lhe traz em tentar casar conceitos, história, projectos, e sobretudo não ter medo, são descobertas comuns, mas que eu próprio as descobri, fazem parte de um livro que vou lançar…
Será esta sexta-feira, 9 de Maio, dia em que completa 88 anos de vida. Quer partilhar connosco o que o motivou a escrever ‘O infinito à cabeceira’ e que mensagem principal o livro transmite?
É resultante de fazer 88 anos, o oito deitado ser símbolo do infinito, daí a ideia, todos nós dormimos com o infinito à cabeceira desde que nascemos, uma coisa é ter essa consciência, ou não a ter. Essa consciência vem de umas semanas antes de fazer os 85 anos. Era académico da Academia da Sociedade de Belas Artes, fundada por Passos Manuel. Estive lá cerca de 10 anos. Eu gosto muito de marcar o tempo, deve ser uma questão de formação histórica, gosto de sentir o limite que o tempo nos traz, gosto de brincar com o tempo e de ter a noção do tempo.
E nessa altura disse para mim… 85 anos? Como é que ainda não morri aos 85 anos? Mas estou óptimo, devo ter algum tempo de vida, tenho é de voltar para casa [Casa-Museu Passos Canavarro]. Uma casa que para mim sempre teve uma importância fulcral para toda a minha vida, em todas as circunstâncias.
Tudo o que de importante se passou na minha vida passou por esta casa. Quando parti para o Japão foi aqui o último jantar. Nunca vou votar sem primeiro passar por esta casa.
A partir dos meus 85 anos estar sozinho, na minha casa, o prazer de abrir as janelas todas as manhãs é o meu primeiro acto ainda antes do pequeno almoço. Tenho um privilégio inacreditável que é abri-las para esta paisagem incrível de ter o Tejo de frente para mim.
Eu não posso ser levado pela corrente, tenho de ir contra a corrente, isto é também muito japonês, é ser carpa, peixes que sobem contra a corrente do Rio. Só subindo o rio é que assumo a liberdade, indo contra a corrente. E no fundo a minha vida é uma soma de coisas que vão contra a corrente. O normal era ter sido professor catedrático, ter ido para a carreira diplomática que nunca tive tempo, e foram sempre coisas que nunca estavam previstas, mas que eram sempre enormes atracções, pelo desconhecido, pelo encontro com o outro.
Portanto, este espaço aberto de ir contra com o encerramento claustral obriga a uma pessoa sozinha a ter que ser capaz de viver só. Não é fácil, mas que se consegue porque a pessoa adapta-se e constrói um silêncio criador. Se não fosse esse silêncio se calhar nunca teria escrito este livro. Não direi que é uma autobiografia, é um livro de uma pessoa a olhar para si próprio, em liberdade e sem medo. Fala de mim com os outros, mas os outros não têm nome. O prefácio é de Adelino Ascenso e a editora a Caleidoscópio. O livro tem uma marca oriental, 88 pequenas frases ou histórias. É um livro de pensamentos.
Que importância atribui à sua Casa-Museu em Santarém?
Eu acho que estes espaços podem ter uma presença ainda mais significativa quanto mais vamos avançando em novas sociedades. As Casas-Museus, se forem bem trabalhadas, são de um enriquecimento muito grande, porque o ser humano gosta que lhe contem a História do passado, do seu país, da sua família…
Esta Casa tem imenso valor porque temos aqui o primeiro chão árabe que foi conquistado. Este jardim é o primeiro chão conquistado por Afonso Henriques.
Esta Casa tem esse valor histórico, depois tem o valor político do próprio Passos Manuel que não está no Panteão embora fosse o seu fundador…
Regressemos à Europa que hoje celebra o seu dia. Onde se situa Portugal no contexto Europeu?
Estamos a viver num tempo em que por um lado o Homem tem mais condições de ser ele próprio, pelas tecnologias, pelo desenvolvimento do pensamento, pela facilidade de contactos pelo mundo inteiro que é uma coisa fantástica, que hoje é normal, mas era impensável há décadas atrás. E isso traz-lhe uma capacidade inerente de potência aplicável ou visualizável com o outro em dimensões completamente distintas, mas através do encontro e do desejo desse encontro não pensar que os europeus só falam com europeus, mas a serem atraídos pelos japoneses ou australianos, porque as questões acabam por ser as mesmas alargadas ao Mundo inteiro que são as da existência humana.
Temos eleições à porta. Como vê o futuro político neste país?
Lá estamos nós à procura do individuo para representar uma sociedade porque os valores estão alargados de tal maneira que aquele individuo passa a ter uma responsabilidade, uma necessidade de coerência, uma agilidade que se lhe impõe e que na generalidade não existe a nível de grupo parlamentar. Lá voltamos não à sociedade, mas ao individuo.
Acha que os partidos políticos estão a cumprir com a sua responsabilidade?
Os partidos para já estão a ter a mesma dificuldade. Eu acho que se calhar estão a dar tanto quanto podem. Agora a escala de valores é que pode ser revista de outra maneira, se vamos a um valor de segurança ou para uma necessidade de defesa ou para fazer com que as creches tenham professores para as crianças, se calhar nós estamos mais dispostos a procurar essa segurança do que propriamente a formação. Porque estamos em primeiro lugar a defender-nos a nós próprios.
Tem 10 netos, alguns já com idade para votar, se tivesse um que fosse votar pela primeira vez este ano o que lhe dizia?
Penso que é tão interessante quanto perigoso o momento que se vive. Pensem e percebam sobretudo a estratégia de quem preside a um partido político ou aglomerado, qual a estratégia identificável com essa pessoa. Se tem uma estratégia válida e se isso lhe dá confiança. Eu acho que nesta situação actual, aqui só há um homem que teve estratégia até hoje, e começou antes da dissolução do Parlamento que foi o Montenegro, é o único estratega que há. Porque percebeu perfeitamente o que era o Parlamento, que não tinha maioria se continuasse e, portanto, a única maneira, é de intervir na dissolução para ganhar com essa mesma dissolução e poder ter uma maioria mais significativa, de outra maneira não saía dali.
Como recebeu a notícia do falecimento do Papa Francisco e que legado é que ele terá deixado?
Eu diria que este não é o meu Papa, acho que foi fantástico, agiu de forma actual e inteligente, fazendo voltar ao de cima coisas que se sabiam no passado que tinham de acontecer. Como ser o primeiro Papa que depois da eleição se afirma como Bispo de Roma. Isto é um ponto fulcral para a dimensão que ele toma, sendo Bispo de Roma antes de ser Papa, está automaticamente a abrir-se ao diálogo não de um chefe de Estado, mas de um bispo de uma cidade. E por isso vai escolher Santa Maria Maior, uma das paróquias que poderia escolher como bispo de Roma, e não fica no Vaticano.
Sendo bispo, muito mais aberto a outras religiões e a não se impor como Papa às outras religiões, pôs-se em pé de igualdade. Ele tentou, não sei se conseguiu, mas em todo caso ter essa disponibilidade acho que foi o que levou ao facto de se afirmar como bispo de Roma.
Depois há outra coisa que me pareceu imensamente interessante, que foi logo ao início, quando ele vem de um grande encontro juvenil no Brasil, poucos meses depois de ter sido eleito, quando afirma à comunicação social que o aborda: “Quem sou eu para julgar”? Esta frase marcou-me como acho que marcou todo o papado dele.
A partir daí deixa de ser o Papa das três coroas, terrena, espiritual e eclesiástica, para ser o homem que está disponível a aceitar, não está para julgar, está para ouvir, compreender, poder aconselhar.
Contudo, como disse, este não é o seu Papa. Porquê?
O meu Papa é o Paulo VI. Eu era muito novo na altura e tive a possibilidade de uma audiência de jovens casados em que participei, junto ao altar da confissão em Roma. Porque antes de ser Papa era Arcebispo de Milão, era o Cardeal Montini, é o primeiro Papa que beija o chão, neste caso da diocese de Milão antes de entrar. O que depois João Paulo II fez pelo mundo inteiro. O primeiro que toma esta atitude é Paulo VI, e eu acho que é uma profunda atitude de espaço físico que se vai procurar integrar, sendo alguém que vem em trânsito para trazer o evangelho.
Depois por que é o Papa que dá a consistência e o termo do Concílio do Vaticano II que foi lançado pelo João XXIII mas este é que concretiza. E esse Concílio foi fundamental porque se punha muito em questão o achar-se que tinha capacidade para dali haver linhas mestras fundamentais, como depois houve.
E com o novo Papa, defende a continuidade de Francisco ou um regresso a Paulo VI?
Nunca é uma continuidade porque não há duas pessoas iguais. Vamos entrar pela comparação o que não é positivo. Vai-se muito para que seja um Cardeal da “velha Igreja” francesa, o que acho um pouco estranho porque Francisco deu-se muito mal com França. Não foi à abertura da Catedral de Notre Dame, nunca foi a Lourdes. Foi à Córsega que até é uma região independentista da França. Uma das razões que diziam é que havia um grupo dissidente para a formação de uma nova Igreja. Também ouvi dizer que essa dissidência se possa estender à Alemanha.
O Mundo precisa de uma nova Igreja?
No fundo precisamos sempre de uma nova Igreja, acho que a pessoa quer uma nova Igreja perante as realidades do Mundo actual, que até são mais limitativas a uma participação permanente como era antigamente.
Eu até me pergunto se em transição não seria mais inteligente ter um Papa asiático, porque aí era realmente uma nova Igreja. E era uma nova Igreja mais conservadora.
Até porque a Europa deixou de ser o centro do Mundo para a Igreja Católica…
Exactamente, e até se fala muito do cardeal das Filipinas.
O cristianismo nesses países é um cristianismo a sério, não é um beatério. É uma assunção.
Acho muito difícil encontrar alguém que se queira comparar com este [Francisco], sendo asiático não há comparação para fazer, há que aceitar e compreende-lo. Tentando faze-lo, estamos a ser mais humanos, enriquecendo-nos com essa diferença.
Ao longo da vida desempenhou vários papéis como historiador, professor, político, defensor do património cultural, em qual dessas actividades se revê melhor?
O que mais gostei acho que foi ser professor. Da possibilidade de comunicar e de me aperceber, perante uma plateia, dos interesses, das dúvidas, da realidade do que é um jovem, um cidadão. Ao fim e ao cabo é um encontro com o outro, é disponibilidade para o outro. Isso foi a coisa que me deu sempre mais interesse. É a disponibilidade para conversar com uma pessoa que nós não conhecemos, mas estamos disponíveis para a ouvir e para nos enriquecer e estarmos a enriquecer essa mesma pessoa.
JPN