Começa a dissolver-se, lentamente, o confinamento obrigatório em Portugal. A dura realidade vivida noutros Estados e a chegada tardia do novo coronavírus a Portugal deram tempo ao país para tomar medidas de prevenção, evitando uma subida vertiginosa de novos casos e o colapso do sistema de saúde. Aprendeu-se com o exemplo das medidas tomadas lá fora e, agora, Portugal ficará novamente de olhos postos nos que começam a sair à rua. Mas é preciso cautela, porque uma coisa é certa: “estamos todos a navegar em terrenos novos.” Esta é a opinião do médico pneumologista Gustavo Coimbra dos Reis, que presta serviço no Hospital de Santarém e na CUF Santarém e que deixa, nesta entrevista ao Correio do Ribatejo, conselhos para o retomar da ‘normalidade possível’.
Como médico pneumologista, como é que olha para este surto de Covid-19?
Os coronavírus foram identificados em meados da década de 60 e são conhecidos por infectarem humanos e uma variedade de animais, incluindo aves e mamíferos. Desde 2002, dois coronavírus que infectavam animais evoluíram e causaram surtos em humanos: SARS-CoV, identificado no sul da China em 2003 e MERS-CoV, identificado na Arábia Saudita em 2012. No seu conjunto causaram mais 1600 mortes.
À data em que escrevo, a COVID-19 afecta 202 países, com 3,4 milhões de casos diagnosticados, sendo responsável por mais de 240 mil mortes. Esta pandemia pressionou sistemas nacionais de saúde de muitos países para lá do limite, levou ao encerramento de estabelecimentos de ensino, indústria e espaços comerciais e ditou o decretar do estado de emergência pela primeira vez na história da democracia portuguesa.
Seguramente terá um impacto social e económico significativo e cuja verdadeira dimensão só iremos conhecer posteriormente. Como tal, enquanto médico e também enquanto cidadão, é com apreensão que olho para este surto.
Quais são os grandes ‘mitos’ acerca da doença que se devem desmistificar?
A Organização Mundial de Saúde procura esclarecer e desmistificar vários mitos, tendo elaborado um documento onde os descreve. Segundo o documento, são os seguintes: Actualmente não existem medicamentos específicos licenciados para o tratamento e prevenção da covid19. Não há provas de que a hidroxicloroquina ou qualquer outro medicamento possa curar ou prevenir a COVID-19. O uso indevido da hidroxicloroquina pode causar efeitos colaterais, doenças graves e até levar à morte. A Organização Mundial de Saúde (OMS) está a coordenar esforços no sentido do desenvolvimento de medicamentos para o tratamento da COVID-19.
Adicionar pimenta à sopa ou outras refeições não previne ou cura a COVID-19. A melhor forma de se proteger contra o novo coronavírus é manter o distanciamento social e lavar as mãos com frequência.
A COVID-19 não é transmitida pela picada de mosquitos. Até ao momento, não há evidência ou informação que sugira que o vírus SARS-CoV-2 seja transmitido através de mosquitos. Transmite-se principalmente por gotículas geradas quando uma pessoa infectada tosse, espirra ou fala. O contágio também é possível através do contacto com uma superfície contaminada se depois tocar nos olhos, nariz ou boca antes de lavar as mãos. Para se proteger, mantenha pelo menos 1 metro de distância dos outros e desinfecte as superfícies tocadas com frequência. Limpe as mãos cuidadosamente e com frequência e evite tocar nos olhos, boca e nariz.
Borrifar o corpo com álcool ou outros desinfectantes não protege contra a COVID-19 e pode ser perigoso: borrifar o corpo com álcool ou outro desinfectante não serve para matar o vírus. Essas substâncias podem provocar lesões no corpo, causar irritação, danos à pele e aos olhos. Lembre-se de manter o cloro e outros desinfectantes fora do alcance das crianças.
Beber metanol, etanol ou cloro não previne ou cura a COVID-19, podendo ser extremamente perigoso. Tratam-se de produtos tóxicos e a sua ingestão pode levar à morte. As redes móveis 5G não espalham a COVID-19. Os vírus não viajam em ondas de rádio / redes móveis. O SARS-CoV-2 que provoca a COVID-19, é transmitido através de gotículas respiratórias quando uma pessoa infectada tosse, espirra ou fala. A exposição solar ou a temperaturas superiores a 25°C não previne a doença pelo novo coronavírus (COVID-19). A transmissão do vírus é independente do clima. Países com clima quente e húmido também foram afectados com COVID-19. Para se proteger, lave as mãos com frequência e evite tocar nos olhos, na boca e no nariz.
O tempo frio e a neve não matam o novo coronavírus. Não há razão para acreditar que o clima frio possa matar o novo coronavírus ou outras doenças. A temperatura normal do corpo humano permanece em torno de 36,5°C a 37°C, independentemente da temperatura externa.
Conseguir suster a respiração por 10 segundos ou mais sem tossir ou sentir desconforto NÃO significa que está livre da doença de coronavírus (COVID-19) ou de qualquer outra doença pulmonar. Este exercício de respiração não confirma a infecção pelo novo coronavírus. A confirmação da infecção pelo SARS-CoV-2, é realizada com um teste de laboratório.
Beber álcool não ajuda a proteger do vírus. O consumo de álcool não o protege contra o COVID-19 e pode ser perigoso. O consumo frequente ou excessivo de álcool pode aumentar o risco de problemas de saúde.
Tomar um banho quente não impede a nova doença de coronavírus.
A temperatura corporal normal permanece em torno de 36,5°C a 37°C, independentemente da temperatura do banho. Tomar banho com água extremamente quente pode ser prejudicial.
Os secadores de mãos não são eficazes para matar o novo coronavírus: para se proteger contra o novo coronavírus, deve lavar frequentemente as mãos com solução de limpeza à base de álcool (SABA) ou lavá-las com água e sabão. Depois de lavar as mãos, deve secá-las cuidadosamente usando toalhas de papel ou um secador de mãos. De igual forma, lâmpadas ultravioletas (UV) não devem ser usadas para desinfectar as mãos ou outras áreas da pele. A radiação UV pode causar irritação na pele e danificar os olhos. Limpar as mãos com álcool ou esfregar as mãos com água e sabão é a maneira mais eficaz de remover o vírus.
Os scanners de temperatura não são eficazes na detecção de pessoas infectadas: os scanners térmicos são eficazes na detecção de pessoas que desenvolveram febre devido à infecção pelo novo coronavírus. Contudo, não conseguem detectar pessoas que estão infectadas, mas ainda sem febre. Em média, são necessários dois a dez dias para que as pessoas infectadas possam desenvolver sintomas, entre os quais a febre.
As vacinas contra a pneumonia não protegem contra o novo coronavírus. As vacinas contra pneumonia, como a vacina pneumocócica e a vacina contra o Haemophilus influenza tipo B (Hib), não oferecem protecção contra o novo coronavírus. O vírus precisa da sua própria vacina. Embora essas vacinas não sejam eficazes contra a COVID19, a vacinação contra outras doenças respiratórias é altamente recomendada. A lavagem regular do nariz com solução salina não ajuda a prevenir a infecção pelo novo coronavírus. Não há evidência de que lavar o nariz regularmente com soro fisiológico tenha protegido pessoas da infecção pelo novo coronavírus. Existe evidência limitada de que lavar o nariz regularmente com soro fisiológico pode ajudar as pessoas a recuperar mais rapidamente em caso de constipação comum. No entanto, a lavagem regular do nariz não demonstrou prevenir infecções respiratórias.
Comer alho não previne a infecção pelo novo coronavírus: o alho é um alimento saudável que pode ter algumas propriedades antimicrobianas. No entanto, no surto actual, não há evidência de que comer alho tenha protegido as pessoas do novo coronavírus.
O novo coronavírus não afecta só idosos. Pessoas de todas as idades podem ser infectadas pelo novo coronavírus. Os idosos e pessoas com outras doenças pré-existentes (como asma, diabetes, doenças cardíacas) parecem ser mais vulneráveis a ficar gravemente doentes com o vírus. A Organização Mundial de Saúde aconselha pessoas de todas as idades a tomar medidas de protecção contra o vírus.
Os antibióticos não são eficazes na prevenção e tratamento do novo coronavírus. Os antibióticos não funcionam contra vírus, apenas bactérias. O novo coronavírus (SARS-CoV-2) é um vírus e, portanto, os antibióticos não devem ser usados como prevenção ou tratamento. No entanto, em caso de hospitalização, poderá receber tratamento com antibióticos, devido à possível co-infecção bacteriana.
Quais são os principais problemas causados por este novo coronavírus nos doentes?
As apresentações mais frequentes incluem febre, fadiga, tosse seca, perda de apetite, sintomas relacionados com as vias aéreas superiores, dores musculares, diarreia e náusea, alteração do olfacto e paladar e dor de cabeça. Não existem, portanto, características clínicas específicas que permitam distinguir de forma segura a COVID-19 de outras infecções respiratórias virais, sendo que, no entanto, o aparecimento de dispneia alguns dias após o início dos sintomas possa ser sugestivo. A pneumonia viral é a manifestação grave mais frequente da infecção por SARS-CoV-2, caracterizada por febre, tosse, dispneia (falta de ar) e alterações radiológicas típicas. É esta pneumonia viral que conduz ao ARDS (Síndroma de Dificuldade Respiratória Aguda), responsável pela insuficiência respiratória e necessidade de ventilação mecânica invasiva, com consequente internamento nas Unidades de Cuidados Intensivos. Outras complicações graves da doença incluem arritmias, lesão cardíaca aguda e o choque. A recuperação do doente poderá demorar cerca de duas semanas nos casos ligeiros e entre três a seis semanas nos casos graves.
Na sua leitura, nesta altura em que o País prepara o desconfinamento, a palavra ‘prudência’ deve estar na ordem do dia?
Sim, sem dúvida! Com o fim do Estado de Emergência, Portugal entra agora em estado de calamidade, iniciando-se um desconfinamento progressivo. Como referiu o secretário de Estado da Saúde, o desconfinamento “será um processo gradual para que todo o esforço colectivo não tenha sido em vão”. O Governo e o Presidente da República estão conscientes que o desconfinamento poderá trazer um aumento do número de casos e caso se verifique algum retrocesso no combate à pandemia as medidas serão imediatamente revertidas.
Esta fase reveste-se de uma importância extrema. A forma como cada um de nós se comportar nas próximas semanas irá ditar a forma como a pandemia irá evoluir no nosso país.
A abertura de creches e escolas é, na sua opinião, uma medida aceitável face à evolução da doença?
É com apreensão que encaro as medidas de desconfinamento, entre as quais, a reabertura das creches, porém, estou confiante que os Ministérios da Saúde e da Educação estão a tomar todas as medidas necessárias para que esta ocorra com o máximo de segurança. Os profissionais serão testados para infecção COVID-19 e irão receber formação sobre normas de higiene, segurança e protecção a adoptar na nova realidade do dia-a-dia das creches.
Qual é, neste momento, o principal conselho que dá à população? Defende o uso generalizado de máscara protectora contra a infecção respiratória da covid-19 em locais onde é difícil manter o distanciamento social?
Vários governos europeus foram revelando ao longo dos últimos dias os seus planos para o desconfinamento progressivo. Esta fase é de extrema importância para não haja um retrocesso na evolução da pandemia. As medidas propostas pelo governo incluem, entre outras, o dever cívico de recolhimento, a limitação da lotação máxima nas instalações fechadas, proibição de eventos ou ajuntamentos com mais de dez pessoas, o exercício profissional em regime de teletrabalho sempre que as funções o permitam e, claro, o uso obrigatório de máscaras nos transportes públicos, escolas, comércio e outros locais fechados com múltiplas pessoas, medida com a qual concordo inteiramente. Para mais informação sobre o tema, recomendo a consulta da página https://www.mascaraparatodos.info/
Considera que o País tem dado uma boa resposta a esta crise sanitária?
A forma como Portugal se posicionou e geriu esta crise sanitária tem sido alvo de numerosos elogios por parte da imprensa e da comunidade internacional. A posição geográfica do país – o último na Europa Ocidental a confirmar o primeiro caso de infecção – e o facto de termos apenas uma fronteira terrestre são aspectos importantes, sem dúvida. No entanto, na minha opinião, o aspecto crucial foi a declaração atempada do “Estado de Emergência”. Relembro que no dia 13 de Março, quando o primeiro-ministro declarou o “estado de alerta” e anunciou o encerramento de todas as escolas, tínhamos apenas 122 casos confirmados de infecção e nenhum óbito.
Em tempo de pandemia, onde uma vacina actua como a “luz ao fundo do túnel”, como é possível gerir as expectativas de uma população e o tempo normal do decurso da disponibilização de uma nova vacina no mercado?
A disponibilidade de uma vacina poderá ser um ponto de viragem na luta contra o coronavirus e provavelmente representa a melhor perspectiva de podermos regressar à dita normalidade. As melhores perspectivas apontam no sentido de podermos vir a dispor de uma vacina dentro de 12 a 18 meses. No entanto teremos que nos preparar para que esta projecção animadora possa não se concretizar neste período. Isto porque nunca foi disponibilizada uma vacina humana para coronavirus, sendo o recorde para desenvolvimento de uma vacina totalmente nova, como é o caso, de quatro anos. No entanto se houve alguma altura na história propícia ao desenvolvimento de uma vacina em tempo recorde, é agora. Neste momento existem pelo menos 95 vacinas para o efeito em desenvolvimento. De referir que identificação de um fármaco para o tratamento da COVID-19 poderá modificar a luta contra esta doença. A OMS iniciou em Março um pesquisa global nesse sentido. Se bem sucedida, esses eventuais fármacos poderão baixar o número de admissões hospitalares e ajudar numa recuperação mais célere, estreitando a janela da infecção e reduzindo o número de contágios. Combinando isto com a aplicação rigorosa de testes para identificação dos doentes e o seguimento dos seus contactos de forma a que possam cumprir quarentena, estaremos a caminhar na direcção certa.
O que mudou na sua vida e nas suas rotinas por causa por causa do perigo de contágio?
Em boa verdade, tudo mudou e de forma radical! Penso que todos nós, independentemente da profissão, sentimos que o mundo e a forma como vivíamos mudou abruptamente. Na minha vida pessoal, sendo eu e a minha mulher profissionais de saúde e com um filho de nove meses, a pandemia implicou que trabalhássemos de modo alternado, articulando o dever profissional com a vida familiar. Na actividade clínica, houve por parte da direcção quer do Hospital de Santarém, quer da CUF Santarém, a adopção imediata e irrepreensível de medidas extraordinárias de protecção do corpo clínico e dos doentes. Esta resposta por parte das instituições correspondeu exactamente ao exigido e permitiu que a actividade necessária pudesse ser desenvolvida em total segurança. Devo dizer, a título pessoal, que senti ter sempre reunidas a condições necessárias ao desempenho das minha funções e agradeço, como tal, a quem foi responsável pela implementação das mesmas.
Para quando podemos perspectivar o regresso à “normalidade”?
Essa é uma questão para a qual não há resposta. A meu ver, seria mais sensato assumir que esta é a nossa nova “normalidade”. É claramente uma situação que se poderá arrastar por meses ou anos, até que se desenvolva uma vacina ou se identifique um tratamento específico. Como tal, penso que o nosso foco deve centrar-se na adaptação a esta nova realidade e na adopção de medidas que nos permitam continuar a viver e desenvolver as nossas profissões em segurança.
Que conselhos quer deixar a população?
De facto, até à data, a prevenção é a melhor forma de combater esta pandemia. Isto só é possível se conseguirmos minimizar a transmissão do vírus. Como tal, continuo a enfatizar a necessidade de manter as medidas amplamente difundidas: lavar frequentemente as mãos, cumprir as medidas de etiqueta respiratória, manter o distanciamento físico e utilizar uma máscara comunitária quando se ausentar de casa. Relembro o dever cívico de recolhimento, reduzindo ao indispensável os contactos sociais.
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