Reler Teixeira de Pascoaes é um pouco como revisitarmos um monumento histórico que pelo seu significado e pelo carácter da sua representação nos marcou e constitui, assim, uma referência importante.
A propósito do mau uso do termo folclore, nomeadamente pelas classes política e desportiva, recordo algumas considerações abonatórias do próprio folclore, e do que ele simboliza na abordagem à nossa matriz identitária, numa leitura dessa obra magistral que é a Arte de Ser Português.
Reler Pascoaes, e particularmente esta obra, é como enchermos a alma de portugalidade e sentirmos orgulho na nossa pátria e, sobretudo, na nossa cultura tradicional. A páginas tantas desta obra-prima da nossa literatura, escreve Pascoaes – “Se o português, como indivíduo, herda as qualidades de família, herda igualmente as da sua raça, porque o homem não cabe dentro dos seus limites individuais”.
Mais adiante, refere ainda o Autor que “O português participa também da herança étnica, histórica ou tradicional, adquirindo, assim, uma segunda vida que, por mais vasta, abrange e domina a sua existência de indivíduo”.
Muitos paralelismos podemos estabelecer entre a conceptualização de folclore e muitas afirmações de Pascoaes nesta magnífica obra de exaltação aos valores pátrios que acentuam o nosso carácter como povo secular. E senão, atentemos nesta outra opinião do douto autor amarantino: “O carácter é a expressão total das qualidades, conservadas e transmitidas pela herança e tradição, que definem uma raça”.
E a fonte inspiradora de saberes e de sentimentos populares que é o povo, não poderia passar despercebida ao poeta e escritor da região do Tâmega, que se lhe refere nestes termos: “… a linguagem popular é mais irmã do Verbo divino que a linguagem dos letrados. É a voz do sangue e da terra.
E as suas pitorescas expressões tão cheias das próprias coisas que traduzem! Como tudo vive nas suas frases! Como as videiras choram, quando as ferem; como as flores riem no mês de Abril; como as névoas avoam da barra, pelo Dezembro!”.
Indo ao encontro de outras obras de Teixeira de Pascoaes, como “O Bailado” ou “A Beira num Relâmpago”, reforçaríamos as referências do amor do escritor pelas coisas do nosso povo, que exalta sem demagogias nem efeitos bacocos, exaltando-lhe as virtudes, mas, não escondendo os defeitos, porque um povo, qualquer povo, reúne as duas vertentes que moldam o seu carácter.
Enfim, muito nos apraz a grata circunstância de encontrarmos aliados da nossa causa folclórica entre os príncipes das nossas letras. Adiante…
Em 1956, ano em que surgiram no Ribatejo diversos grupos e ranchos de folclore por acção directa ou por influência de Celestino Graça, o Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, então Subsecretário de Estado da Educação Nacional, proferiu uma brilhante conferência no âmbito da Campanha Nacional de Educação de Adultos, que subordinou ao tema “Formas e Critérios da Cultura Popular”.
Como se compreenderá, não iremos deter-me sobre os considerandos do Dr. Rebelo de Sousa a propósito do processo educativo de então, nem das medidas que este governante preconizava como as mais adequadas para acudir às preocupações dessa época. Até porque já lá vão quase setenta anos…
Porém, no âmago da questão que serviu de base a esta notável conferência – brilhante quanto à forma e pela eloquência patenteada – estão alguns preceitos sobre a cultura popular, que, estes sim, nos interessam, quanto mais não seja para podermos ficar a conhecer melhor o que o poder político de então pensava a respeito da cultura popular.
E convenhamos que registámos algumas ideias correctas e louváveis, mau grado que a prática governativa nem sempre tivesse sido coincidente com os princípios enunciados. Ontem, como hoje, aliás!
Discorrendo sobre o conceito que então prevalecia sobre a cultura popular, o eminente político constatava o “enciclopedismo elementar sobre os mais diversos campos culturais” e ainda o “exibicionismo folclórico e decorativo, de trajes mais ou menos garridos, pitoresco fabricado por vezes propositadamente”. Aqui, não podemos estar mais de acordo, e a prova disso mesmo são os ranchos de folclore constituídos por essa época e que até hoje ainda não lograram erradicar das suas representações essas tais marcas, que mais se assemelham a estigmas do que a referências culturais.
Mais adiante, referiu o Dr. Baltazar Rebelo de Sousa que “A primeira ideia a fixar a este respeito é a de que, em cultura popular, nem tudo há-de ou pode ser feito de novo: de tal cultura fazem parte realidades que já existem, que resultam do património secular das gerações, representando o saldo positivo, os ganhos de uma longa experiência”. Mais adiante, opinava que “Toda a cultura se define, em termos de consciência de valores. Ser consciente de direitos e de deveres, amar a terra em que se nasceu, sentir o orgulho das suas usanças, (…) venerar lugares, respeitar costumes, (…) – tudo isto são as pedras fundamentais da cultura popular, valores que, como tais, têm de ser preservados e enriquecidos, e não substituídos pela generalização igualitária e esterilizante de uma cultura feita segundos novos padrões”.
Para reforçar o seu ponto de vista o Dr. Baltazar Rebelo de Sousa constata que “quem hoje visitar a aldeia de Monsanto – primeiro prémio em 1939, do Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, promovido pelo Secretariado de Propaganda Nacional – poderá ouvir, entoadas pelas crianças das escolas, canções que há vinte anos andavam quase perdidas e verá em muitos aspectos manifestações sadias de uma cultura local, que a gente da aldeia se orgulha de ostentar”.
Na continuação do seu discurso, o governante conclui que “O grande mestre da cultura popular há-de, assim, ser o próprio povo. E o esforço dos serviços encarregados de a promover e estimular há-de ter sempre em conta essa realidade, sem a qual poderá alcançar espectáculos aparatosos, mas, não atingirá nunca o verdadeiro objectivo – a floração das velhas raízes de uma cultura autenticamente nacional”.
Como é óbvio, alguns destes princípios foram vencidos pelo tempo e até pela ineficácia de quem tinha o dever de ser mais interventor nesta área da cultura, mas registamos a acuidade e a pertinência de algumas perspectivas subjacentes a este pensamento.
Sinal de uma certa abrangência, que ainda hoje não foi assumida por uma parte significativa dos ranchos folclóricos portugueses, é a referência a diversos aspectos tão interessantes para a caracterização da cultura popular, e que passamos a citar “cantares do povo, canções para a vindima, a monda, a sacha, a azeitona, ou os folguedos de romaria; cânticos de sentido litúrgico – encomendações das almas, alvíssaras pascais, martírios – que, não raro, andam associados a manifestações religiosas populares; lendas sobre lugares e sobre coisas, histórias de prodígios de antigos tempos, lembranças de representações, vestígios arcaicos de momos e entremezes – que ainda os há por essa província; a romaria, a feira, a tourada; o traje local, o bordado e a renda, a manta e a colcha; a tradição de um artesanato peculiar, a doçaria, o tipo próprio do vinho – e, em suma, uma extensa série de manifestações locais, peculiares, que em cada caso há que aproveitar ou – por que não? – que descobrir.”
Enfim, salvaguardada a erosão conceptual decorrente do tempo, entretanto, passado, constatamos que há ainda muitos pontos de convergência sobre a matriz da nossa cultura popular e, essencialmente, sobre os imperativos da sua preservação e da sua dignificação.