As celebrações de exaltação dos valores tradicionais promovidas pelo Estado Novo foram o “embrião” para o aparecimento de ranchos folclóricos, alguns dos quais mantêm resquícios dessa época, defende o sociólogo Nelson Ferrão.
Com vários trabalhos publicados sobre esta temática, Nelson Ferrão afirma que a “apresentação institucional”, em celebrações regionais ou nacionais, das características de cada lugar – a indumentária, as canções, as bandeiras -, misturando elementos lúdicos e coreográficos tradicionais com outros novos, geralmente criados por notáveis locais, foi o motor para o surgimento do que, “mais tarde, toma a forma de ranchos folclóricos”.
Incidindo o trabalho que vem desenvolvendo desde 1978, essencialmente na denominada região do Ribatejo, outra “criação” do Estado Novo, o sociólogo sublinha que, até meados dos anos 30 do século XX, a palavra “rancho” identificava grupos de trabalhadores que desempenhavam tarefas agrícolas por conta dos proprietários das quintas.
“Quando acontecia uma festa ou um grande evento que mobilizasse os grandes proprietários, aos seus trabalhadores era solicitada a participação para apresentarem os seus fatos mais antigos, músicas, cantares e danças”, refere.
A partir da década de 30, alguns desses grupos eram chamados, pelos patrões ou algum “notável da terra”, a representar um concelho ou um lugar nas exposições, feiras e cortejos, surgindo com designação associada às suas tarefas (rancho de salineiros, azeitoneiras, vindimadeiras, lagareiros, etc.).
Neste período inicial, que designa de “celebração”, grupos de trabalhadores agrícolas, “convocados pelos notáveis e líderes locais, figuravam nas grandes iniciativas do Estado Novo apenas como parte integrante de uma encenação”.
No caso do Ribatejo, Nelson Ferrão identificou a primeira “marcha festiva” no ano de 1936, com o Rancho “Os Campinos” de Vila Chã de Ourique, que associa à exposição-feira distrital, realizada em Santarém em Maio desse ano.
O evento ocorreu “depois do sucesso das marchas de Lisboa, também ali imitadas”.
O grande surto de ranchos folclóricos na região aconteceu na sequência do aparecimento da Feira do Ribatejo, em 1954, impulsionados pelo dirigente do certame, Celestino Graça.
Nelson Ferrão inventariou a criação de 12 estruturas entre 1955 e 1960, “substancialmente mais” do que as dez surgidas entre 1936 e 1954 ou durante toda a década de 60 (sete).
O investigador sublinha que a política de então “não estimulava, desincentivava mesmo” quem procurava desenvolver um trabalho de recolha criterioso sobre as tradições populares – como Fernando Lopes Graça ou Michel Giacometti -, “apelando, ao contrário, para o empirismo dos mestres” (notáveis locais).
“Na fundação destas estruturas folclóricas na região (e no país) perpassa uma grande vontade de mostrar a terra e as suas características, suportada por uma maneira lúdica de fazer e de criar a partir da execução simples de esquemas coreográficos que imitavam os modelos das marchas de Carnaval (baseadas nas marchas populares de Lisboa) e dos cortejos”, frisa.
“No entanto, é ao nível do simbólico que parece existir uma ligação maior entre os postulados do Estado Novo e ‘as linhas’ com que os ranchos folclóricos inicialmente se ‘coseram’ e que ainda vão perdurando”, acrescenta.
Para Nelson Ferrão, “a região não é a ideia mitificada que se teve durante muitos anos e que foi forjada desde os anos 30, 40, que é Ribatejo igual a um campino vestido em traje de gala, em cima do cavalo”, a que se junta o toiro, “símbolos estereotipados” criados nesta fase que designa como de “estilização”.
Com o fim do Estado Novo e a ida de jovens académicos para o terreno, nos anos 80 assistiu-se a um período de “reconstrução”, que tem evoluído para novas concepções, como as mais recentes “encenações temáticas”, a partir de recolhas sobre cenas da vida no campo.
“Claro que agora há outras formas de pensar, outras práticas, outros modos de ver o mundo e é possível os ranchos apresentarem os seus territórios de formas mais realistas, mas ainda vamos tendo comportamentos de ensaiadores, de dirigentes de grupos folclóricos que vêm na linha directa do que se assistia nos anos 50, 60. Perdura um pouco desse espírito regionalista, produzido e cultivado pelo Estado Novo a partir de alguns elementos simbólicos”, declarou.
Lusa