Terminei o último artigo referindo-me às autoridades chinesas, que conhecedores da capacidade naval dos portugueses, demonstradas por todo o Oriente, discutiam na residência imperial e centro político conhecida como a Cidade Proibida (porque o acesso era restrito à família imperial e seus funcionários), se deveriam ou não solicitar o seu apoio naval na luta contra os piratas e rebeliões internas, ao longo do seu litoral Sul. Relembravam a experiência e as consequências: afinal a política de perseguição aos portugueses pelas costas das províncias de Zhejiang, Fujian, a Norte, tornara-se infrutífera; em embarcações a superioridade bélica dos portugueses em armas de fogo, quando embarcados, era temível; a incapacidade naval chinesa para longas distâncias estava limitada; haveria custos incalculáveis quer na organização, aquisição de meios e perseguição; provável a possibilidade de guerrilha marítima que os portugueses poderiam fazer conjuntamente com piratas chineses, japoneses e malaios, o que seria um problema ainda maior, etc. Assim, qualquer espaço que viessem a autorizar para a sua permanência, pequeno e limitado, nada era que não se pudesse resolver com o apoio de um grande exército atacando por terra e mar, como haviam feito em Liampó, na batalha de Zoumaxi e, como aqui vimos já no século I desta Era, a China armava um exército de 1 milhão de homens.
Porém consentir a permanência dos portugueses em território seu, mais que um problema provincial, era agora nacional, pelo que havia que equacionar outras vantagens que se pudessem retirar pela autorização de permitir aos portugueses desembarcar e permanecer: porque não a resolução urgente de pequenos problemas de carácter financeiros através do seu comércio externo principalmente com o Japão, ou o pagamento de um tributo em prata trazida desse país? Porque não o apoio militar e naval quando necessário? Porque não? Nada a envergonhar, pois afinal a sua presença em A-Ma-Gao era provisória pelo que há que considerar que foi uma ocupação pacífica em vez de uma afronta, qual conquista militar. A opinião de um intelectual chinês daquele tempo, Huo Yuxia, mais contribuiu para a decisão das autoridades. Dizia ele: “…os estrangeiros que exercem o comércio nas ilhas não deveriam ser comparados com os malfeitores e rebeldes… Um homem sensato deverá ter em conta aquilo que vos estou a propor!”
Finalmente Leonel de Sousa, proprietário de uma frota respeitável e porta voz junto das autoridades chinesas é informado: “Sim! Podem desembarcar e permanecer em A-Ma-Gao”. Qual bom agouro, quase em simultâneo, o chefe pirata Chan-Si-Lau, o terror do Rio das Pérolas, é derrotado com o auxílio dos portugueses, acabando por se suicidar.
Depreende-se pela decisão que houve uma política chinesa pré-estabelecida para isso, uma forma de convite aos portugueses a ocupar o lugar que frequentavam. A China aplicara com habilidade duas máximas chinesas, que explicavam isto: “Huairou Yuanren” (afeiçoar os que vêm de longe) e “Ji mie Bujue” (rédeas soltas, mas curtas). Não fora nenhuma razão política a autorização dada aos portugueses, pois as relações externas da China com os outros países eram no “sistema tributário”. Neste caso a China não tinha relações político-diplomáticas com Portugal e a missão diplomática chefiada por Tomé Pires tinha sido um fracasso. A autorização foi pura e simplesmente uma medida de conveniência de carácter económico para ambos e de cunho militar para a China, desprovido de qualquer relação político-diplomática que só se veio a estabelecer entre a China e Portugal com o infrutífero Tratado de 1887 que falaremos numa próxima edição. Finalmente consentidos, os portugueses fixavam-se definitivamente em Macau. O território, um pequeno istmo com 2,8 Km2 já não era desabitado pois como anteriormente vimos alguns membros da Dinastia Song, fugindo aos invasores mongóis após a derrota na batalha de Yamen em 1279, chegaram a Macau e aqui construíram a sua povoação a que chamaram de Wang Xia (Mong-Há) que significa “virados para Xiamen”. Também pescadores de Cantão, chegados mais tarde, haviam-se estabelecidos um pouco mais distante, no litoral, onde construíram o famoso Templo de A-Má, a deusa protetora dos marinheiros, razão porque o local ficou conhecido como “baía de A-Ma” (A-Ma-Gao).
A história de A-Ma-Gao, nome que em língua portuguesa evoluiu com o tempo para Cidade do Nome de Deus de Amagao na China, não é o objectivo principal destes artigos, como referido desde o início. Estes artigos visam essencialmente “saber, perceber e meditar sobre a China”, ao jeito de “um contributo civilizacional? ou uma ameaça?”. Contudo não quisemos deixar de referir à fixação dos portugueses em território chinês e dizer agora que o papel desempenhado por Macau foi importante porque desde a chegada dos portugueses, no século XVI, foi uma porta de acesso para a entrada da civilização ocidental na China e vice-versa, de uma forma não violenta, razão porque logo em 1614 o Governador de Guandong escrevia ao imperador “deixem os chineses e os Fu-lang-gi (mercadores portugueses) viver pacificamente lado a lado e que nenhuma das partes se aventure em acções de hostilidade contra a outra”. Proporcionou assim Macau uma importante plataforma para a simbiose e o intercâmbio de culturas ocidentais e orientais.
Voltando à China. Os últimos anos da dinastia Ming foram marcados pelo colapso devido a uma combinação de corrupção, rebeliões camponesas, desastres naturais (como fome e inundações) e ameaças externas. O descontentamento popular e a instabilidade da corte culminaram na queda de Pequim para o exército rebelde de Li Zicheng em 1644, levando o último imperador, Chongzhen, ao suicídio e ao fim da dinastia Ming. Vai surgir a Dinastia Qing (1644 – 1912), a última dinastia imperial, governada pela etnia Manchu originários da região da Manchúria, no norte da China. Mantiveram estes a capital imperial em Pequim e preservaram parte dos costumes e da burocracia dos Han. O primeiro imperador desta dinastia, Shunzhi, governou até o ano de 1661, seguindo-se 3 imperadores, de 1661 a 1722, que fizeram o país viver o seu ápice económico, militar e social, principalmente durante o reinado do Imperador Qianlong: chegou aos 430 milhões de habitantes, triplicou de tamanho com a conquista de Tibet, Taiwan, a região de Xinjiang e de territórios na Sibéria; assim ocupados em guerras, descuravam a chegada dos mercadores ocidentais para venda dos seus produtos, isto como resultado da Revolução Industrial na Europa do século XVIII, pelo que foi enorme a procura dos novos mercados, a promoção dos seus produtos e a necessidade de matérias primas. O grande destaque foi a expansão britânica dos seus negócios para o Oriente.
A política externa chinesa assentava em velhos princípios: o primeiro era que os seus exércitos e armas eram superiores às dos estrangeiros; que a China podia civilizar os ocidentais, tal como já tinha anteriormente feito com outros povos bárbaros. A partir de 1736 a China já desconfiava dos estrangeiros e passou a preocupar-se. Assim, em 1757, um decreto imperial impõe as “Oito Regras” onde destacamos: imposição do comércio com os estrangeiros só em Cantão; todos os pagamentos seriam em prata; impedimento de entrada de armamento e forças marítimas; não podiam levar as mulheres; ter um número limitado de empregados chineses e proibidos de aprender a língua chinesa.
Os comerciantes ocidentais, principalmente a Companhia Inglesa das Índias Orientais, não aceitaram estas restrições pelo que as “Oito Regras” tornou-se uma fonte de conflito entre ocidentais e os chineses no século XIX, que iriam ocasionar duas guerras e que constituiriam o começo de um período de declínio e de transformação para a China, que duraria até meados do século XX.
