No ano em que o Círculo Cultural Scalabitano completa 71 anos, Vítor Murta traça, em entrevista ao Correio do Ribatejo, um retrato amplo da instituição que dirige: uma casa que cresceu da fusão de duas tradições culturais da cidade e que se mantém sustentada pela memória, pela diversidade artística e pelo trabalho silencioso de várias gerações de associados, criadores e voluntários. O presidente sublinha a necessidade de intervir num edifício marcado pelo tempo, de concluir a modernização da base de dados e de reforçar a comunicação digital para chegar a novos públicos, sem perder a relação histórica com a comunidade. Entre a preservação do arquivo, a actividade diária das valências e o papel do Círculo no centro histórico, Vítor Murta insiste que o futuro da instituição depende da continuidade: “o essencial é não estragar o que foi recebido”, afirma, defendendo que cabe à direcção garantir condições para que o Círculo permaneça um espaço de formação, criação e participação cultural para as próximas gerações.
O Círculo Cultural Scalabitano celebra 71 anos. Que balanço faz deste percurso e que significado tem esta data para a instituição?
O 71.º aniversário tem um significado muito particular porque assinala a continuidade de um projecto colectivo que começou em 1954, com a fusão do Grémio Literário Guilherme de Azevedo e do Orfeão Scalabitano. Estamos a falar de duas estruturas fundamentais da vida cultural escalabitana, cada uma com uma identidade muito própria: o Grémio, com a sua tradição literária e associativa, já enraizado neste edifício; e o Orfeão, que tinha passado por vários espaços e que trazia consigo a força do canto coral e da música. A junção destas duas realidades deu origem a uma casa que, desde a sua fundação, quis ser um ponto de encontro das artes.
Comemoramos a data em Dezembro porque foi nesse mês que a primeira direcção foi formalmente eleita. Isso marca não apenas o início administrativo da instituição, mas o momento em que o Círculo se assume como um projecto estável, com programação, actividades regulares e um papel definido na cidade. Ao longo de sete décadas fomos construindo temporadas de primavera e Outono, acolhendo espectáculos, aulas, exposições e projectos comunitários. Mantivemos sempre portas abertas e isso fez com que várias gerações passassem por aqui — para aprender, para criar ou simplesmente para assistir.
Este ano, ao juntarmos o jantar comemorativo, o concerto de Natal, a referência aos 130 anos do Teatro Taborda e outros momentos simbólicos, estamos também a sublinhar a longevidade da casa e a sua capacidade de adaptação. O Círculo continua vivo porque nunca deixou de evoluir, mas mantendo sempre a essência: ser um espaço onde a cultura tem lugar quotidiano.
Que critérios presidem às distinções atribuídas aos sócios?
O ponto de partida é a continuidade. Valorizamos associados que, ao longo de muito tempo, mantiveram uma ligação activa ao Círculo, pagando quotas, participando, sendo presença regular e fiel. Há aqui uma dimensão de responsabilidade e de compromisso: estas pessoas sustentaram a instituição quando as condições eram mais difíceis, quando as obras estavam por fazer, quando era preciso insistir para que as valências não perdessem ritmo.
A actualização da base de dados permitiu-nos identificar quem completa 50 ou 60 anos de filiação — datas que, nalguns casos, estavam dispersas em registos antigos. Isso exigiu trabalho de arquivo, cruzamento de informação e contacto com associados que, por vezes, não estavam tão presentes na vida quotidiana do Círculo, mas que nunca deixaram de o apoiar. Reconhecemos este ano a associada com 60 anos de filiação, Maria Luísa Belchior, e dez associados com 50 anos de ligação, todos eles com percursos muito diferentes, mas unidos por uma dedicação constante.
Este gesto tem também uma dimensão afectiva. Para muitas destas pessoas, o Círculo foi escola, palco, espaço de convívio, lugar de vida. Ao reconhecê-las, estamos a reconhecer também um tempo da cidade e um modo de viver a cultura que atravessou gerações.
A Assembleia aprovou outras distinções de maior relevo. Quem foram os homenageados?
A atribuição das Medalhas de Honra do Círculo é sempre um momento especial, porque distingue trajectos que se confundem com a própria história da instituição. Este ano reconhecemos três associadas: Marília Bertilina Nogueira Picoto, Marília Belo Oliveira P. Mónica e Maria Orlanda Narciso Ramos. Todas elas iniciaram actividade no Círculo muito jovens, participaram em várias valências e mantiveram uma ligação contínua durante mais de meio século. São exemplos de entrega, de persistência e de amor por esta casa.
A Assembleia Geral aprovou ainda seis Sócios Honorários: Mário Maria Gomes Marcos, Nuno Ferreira da Costa Domingos, Manuel D’Almeida Coelho, Maria Fernanda de Jesus Narciso, Helder João Cabral Santos e Augusto Pinto Silva. Estas distinções reconhecem contributos decisivos no teatro, na música, na formação e na preservação da memória. Alguns destes nomes são figuras centrais do teatro amador da região; outros deram décadas à Orquestra Típica ou ao Coro; outros ainda foram fundamentais na organização e manutenção das valências.
O Círculo tem uma longa tradição de deslocações artísticas. A organização dessas viagens é fácil, considerando a missão de democratizar a cultura e a dependência de apoios externos?
As deslocações fazem parte da identidade do Círculo. Quer no teatro, quer na música ou no canto, sempre tivemos uma forte componente itinerante. Isso significa transportar equipamento, cenários, instrumentos, figurinos, e envolve uma logística que nem sempre é visível para o público. É exigente, mas é a nossa missão: levar arte a lugares onde, muitas vezes, não existe programação cultural regular.
Felizmente, temos contado com o apoio das instituições locais e regionais, que reconhecem a importância de manter esta actividade. O município, a União de Freguesias e alguns parceiros privados têm sido sensíveis a esta necessidade. Mas o apoio exige trabalho: as candidaturas ao Plano de Apoio ao Associativismo têm de ser bem fundamentadas, têm de demonstrar que a actividade tem impacto e que o investimento tem retorno cultural. Esse equilíbrio é permanente.
É também um trabalho de equipa. Os voluntários, os encenadores, os maestros, os músicos, os actores, todos colaboram para que uma deslocação aconteça sem falhas. É um esforço conjunto que reflecte o espírito associativo que nos define.
O edifício mantém características históricas, mas também algumas necessidades. Que obras continuam por realizar?
O edifício tem uma história longa e isso implica manutenção contínua. Uma parte significativa das intervenções necessárias está relacionada com infiltrações e desgaste de materiais colocados na ampliação feita há cerca de três décadas. As fissuras exteriores, provavelmente resultantes de movimentações do terreno naquela altura, criam pontos vulneráveis onde a água acaba por entrar. Temos trabalhado para identificar as causas e intervir de forma gradual, consoante as possibilidades financeiras.
Outro problema estrutural é o estado das janelas da ampliação. Muitas já não garantem isolamento térmico nem acústico. Substituímos algumas, mas ainda há muito por fazer — e trata-se de um investimento significativo. Depois, temos a questão da climatização: no Teatro Taborda, o frio no Outono e no Inverno afecta ensaios e espectáculos; na sala polivalente, o pé-direito elevado e a dimensão do espaço tornam-na difícil de aquecer, o que condiciona o trabalho da orquestra e do coro.
Estas obras não são apenas melhorias. São condições necessárias para garantir bem-estar aos nossos grupos e para assegurar que o edifício se mantém funcional e seguro. É um processo faseado, mas absolutamente prioritário.
O Círculo reúne teatro, música, dança, artes visuais e biblioteca. Há alguma área que considere pilar essencial da actividade?
Todas as áreas são essenciais porque a força do Círculo está precisamente na diversidade. Não somos apenas um grupo de teatro, ou apenas um coro, ou apenas uma academia de dança. Somos um conjunto de valências que coexistem e se reforçam mutuamente. É essa natureza multifacetada que distingue o Círculo de outras estruturas culturais.
A Biblioteca Guilherme de Azevedo e o Arquivo Histórico desempenham um papel particularmente relevante: guardam documentação antiga, correspondência, actas, programas, fotografias, partituras, cartazes. Preservar este acervo é preservar a própria identidade da instituição e da cidade. O protocolo com o Arquivo Distrital permitiu digitalizar parte deste espólio, facilitando o acesso e protegendo documentos frágeis.
A complementaridade entre as valências cria uma dinâmica muito rica. Há actores que começaram na dança, músicos que passaram pelo teatro, jovens que chegam pela arte e ficam pelo convívio. Esta mistura de gerações e disciplinas é, talvez, o maior património imaterial da casa.
A dança tem um peso particular no seu percurso. Como concilia essa dimensão com o exercício da presidência?
A dança fez sempre parte da minha vida e foi através dela que entrei no Círculo. Ensinar dança continua a ser uma paixão, mas conciliar esse trabalho com a presidência tem sido possível graças ao espírito de equipa. Somos três professores e existe entre nós uma cooperação muito sólida. Quando preciso de sair da sala para tratar de um assunto da direcção, sei que posso contar com essa colaboração.
A minha presença na direcção já vem de longe, por isso conheço bem o funcionamento interno. A presidência acrescenta responsabilidades, mas não altera aquilo que me liga à dança. Continuo a dar aulas, a acompanhar projectos e a estar atento à evolução dos alunos. Houve, naturalmente, momentos em que gostaria de estar mais disponível para iniciativas específicas, mas o equilíbrio tem sido sustentável.
Falou da modernização da base de dados e da comunicação. Que estratégias têm para aproximar o Círculo dos mais jovens?
A modernização digital é uma necessidade. Temos consciência de que parte do público mais jovem vive sobretudo nas redes sociais e que é através delas que se informa sobre actividades culturais. Por isso, reforçámos a presença no Instagram e criámos uma conta institucional com acesso centralizado, garantindo que não se perde quando há mudanças de direcção.
O Facebook continua a ser útil para públicos mais adultos, mas tem limitações. O grupo “Amigos do Círculo” é dinâmico, mas o objectivo é recuperar o pleno acesso à página institucional para consolidar uma comunicação mais formal e contínua. O ideal é que todos os canais funcionem de forma articulada.
A base de dados dos sócios é outro instrumento central. Não é apenas uma questão administrativa; é também uma ferramenta de aproximação. Ao sabermos quem são os nossos associados, como contactar, como divulgar informação e como facilitar pagamentos, estamos a fortalecer a comunidade e a criar condições para envolver novas gerações.
Já é possível adiantar alguns momentos previstos para a próxima temporada?
A programação está desenhada para manter o ritmo habitual e reforçar a participação das nossas valências. As conferências, as actividades ao ar livre e os concertos continuam a ocupar um lugar importante, e há projectos que queremos integrar em datas simbólicas da cidade.
Pretendemos também assinalar um marco da Orquestra Típica Scalabitana, sublinhando a sua longevidade e importância no panorama musical local. A Galeria continuará com exposições regulares, permitindo o encontro entre artistas e público, e muitas actividades estão ainda em fase de calendarização, o que é natural nesta altura do ano.
A programação é viva, ajusta-se às disponibilidades das secções e às oportunidades que surgem. Mas a linha orientadora mantém-se: oferecer à cidade uma temporada diversificada e coerente.
O Círculo está implantado no centro histórico, uma zona que enfrenta desafios. Que papel pode desempenhar na sua revitalização?
O simples facto de o Círculo estar de portas abertas contribui para revitalizar o centro histórico. A zona enfrenta desafios conhecidos — a desertificação habitacional, o fecho de comércio tradicional, a deslocação da vida urbana para outras áreas — mas o Círculo tem resistido a essa tendência. Aqui há movimento diário: aulas, ensaios, reuniões, espectáculos, exposições. Essa vida constante cria circulação de pessoas e dá outro ritmo ao bairro.
A demolição do edifício que anteriormente tapava a vista do Teatro Taborda tornou-nos mais visíveis e aproximou-nos de quem circula nas Portas do Sol. A colocação da lona exterior reforçou essa presença. Ainda assim, sabemos que há uma parte significativa da população que não conhece bem o Círculo, sobretudo quem vive em zonas mais recentes da cidade. É por isso que insistimos em manter programação regular: a cultura ajuda a aproximar pessoas e a dar sentido ao espaço urbano.
O que gostaria de ver concretizado até ao final do mandato?
Os objectivos são colectivos. A direcção trabalha como equipa e é assim que definimos prioridades. Mas há, claramente, duas frentes essenciais: melhorar as condições físicas do edifício e consolidar a base de dados dos sócios.
A obra nas janelas, a resolução de infiltrações e a climatização dos espaços são intervenções estruturais. Não se trata de melhorar estética; trata-se de garantir que as valências trabalham em condições adequadas, sobretudo no Inverno, quando o frio afecta ensaios e aprendizagem.
A base de dados é igualmente fundamental. Uma instituição com a história do Círculo precisa de um registo actualizado, coerente e funcional. Isso facilita comunicação, gestão, transparência e continuidade.
O importante, acima de tudo, é que o Círculo permaneça sólido, com capacidade para enfrentar desafios futuros.
Como imagina o Círculo daqui a dez anos? Que legado gostaria de deixar?
Não penso em legado pessoal. Esta casa não pertence a um presidente, pertence a todos os que a construíram e a todos os que nela participam. O meu compromisso é simples: deixar o Círculo tão vivo e tão íntegro quanto o encontrei.
Daqui a dez anos imagino o Círculo fiel a si próprio: um espaço onde se aprende, onde se cria, onde se convivem gerações, onde se preserva memória e se abre caminho ao futuro. Um lugar onde crianças, jovens e adultos encontram um primeiro palco, uma primeira aula, uma primeira experiência artística. Um lugar onde a cultura tem casa. Se garantirmos isso, teremos cumprido a missão.

