Enquanto o Mundo em redor parece desabar, o Correio do Ribatejo, completa mais um aniversário. Diferente este ano, com certeza, mas em que os valores e sentimentos persistem.
Em 129 anos de existência viu passarem criações e extinções de regiões, surgirem aparições e guerras mundiais, salazarismos e marcelismos, primaveras de abril, processos revolucionários, crises económicas, dividas públicas obscenas, inusitados êxitos desportivos e bem dispensáveis pandemias.
E o Jornal continua a ser um Fórum de opinião; de alguma maneira exterior às lógicas da influência autárquica e empresarial. Da persistência, dominante, do adequado e do simpático.
O que permite que, hoje, como homenagem ao mesmo, se apresente aqui um texto de opinião algo incómodo e, admita-se, pouco afetivo.
Texto que versa a maneira como alguns sectores da sociedade moderna (portuguesa e não só) vêm lidando com a situação epidémica em presença. E as suas envolvências.
Começando por uma recente entrevista a uma docente universitária, por parte da RTP, acerca da eventual opção por determinados doentes em detrimento de outros afetados pelo Covid-19 em situações de última instância; uma espécie, se quisermos, de eutanásia seletiva. Mais do que aquilo que foi dito, avulta o facto de tal ser apresentado, de alguma forma, como coisa natural e, dir-se-á, normal.
E continuando com uma recente notícia (que marcou os respetivos noticiários, num destes dias) relativa à morte de um adolescente de 14 anos.
Tudo isto, numa epidemia que tende a privilegiar os mais idosos enquanto grupo mais vulnerável. Afinal, os 19 que morreram no mesmo dia e os 27 que faleceram no dia anterior, eram essencialmente idosos.
Tudo isto se projeta numa maneira de entender as coisas, no mínimo, perversa. A de que, nesta situação epidémica, a vida se mede por diferentes escalas de valor. Numa sociedade vocacionada, já, para a produção e consumo (logo tendente a desvalorizar quem já não é laboralmente ativo), este é um aspeto que se tende a incrementar, com todas as consequências previsíveis daí decorrentes.
Não é esta, esclareça-se, a minha forma de ver as coisas. E se um médico, numa situação extrema tiver de optar (se tiver mesmo) por um doente em detrimento de outro, não só apenas razões terapêuticas poderão assistir a tal, como nunca, se devem apresentar (mesmo que implicitamente) como determinantes, razões etárias ou similares.
Dito de outra maneira (numa situação que se espera não acontecer) serão sempre as condições avaliáveis de sobrevivência que devem presidir à decisão. Em que a questão da idade deve ser apenas um dos itens a considerar.
Até por que todos estamos de passagem. Mais rápida ou mais lenta. De término, previsivelmente, mais próximo ou mais afastado.
Normalmente, quando tenho este tipo de desabafos quase sempre surgem, explicitas ou implícitas, questões deste tipo; então não devemos ter pena do adolescente que morreu e não teve oportunidade de gozar a vida?
Devemos, claro? Como dos dezanove (não adolescentes) que morreram nesse dia.
Aliás, poder-se-á dizer até, dezanove vezes mais pena!
Pois todos os Homens merecem o mesmo respeito e dignidade. Sejam os indivíduos velhos ou novos, suscetíveis de virem a viver mais ou menos tempo.
E quanto àqueles que são crianças ou adolescentes e morrem abruptamente sem ter oportunidade de continuar a viver a vida, lembro aqui as, estimadas, 8.500 crianças que morrem de fome todos os dias! Todos os “santos dias”. Das suas desgraçadas vidas!
Mais de três milhões por ano!
Num universo de oitocentos milhões de pessoas subnutridas. E de 2,2 biliões que sistematicamente passam fome. Todos eles, desde que nasceram.
Quando falamos de vidas lamentavelmente interrompidas, que não permitem chegar à vida adulta, lembremo-nos (também) destes.
Que morrem, literalmente, à fome. Coisa que nós nem sequer conseguimos conceber. Todos os dias. Todas as horas. Todos os segundos.
Que continuam a morrer. E, agora, ainda mais; embora ninguém fale deles.
Porque os países que os ajudavam (insuficientemente, esclareça-se) estão envolvidos em problemas próprios.
Outros valores internos mais altos se levantam. E a ajuda internacional acaba por ter de ser suspensa ou, pelo menos, diminuída.
O ideal seria que as necessidades dessas crianças pudessem, também, ser suspensas.
Que a sua vida miserável na busca recorrente e desesperada de algumas proteínas diárias para sobreviver, pudessem ser suspensas.
Mas não podem! E os milhares de mortos quotidianos, continuam a ser quotidianos, mas são, agora, ainda mais milhares.
De que ninguém se lembra. Remetidos que foram para as calendas do esquecimento.
No fundo, acaba por ser isto que, também, sustenta as atitudes de políticos como Trump ou Bolsonaro que, nos seus países, pretendem a todo o custo manter o funcionamento empresarial, mesmo que para isso tenham de optar pelo modelo catastrófico de enfrentar a doença: admitir a perda de umas centenas de milhares de indivíduos: uma espécie de danos colaterais admissíveis, desde que se consigam abreviar os efeitos na Economia.
Aliás, Trump, acaba precisamente de admitir isso ao afirmar que se os Estados Unidos saírem da pandemia com 100 mil a 200 mil mortos terá sido um êxito!
A maior parte deles, idosos, naturalmente, Portanto já não economicamente produtivos e, mais ainda, correspondendo, afinal, a um encargo para o Estado.
O que nos faz (neste encadear de ideias em corrente) refletir acerca de sistemas democráticos que permitem a eleição de tais personagens.
Eleitos pelos detentores do dinheiro e do poder. Que subsidiam campanhas e compram votos por processos legais e ilegais; morais e imorais. E permitem, assim, potenciar popularidades próprias e estigmatizar popularidades alheias.
Afinal, as popularidades também se compram!
Elegendo, portanto, políticos subordinados aos poderes que os apoiaram. E que agora, naturalmente, vêm cobrar dividendos.
Pessoas sem qualquer sensibilidade humanística. Para quem serviço público é mero chavão. Para quem os cidadãos, correspondem a meros fatores de produção.
E sobre os quais, hoje como ontem, neste recanto do Mundo, um Jornal centenário e independente permite dar voz ao olvidado. Ao esquecido. Ao menorizado.
Mesmo que, para tal, nos afastemos do politicamente correto.

Aurélio Lopes
Aurelio.rosa.lopes@sapo.pt
aesfingedebronze.blogspot.com

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