Crónica da Confraria Ibérica do Tejo:

O sábado 9 de Junho anunciava que S. Pedro não tinha alterado o seu humor da véspera e que o dia não iria ser suave e prometedor. Não era nada que não esperássemos, habituados como estamos a receber em todos os Cruzeiros, sem excepção, a “dádiva do Céu” em forma de chuva mais ou menos intensa. Este é um ponto practicamente assente no Programa anual dos Cruzeiros, só que não o podemos passar a escrito porque não é ortodoxo. Há dias parodiávamos sobre o assunto e também especulávamos um pouco a tentar antecipar em que etapa, ou etapas, seríamos visitados pela nossa fiel amiga. Alguém então disse que devíamos incluir uma cláusula no Programa oficial do Cruzeiro que considere a chuva como obrigatória, e que a organização não se responsabiliza pelas molhas monumentais que os cruzeiristas possam apanhar no percurso.

Indo mais além – com a espiritualidade que se lhe reconhece, por vezes levada ao extremo -, o Armindo Leite sugeriu que a padroeira dos Bombeiros de Portugal poderia ser Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo porque, segundo ele, é certo que quando sai da capela da Praia da Vieira de Leiria para acompanhar os Cruzeiros traz obrigatoriamente a chuva a acompanhá-la. Com este raciocínio, e ainda segundo ele, bastaria um telefonema à Senhora para enviar chuva e acudir a um incêndio. Paganismo ou não o certo é que o Armindo, como sargento-mor da Marinha de Guerra e pessoa habituada a cenários difíceis, não deixa de se emocionar quando assiste às genuínas manifestações de fé das pessoas que acorrem ao Tejo para acolher e saudar a Nossa Senhora. A evocação da Senhora nestas circunstâncias dos incêndios é um eufemismo bem-disposto a que recorre sempre que apanha com aquelas molhas que “chegam aos ossos” e que se transformaram numa “imagem de marca do Cruzeiro”.

Seja tudo isto verdadeiro ou falso, o que esperávamos na manhã de 9 de Junho era tudo menos um trajecto suave e soalheiro no decurso da 6ª etapa do VI Cruzeiro, entre Azinhaga e Caneiras. Se as expectativas menos optimistas – e as profecias mais ou menos disfarçadas – se iriam ou não concretizar, só o desenrolar dos acontecimentos o poderia provar.

Pelo sim pelo não prevenimo-nos antecipadamente com plásticos transparentes para podermos proteger a Imagem se, ou quando, a chuva aparecesse.

Partimos da Azinhaga no mesmo ponto em que tínhamos deixado os barcos na véspera. No momento em que partíamos, a Imagem foi levada para a praia do Tejo no mesmo tractor (com reboque) que a tinha trazido no dia anterior. O nível das águas no Almonda era aceitável e podíamos aproveitar a corrente favorável para navegar sem problemas. No entanto cedo nos apercebemos que nalguns pontos de forte corrente não era possível manobrar o barco mesmo com vara, pelo que tivemos que levar os barcos à mão, lançando-nos à água e segurando as embarcações para não serem atiradas contra as pedras. Tal como na véspera para subir o Almonda, agora acontecia-nos o mesmo na descida, ou seja, fomos ao banho perto da desembocadura do Almonda com o Tejo, para evitar sermos empurrados para dentro da farta folhagem dos salgueiros, ou lançados contra as pedras.

Lá conseguimos chegar à praia do Tejo com mais do que menos dificuldades, embora com o atraso de cerca de uma hora, o que sabíamos ser passível de novos atrasos em paragens a jusante. Preparámo-nos para ir à frente, por terra, avisando as pessoas que aguardavam nas margens do que se estava a passar e apelando à sua compreensão, tal como já nos tinha acontecido noutras paragens de etapas anteriores.

Partimos em direcção ao Patacão com um dia frio a anunciar chuva, como se estivéssemos no fim do Inverno ou no princípio da Primavera, e não quase a anunciar o Verão como era o caso, coisas das alterações climáticas e não tanto das interferências divinas.

Chegámos ao Patacão e à sua maravilhosa praia fluvial, que sabemos estar carênciada de uma grande intervenção para poder voltar a acolher os visitantes que gostam do Tejo e do fascínio de uma das mais belas praias fluviais do País, tão bela quanto abandonada.

Na praia do Patacão o Cruzeiro foi recebido pelo presidente da Câmara, por um representante da Junta de Freguesia e por inúmeras pessoas. Sabendo da dificuldade que constitui a deslocação da vila até à margem do Tejo, pela distância, considerámos muito positiva a recepção popular. Pudemos conviver e não contivemos a satisfação por estarmos a sentir aquele momento.

Para celebrar aquele momento, a Câmara e a Junta de Freguesia presentearam os cruzeiristas com doces tradicionais de Alpiarça – as famosas ferraduras – e um vinho licoroso abafado de elevada qualidade, da cooperativa Agroalpiarça. Para quem não sabia ficou a saber que nesta terra há fortíssimas tradições de doçaria tradicional, que remontam ao fim do século XIX e que há igualmente um enorme e precioso saber-fazer na arte dos licorosos abafados, havendo especialistas que confirmam – sem qualquer exagero – que estes vinhos generosos não são inferiores em qualidade ao vinho do Porto. Os presentes provaram, gostaram e alguns dos cruzeiristas interessaram-se em saber como podiam adquirir quando em viagem passassem por lá.

Antes de partirmos para a paragem seguinte, Vale de Figueira – que fica praticamente em frente ao Patacão, na outra margem do Tejo – o Armindo Leite aceitou que uma jovem conterrânea, de nome Amália, pudesse embarcar e juntar-se ao grupo dos cruzeiristas. A jovem está a concluir o seu mestrado numa área que se foca no desenvolvimento integrado ribeirinho precisamente na região de Alpiarça e concelhos limítrofes. Seguiu viagem a bordo de um dos botes dos fuzileiros.

O Cruzeiro retomou o seu caminho de uma forma tranquila quando, de repente e quase sem aviso prévio, se se pode assim dizer, desabou uma chuvada diluviana – mas mesmo diluviana, confessou o Armindo – que acompanhou todo o trajecto até Vale de Figueira. Não deu hipóteses a ninguém, à excepção do José Varino que tinha “tomado providências em terra”, como pescador experiente e prevenido. Em Vale de Figueira – na Barreira da Bica – chegaram encharcados até aos ossos, mas chegaram!

Cumpria-se assim uma vez mais a tradição. Em todos os Cruzeiros, há pelo menos um dia em que ninguém escapa à abençoada molha. É fatal!

No nosso Cruzeiro a chuva quando aparece é magnânima porque não deixa ninguém de fora e oferece banhos integrais. Os timoneiros das embarcações testemunharam que sentiram a água escorrer por todo o corpo, atingindo todas as partes, como se tivessem mergulhado numa piscina ou se se tivessem atirado todos vestidos ao Tejo para tomar banho. Pediram-nos para que os seus testemunhos fossem registados em Crónica, para que os futuros cruzeiristas possam participar estando devidamente avisados que vão partilhar estes autênticos e democráticos banhos colectivos, porque não escapa ninguém. O José Varino chegou sequinho, como ele próprio afirmou na sua expressividade genuína da borda-d’água, mas para o Armindo o José Varino “não conta porque joga noutra equipa”, ou seja, constitui a excepção que confirmou a regra. As molhas colossais dos Cruzeiros são para todos e para todas, pronto!

A novíssima Amália chegou completamente encharcada, parecia um pintainho. É uma jovem muito jovem, com um sorriso do tamanho do mundo e um brilho que a todos cativa. Mesmo ela parecia ter por momentos empalidecido, tal a quantidade de água que apanhara de chofre por vir no bote de uma das equipas de fuzileiros, no que foi um inesquecível baptismo de rio em todos os sentidos. Quando desembarcou terão pensado que teria caído à água tal era o seu estado, mas não caíra, como explicou. Emprestaram-lhe roupa seca que a aconchegou, trocou o que foi possível trocar e juntou-se às inúmeras pessoas que ali aguardaram o Cruzeiro e que não arredaram pé apesar da fortíssima chuvada, constituindo esta paragem uma das mais significativas de sempre na Barreira da Bica, lugar na foz do rio Alviela, em Vale de Figueira, tanto mais significativa quanto concretizada naquelas difíceis condições.

Fomos muito bem recebidos pelos representantes da Junta de Freguesia e da Assembleia de Freguesia da União local e, qual magia, a chuva parou de um momento para o outro. As pessoas que ali estavam e que também elas resistiram ao dilúvio – embora resguardadas pelas árvores densas e pelas barreiras naturais do terreno, daí o nome Barreiras da Bica – fizeram questão de nos saudar e de connosco conviver, num ambiente acolhedor embora enlameado. O que é certo é que o calor humano ali existente e a atmosfera de convívio social nos fizeram alhear de tudo isso. Os escuteiros cantaram e encantaram toda a gente e nessa altura foi possível apresentar a pessoa mais preciosa que vinha connosco, a Sra. Maria de Sousa, avieira da Azinhaga e que fez questão de acompanhar o Cruzeiro desde a sua terra natal até ali. A particularidade é que tem 94 anos e ainda pesca no rio. As pessoas perguntavam-se como é possível existir uma tão grande força de espírito e uma natureza tão brilhante concentradas numa única mulher, espelho de virtudes para várias gerações a quem ofereceu sempre lições de vida, de trabalho e de humildade. São exemplos de vida como a desta Senhora que devem ser dados a conhecer para nos servirem de exemplos. O Tejo tem-lhe dado forças e energias para se manter com a vitalidade que em todo o lado evidencia.

Vale de Figueira e os seus responsáveis autárquicos, assim como a sua comunidade, capricharam em receber o Cruzeiro com o melhor que se pode fazer quando recebemos convidados na nossa casa, ou seja, com o que temos de melhor. Foram servidos grelhados, bebidas a acompanhar, bolos… e muita amizade e proximidade entre todos os presentes na Barreira da Bica. Um dos organizadores do Cruzeiro é daquela acolhedora terra e tinha ali a sua família mais chegada. Teve oportunidade para falar e agradecer publicamente toda a hospitalidade recebida e a dado momento não pôde conter a emoção provocada pelo momento e pelo local. Foi um momento tocante para todos, que ajudou a estreitar laços de proximidade.

As pessoas de Vale de Figueira esmeraram-se para apresentar o melhor de si na recepção ao Cruzeiro na Barreira da Bica, na foz do rio Alviela. Eram tantas naquele local que por vezes era difícil passar entre elas, apesar da chuva que caía e do terreno enlameado que dificultava um pouco os movimentos. Estamos a falar ali da maior concentração de pessoas desde que o Cruzeiro visitou aquele lugar, ou seja, desde e primeira edição.

Quando preparávamos a despedida surgiu um sol radioso, vá lá saber-se porquê. Houve quem considerasse como um sinal do cosmos, houve quem acreditasse em coincidências, há tanta coisa que dizem nestas circunstâncias que é melhor ficar pela evidência do aparecimento de um sol que nos quis dizer que aquele local é mágico. Tivemos oportunidade nesse momento fugaz de apreciar a beleza ímpar da foz do Alviela mas, ao mesmo tempo, tivemos a visão de um rio assoreado, muito assoreado e abandonado, que nos fez lembrar outros rios da bacia hidrográfica do Tejo. Podemos por isso interpretar o aparecimento do sol com um outro sentido metafórico, como o momento em que a luz que apareceu nos quis mostrar a forma como os homens andam distraídos e descuram o que é essencial à vida presente e futura para o planeta, para todos nós, que é a água. Tratar dos cursos de água é uma exigência para as actuais e para as próximas gerações, se queremos deixar para os vindouros um legado permanente de que nos possamos orgulhar.

À partida da Barreira da Bica o sol, tal como aparecera, rapidamente nos acenou com a mão a anunciar a despedida. Quando a bateira com a Imagem saiu na foz do Alviela e entrou no Tejo já as nuvens anunciavam que a luz que surgira não tinha sido mais do que um fogacho de despedida.

No trajecto para a Ribeira de Santarém, junto à draga do areeiro estava uma bateira que nos aguardava, que para ali se tinha propositadamente deslocada e que não mais abandonou o Cruzeiro. Quando estávamos perto da Ribeira vieram ao nosso encontro os jovens da canoagem do Clube de Canoagem Scalabitano da Ribeira de Santarém. Eram inúmeros e foi uma enorme surpresa ver a bateira com a Imagem ser rodeada pelos canoístas, em momentos de enorme beleza plástica e espiritual. Este Clube de enorme importância para a educação dos jovens da Ribeira é uma associação sem fins lucrativos de apoio à comunidade, fundado em 1991, com sede na Casa da Portagem, na Ribeira de Santarém. Tem como principal objectivo responder às necessidades lúdicas e ocupacionais dos jovens da Ribeira de Santarém através da prática desportiva, sendo a sua actividade principal a canoagem, nas vertentes de lazer e de competição.

Foi assim que, todos juntos, se chegou à Ribeira de Santarém sendo o Cruzeiro aguardado por uma número muito significativo de pessoas. A Câmara Municipal fez-se representar pela vereadora da cultura, Inês Barroso, num gesto que consideramos de especial significado e que saudamos.

Por coincidência, e à semelhança do que já tínhamos presenciado na Barreira da Bica, também aqui na Ribeira de Santarém se assistiu à mais significativa recepção ao Cruzeiro por parte da comunidade ribeirinha desta localidade, outrora um importantíssimo entreposto fluvial, o mais importante do Tejo. A história da Ribeira daria um livro para ser divulgado nas Escolas, tal a relevância do seu passado e a sua importância para o devir dos povos ibéricos. É uma pena ver o estado de degradação a que chegou no presente este outrora brilhante entreposto tagano. Se o seu importantíssimo património fosse devidamente restaurado, estaríamos em presença de um local de referência para a região, para o País e para a península ibérica. Sonhamos que isso possa vir a ser possível num futuro próximo, para que o legado para as gerações futuras seja merecedor de encómios e para que a região beneficie desse valor hoje tão maltratado.

Presente na recepção esteve igualmente o Rancho Folclórico da Ribeira de Santarém, que desde sempre apoiou a ideia da realização do Cruzeiro e esteve presente noutras edições. Este Rancho foi fundado em 1972 e é um agrupamento que se dedica à pesquisa e à divulgação da tradição cultural da zona ribeirinha do concelho de Santarém. O seu trabalho tem sido rigoroso, sendo justamente considerado um dos mais representativos desta zona do Ribatejo e membro efectivo da Federação do Folclore Português.

A paragem do Cruzeiro na Ribeira de Santarém foi aproveitada para conviver e rever amizades antigas, estando presentes muitas pessoas com actividades ligadas do rio, não se podendo considerar como visitantes ocasionais. Havia igualmente um número muito significativo de embarcações vindas da aldeia avieira das Caneiras – várias delas engalanadas -, que se quiseram associar ao cortejo fluvial a partir da Ribeira e até àquela aldeia. Podemos testemunhar que, na altura em que partiu, o cortejo contava com 31 (trinta e uma) embarcações.

A partir da Ribeira, a Imagem passou da embarcação do José Russo – que a trouxera da Azinhaga – para uma embarcação das Caneiras, simbolizando nesta passagem de testemunho a regra de ouro do Cruzeiro, que é a de entregar a organização deste evento às comunidades locais, como forma de as valorizar e homenagear.

A caminho das Caneiras houve tempo para que a bateira do Armindo – que transportava a avieira Tina Leonor Simões, que acedera ao Cruzeiro na praia do Patacão – fizesse uma paragem no sítio onde outrora existiu a aldeia de Alfange (hoje desaparecida), local onde ela e os seus pais nasceram e habitaram. Feita a paragem, a nossa amiga lançou ao Tejo um ramo de flores, tal como fez em anos anteriores, simbolizando nesse gesto a evocação dos seus ancestrais e a merecida homenagem por aqueles que souberam dar-lhe a educação que fez dela uma mulher preparada para enfrentar os desafios da vida. Como em anos anteriores, o timoneiro da bateira Armindo Leite emocionou-se naquele momento. Disse-nos que como marinheiro da marinha de guerra foi treinado para neutralizar emoções mas que, naquelas condições, lhe é sempre muito difícil ficar indiferente.

A chegada às Caneiras foi organizada por uma associação daquela típica aldeia avieira e por representantes da União de Freguesias. Os cruzeiristas foram presenteados com uma refeição reparadora, que tão bem soube a quem tinha enfrentado condições tão difíceis como foram as desta etapa. Só por estes momentos, proporcionados pela comunidade avieira das Caneiras, valeu bem todo o esforço despendido ao longo do difícil percurso e das duas incríveis molhas que tivemos que aguentar. A sopa de peixe feita à maneira das Caneiras tudo compensou.

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