Encontro-me mais uma vez na China. Dos 30 anos passados em território chinês, 7 foram na sua capital enquanto Professor da Universidade de Pequim, e os restantes no território chinês administrado por Portugal, Macau, hoje Região Administrativa Especial na China. Foi interessante viver neste país de contraste, onde as tradições milenares de uma complexa cultura, convive com uma tecnologia de ponta, onde, por exemplo, em cada cinco dias faz nascer um edifício “arranha-céu”.
Mais uma vez constato a sua pujante e emergente economia, que leva esta China a “tomar conta” da conjuntura mundial, pela força do seu crescimento económico e pela sua influência geopolítica crescente, depois de um longo passado de muitos altos e baixos. O atual cenário justifica-se pela sua capacidade produtora, contudo, esta não surge por acaso, advém da sua história multimilenar onde dificuldades, sempre presentes, foram suplantadas pela imaginação, pela persistência e crueldade, moldando uma cultura criativa. Esta, resistindo às influências estrangeiras, tem-se pautado por um certo conservadorismo cultural, que ainda hoje influencia o modo de viver e pensar do povo chinês.
Porque diferentes nos princípios que orientam os seus gestos, desde o seu surgimento como Nação, importa saber, meditar e estarmos atentos, à sua apaixonante História. Sendo um dos países de mais antiga civilização e possuindo fontes escritas de quase cinco mil anos, e porque a maioria pouco sabe à cerca do passado da nação chinesa e do seu contributo farei aqui no Correio do Ribatejo, repartido por algumas edições, um breve olhar retrospetivo no ponto de vista histórico, técnico e científico, e procurarei ligar as pontas do laço que permitiu a nós portugueses viver juntos, no seu território, por quase cinco séculos.
Iniciemos com a origem do povo chinês, alertando desde já que escrever sobre personagens que viveram num período anterior aos registos escritos e cujas histórias chegaram até aos nossos dias, oralmente transmitidas em forma de mitos e só muitos milénios depois registadas em livros por historiadores e paleontologistas, traz alguma fragilidade para uma coerente imagem. Contudo tentemos.
O hominídeo mais antigo conhecido na China, o “yuanmounensis”, fóssil do “homo erectus”, descoberto em Yuanmou (Província de Yunnan), data de há 1.700 000 anos. Há 500. 000 anos encontramos em Lantian (Província de Xian) o “sinanthropus lantianensis” em dois momentos importantes da evolução da humanidade: controla já o fogo, fabrica instrumentos e sabe caçar, elementos decisivos na evolução física e psíquica, pois permite a fortificação da existência do grupo e as primeiras regras da vida comunitária. O “homo sapiens Pekinensis” encontrado em Zhoukoudian, Pequim, há 38 000 anos, já é uma espécie inteligente (“homo habilis”), dominando a fala, fabricando variados instrumentos, utilizando vestimentas, pinturas e ornamentos corporais, características básicas do homem actual.
Para Sima Qian (145-86 a.C.), o primeiro dos grandes historiadores da China autor do “Shiji” (Registros Históricos), as margens do Rio Amarelo foram o berço da civilização chinesa. Referem os mitos que esta civilização foi criada por Nu Wa a deusa criadora dos humanos, e pelo seu irmão e marido Fu Xi, pai da civilização e das inovações. Estes trouxeram o conhecimento das culturas existentes no Paleolítico para a Era do Neolítico iniciando esta civilização, tornando-se Fu Xi, também conhecido por Tian Huang Shi, o Imperador Celestial no seu primeiro soberano. Eles ensinarão à humanidade as formas de sobrevivência e evolução, como o casamento, a domesticação dos animais, as artes, a escrita, os rituais, principalmente o culto pelos antepassados, algo vital para uma sociedade harmoniosa, e a adivinhação, ferramenta para orientação espiritual e pessoal. Esta sedentarização à beira-rio será o principal fator que influenciará a organização política da China, pois tornou-se prática corrente inicial a escolha da chefia ser feita por mérito. E tal mérito vinha no saber controlar a natureza do rio, dominar as destruidoras enchentes que assolavam aquelas regiões abrindo canais e construindo diques, logo, um grande desafio que credibilizaria o governo dos homens, o “zhi shui”, isto é, “governando das águas”. Há 7 000 anos surgirá a 1ª cultura sedentária – a “Yangshao”. Ocupam-se as suas gentes na agricultura (arroz), na sericultura (criação do bicho-da-seda), na cerâmica (principalmente na fabricação de recipientes de cozinha e vasos para sacrifícios) e criação de gado. O grande volume de transações leva ao aparecimento da “moeda concha”, algo que irá perdurar milhares de anos. Nesta sociedade não havia classes, mas tinham um chefe para assuntos administrativos; os assuntos importantes eram discutidos coletivamente. Entre 5.000 e 4.000 anos a.C., quando da revolução neolítica, surgirá a 2ª cultura, a “Longshan”. Dispersam-se as povoações, agora muito populosas, pela região costeira do Leste e Noroeste. A melhoria do nível de vida e a excelência da produção – já se trabalha em cerâmica, pedra, osso, jóias de jade, marfim e logo depois a seda, (um luxuoso tecido, com punição de morte para quem revelasse o segredo), fará surgir a propriedade privada e um ordenamento por classes. Anima-as o “feng shui”, um propósito misto de magia, superstição, filosofia e sentido estético do homem em relação ao meio, visando atingir a felicidade usufruindo de bons auspícios. Pela importância que se atribui às placas de “Jiaguwen” (100 000 peças com escrita pictográfica datadas há mais de 1.600 a.C. e conhecidas por “inscrições divinatórias em osso”), defendem os historiadores chineses que é neste período da “cultura Longshan”, que inicia a verdadeira história da China.
A expansão territorial e a divisão da sociedade em classes sociais darão azo ao aparecimento de escravos. Surgirão assim as primeiras dinastias do Regime Esclavagista: a Dinastia Hsia (2070-1600 a.C.), que se diz originária de “ancestrais soberanos”, e onde o rei Yu, o Grande, entronado por Tian Huang Shi o Imperador Celestial, será a ponte entre o passado lendário e uma dinastia que veio a existir de facto, e que iniciará o processo de ocupação do território chinês sendo um exemplo de dedicação e sacrifício. Yu assume a liderança das tribos das planícies centrais, começa a unificação da língua, hábitos e costumes, modos de produção e forma de vida. O ultimo rei dos Xia, Jie, porque tirânico e cruel é derrotado por Tang, um líder virtuoso que com a “ajuda celestial”, conduziu a revolta do povo pois o Céu reprovava-o; iniciava o princípio de “satisfação da moralidade requerida pelo Céu”, o “Li”, nada mais que a obediência a um conjunto de normas que regula a moral do ser humano e o modo e trâmites de sacrificar ao Céu – e que o Rei, que tem um “mandato do céu” na terra, tem de ser entre a multidão, o mais apto e um exemplo de moralidade; fora dela seria renunciado pelo Céu e substituído de imediato por outro.
Com Tang vem a Dinastia Shang (1600-1046 a.C.), que desenvolverá o uso do bronze, o uso dos carros de guerra, iniciará a escrita e, porque importante para as sociedades agrícolas, instituirá um calendário quase preciso a partir de observações astronómicas dos ciclos solares e lunares, incluindo já uma “semana” de dez dias e um ciclo de 60 dias. A diferenciação das classes sociais, agora mais acentuada, vai substituir o predomínio do costume que regulamentava as penas na anterior dinastia, o “Yu Xing”, originando agora o direito penal chinês o “Tang Xing”, onde o “Regime das Cinco Punições”, o “Wu Xing Zhi Du”, com cinco severas e cruéis penas, iniciando com marcações a ferro quente, seguindo-se amputações finalizando na pena da morte (“Da Pi”), de variadas formas, quantas vezes para os escravos como acompanhamento ao falecimento do dono, qual objeto funerário. Sabe-se que de uma só vez foram sacrificados 2 656 escravos.
Por último surgirá a Dinastia Zhou (1046–256 a.C.) a mais longa da História da China, que pela sua enorme extensão, desenvolvimento económico e aumento demográfico, será palco de revoltas e fragmentações, onde se disputam territórios e populações, provocando assim grandes mudanças sociais que a levará a instituir o “feng jian”, o governante gestor, articulando e mediando as relações entre vários reinos feudais por contratos de vassalagem.
Estas dinastias estabeleceram desta forma as bases sociais, económicas e políticas que caracterizaram o período de formação da sociedade chinesa. Embora muitas centenas de anos Antes de Cristo (a.C.), foi um período de inovações científicas, pensamento filosófico, descobertas e avanços tecnológicos significativos, assegurando um grande desenvolvimento na educação. É desta altura a concepção chinesa de pertencer a uma civilização única que se exprimirá no nome dado à sua terra, “Zhong Guo” (Império do Meio). Dos vários reinos surgidos na Dinastia Zhou no intervalo entre 551 e 221 a.C., disputando territórios e população, ganham destaque dois períodos: a época chamada “Primavera e Outono” (551-479 a.C.) e a época dos “Estados Guerreiros”. Da sua importância e contributo falaremos no próximo artigo.