Fazer justiça é muito mais difícil do que aplicar a lei. O direito paira no equilíbrio entre a certeza (que pressupõe imutabilidade) e a necessidade de adaptação (que implica, por definição, a evolução e, por conseguinte, incerteza). Este problema também pode ser declinado como um dilema entre a necessidade de certeza e a necessidade de justiça. Com efeito, as regras da lei pressupõem a sua adaptação às especificidades dos casos, ou evolução ou mudança quando a sua interpretação ou aplicação parece ser (é) injusta.

As pessoas querem duas coisas inconsistentes: que a lei seja certa e justa e que se ajuste aos tempos. É nosso dever ter ambos os objetivos em vista. Num mundo dominado por algoritmos, uma lei demasiado calculável significa uma lei cristalizada. Uma lei absolutamente calculável é uma lei onde o juiz é pressionado a homologar seguindo o fluxo de decisões passadas, produzindo automaticamente resultados que são sempre idênticos a si próprios – o chamado «efeito performativo». As consequências deste «conformismo judicial» não devem ser subestimadas.

Mas a tarefa dos juízes sempre foi diferente. De facto, o juiz tem desempenhado sempre – nos interstícios mais ou menos grandes deixados pelos legisladores, nas fissuras deixadas abertas pelas palavras da lei – uma atividade interpretativa destinada a garantir uma decisão justa, ou seja, «justa» no sentido de justa no caso concreto, sendo única, singular, distinta de outras anteriores ou respeitante a outros sujeitos.
Como observou Carnelutti, a justiça, para ser realmente justiça, é sempre «a justiça do caso concreto.»

O juízo humano é o único capaz de avaliar um facto muito específico, a fim de lhe conferir valor mesmo para além do que é expresso apenas no texto positivo e, através dos critérios interpretativos, pode tornar relevantes os interesses subjacentes, mesmo que não estejam explícitos ou completamente expressos no texto da regra, mas que sejam, no entanto, dignos de proteção à luz de todo o sistema das fontes de direito e dos princípios constitucionais, europeus e internacionais.

Fazer justiça inclui, entre muitas outras coisas, avaliar factos específicos a fim de lhes dar significados mesmo para além do que é expresso apenas nos textos positivos, e tornar relevantes os interesses subjacentes mesmo que não estejam explícitos ou totalmente expressos na formulação da regra.

Tal não implica que o juiz seja livre de «vaguear» para fora das fronteiras da lei. Não devemos subscrever um subjetivismo inaceitável e perigoso no raciocínio jurídico. Mas a elasticidade dos conceitos mencionados – «todo o sistema das fontes do direito», «princípios constitucionais» e outros afins – possuem a capacidade, ou a virtude, de integrar nas fronteiras da legalidade constitucional esse indeterminável sentido de justiça que, no fim de contas, recai sobre aquele que é chamado a julgar.

Apelando e mobilizando os valores mais amplos da justiça o juiz age sempre dentro do espaço da legalidade. De facto, podemos dizer que só assim é que se realiza integralmente o direito, na forma mais fiel.

Além disso, não devemos esquecer que esta margem de discricionariedade não se limita, de modo algum, às questões de direito, evidenciando-se igualmente a sua validade nas questões de facto. As questões de facto devem ser reconstruídas «também no terreno das narrativas dos indivíduos envolvidos, as quais estão carregadas de sentimentos, de emoções, de pontos de vista.» De facto, só vendo e ouvindo empaticamente (que é «um aspeto determinante dos seres humanos») se logrará dar corpo e substância aos clamores e desejos de justiça, prenhes de significados.

Estamos de facto conscientes de que o direito – por mais amplo que o entendamos – não é tudo, e que o que realmente conta é a qualidade de todo o tecido social que está na base, do qual o direito não é mais do que uma parte, e talvez nem sequer a mais importante.

Antunes Gaspar
Juiz de Direito, jubilado

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