O povo revela-nos com a maior singeleza uma sabedoria ancestral, a qual vem sendo transmitida de geração em geração num processo sempre valorizado por aquilo que se aprende com os pais e com os avós, e que se engrandece com a experiência pessoal adquirida ao longo da nossa própria existência.

As mais casuais circunstâncias da nossa vida poderão constituir lições de inegável valia se para tanto estivermos despertos, posto que, para aprendermos, teremos de estar compenetrados no que estamos a fazer, aplicando os ensinamentos anteriormente aprendidos, a que juntaremos a nossa própria perspicácia de modo a melhoramos a solução desejada.

Este saber popular, extraído dos ensinamentos da própria vida, está demonstrado em muitas das atitudes dos nossos antepassados, na apreciação da sua actividade, verdadeiramente esclarecedora da sua mundividência. Na vasta colecção dos adágios e provérbios temos o ensejo de constatar essa cultura imensa, manifestada em eloquentes sínteses como são os ditados populares.

“Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno”, assim o afirmavam os nossos avós desde tempos imemoriais, constatando o facto de nesta época do ano os dias começarem a “mingar”, ou seja, a terem uma duração solar menor, o que começa a notar-se em comparação com o mês de Julho, quando os dias solares são, de facto, mais prolongados.

“Dos Santos ao Natal, é Inverno natural”, eis outra verdade irrefutável, uma vez que em condições normais por volta Dia de Todos os Santos começa o frio a ser mais rigoroso e a precipitação atmosférica mais intensa, o que constitui, inquestionavelmente, as características mais marcantes do Inverno, apesar de ainda estarmos em pleno Outono.

“Ande o frio por onde andar, o Natal o vai buscar” – quem duvida deste ditado? Talvez ninguém, claro está, pois, o frio é uma constante do período natalício, o que justifica a tradição dos madeiros a arder na noite da Consoada e até a própria cena do nascimento de Jesus na manjedoura com a vaca e o burro a aquecerem o Deus Menino com o bafo da sua respiração.

O povo português é, de facto, muito proverbial, e temos de convir que o conhecimento dos provérbios constitui uma forma importante de transmitir conhecimento num tempo em que o analfabetismo grassava entre as camadas mais populares, pelo que o uso da oralidade como forma de ensinar é bem compreensível.

Nesta linha de entendimento, considero-me particularmente uma pessoa muito proverbial, pois tento aprender com cada um dos adágios que conheço, e devo confessar que nunca me dei mal com este saber. Um pouco à imagem do que fazia nas aulas de filosofia, tento sempre desconstruir cada provérbio para descobrir o significado de cada palavra ou o simbolismo de cada metáfora.

Entre os muitos provérbios que conheço, há um a que recorro com muita frequência, sobretudo nos tempos actuais em que convivemos com pessoas que têm a presunção de saber tudo e de tudo. Ensina-nos, então, o nosso povo que “Quem pensa que sabe tudo, nem com Deus aprende”! Este ditado tem um alcance e uma profundidade sublimes, e, de uma forma tão eloquente e sintética, avisa-nos contra a presunção daqueles que no alto da sua sobranceria nem enjeitam afrontar o filósofo que humildemente reconhecia que “Só sabia que nada sabia”.

O dia 1 de Novembro é, tradicionalmente, o Dia de Todos os Santos, no entanto para as gentes do povo trata-se, essencialmente, do dia do “pão por Deus” ou do “dia dos bolinhos”, como era hábito chamar-lhe a rapaziada mais jovem, numa relação directa com o facto de irmos de porta em porta pedir, exactamente, os bolinhos.

Esta tradição bem antiga estava profundamente arreigada nos costumes das comunidades rurais, que não obstante a pobreza em que viviam não deixavam de partilhar o pouco que tinham com as crianças que lhes batessem à porta a pedir o “pão por Deus”. Aliás, como nos ensina uma vez mais o povo – “Quem dá aos pobres, empresta a Deus”.

Os rapazes e as raparigas que faziam este périplo pelo casario da aldeia tinham garantida a oferta de fruta da época – as laranjas, que começam a amadurecer por esta altura, as romãs, que muitos guardavam para comer no Dia de Reis, umas nozes ou amêndoas, se as havia na região, e uns figos passados, que se secavam no verão e que depois se untavam com azeite e se enfarinhavam, para ficarem mais macios.

Se as posses o permitissem, as mulheres gostavam de fazer umas broas de milho para distribuir pela criançada, o que era rapidamente comunicado entre todos, de tal sorte que àquela porta ninguém deixaria de bater. Era a alegria geral, pois, o gesto de dar entre as pessoas para quem as dificuldades eram uma companhia permanente, constituía um afago para a alma.

Este gesto de dádiva revestia-se, também, da evocação da memória dos mortos, em cujas campas neste dia, ou mais frequentemente no Dia de Finados ou dos Fiéis Defuntos (2 de Novembro), se depunham uns ramos de flores. Em regra, crisântemos brancos e amarelos. Na sua simbologia mais comum, o crisântemo significa a protecção, a esperança e a compreensão pelos limites da vida, daí que em alguns países seja também conhecida como a flor da morte.

Esta tradição, poderia ainda contemplar outras manifestações associadas à espiritualidade do óbolo, consagrado pela igreja como um dever de santidade, mas a que o povo na sua singeleza, emprestava, apenas, a atitude da solidariedade entre os mais desvalidos da sorte e os que terminaram esta passagem terrena. Chamados por Deus, conforme acreditava muito boa gente.

Com esta celebração, meio profana meio sagrada, se dá início ao ciclo natalício, que se estenderá até ao mês de Janeiro, com as antigas e tradicionais esperas dos Reis e os cantares das Janeiras, festividades que ainda hoje são cumpridas mais ou menos espontaneamente em algumas regiões do nosso país, numa clara demonstração de como a modernidade não conflitua com o respeito e a evocação das tradições do passado.

Aliás, numa linha moderna do pensamento antropológico, e que tem muitos seguidores entre a comunidade científica nacional, a evocação do passado analisado aos olhos do presente é fundamental para a construção do futuro, na justa medida em que nós não nos conseguimos deixar de relacionar com as nossas memórias e com aquilo que elas representam, desde logo a nível individual, e, depois, quase num exercício de catarse, para o colectivo em que nos integramos socialmente.

A vida e a morte são valores referenciais no culto cristão, sendo que tudo assenta na relação antagónica entre estes dois estados. Estar morto em vida ou viver após a morte são atitudes que a Igreja consagra em relação aos seus crentes e que preserva como orientação acerca da atitude de cada pessoa em relação ao outro – o Próximo – e em relação a Deus, a Entidade superiora que nos guia e orienta no nosso dia-a-dia.

Desde crianças fomos ensinados a viver acreditando na vida após a morte terrena, ou seja, quem crê que a morte física não é o fim do nosso percurso enquanto pessoas acredita, naturalmente, nos valores que a própria Igreja nos ensina e que deverão constituir a cartilha da nossa vida, que, assim, é uma passagem, apenas mais curta ou mais longa, mas sempre efémera.

É frequente ouvirmos dizer aos mais antigos que só morrem os que são esquecidos… Assim, a vida e a morte fazem mais sentido, posto que são tempos da mesma existência, aos quais deveremos consagrar os mesmos votos e a mesma dedicação. Ora, é nesta construção social e cultural que o povo crente tanto valoriza a dialéctica da morte e da vida depois do passamento, daí que não nos admira que tantos dos seus cultos tenham que ver com o mistério da morte e o milagre da ressurreição.

A tradição popular de visitar as sepulturas dos entes queridos no Dia de Finados mantém-se entre nós sendo ainda muito respeitada pelos mais antigos, que, assim, vão transmitindo este mesmo hábito aos mais jovens, que aprendem a respeitar a memória dos que partiram mais cedo e que se mantêm vivos no nosso coração.

Este tempo frio do Outono lembra-nos também o S. Martinho e as tradições que lhe estão associadas, nomeadamente na nossa região onde a produção do vinho tem tanta importância.

Há umas gerações atrás dizia-se que a produção vinícola no nosso país alimentava um milhão de portugueses! Longe vão esses tempos, pois nas últimas décadas do século passado assistimos ao desenfreado arranque da vinha, reduzindo substancialmente a produção e, por outro lado também a inovação tecnológica dispensou milhares de braços de trabalho agrícola.

Longe vão os tempos do copo de três, acessível a todas as bolsas mesmo às mais magras, quando o vinho servia, tantas vezes, para afogar as mágoas de uma vida difícil e sofrida. Os patrões davam em vinho o que faltava na jorna, e também por isso as famílias do campo ribatejano passavam tantas privações.

Agora que se iniciou um novo ciclo no plantio da vinha, com castas mais nobres, e se tem investido na produção à base de melhor qualidade, o vinho é uma bebida de fidalgo ou de burguês a querer botar figura, pois, chegar a um restaurante e escolher a marca do vinho confere um certo estatuto. Quem diria que também o vinho, como a sardinha ou o bacalhau, viraria bem de consumo destinado aos mais endinheirados!

Não haja dúvida de que a tradição já não é o que era. Porém, nunca deixaremos de apreciar o nosso vinho ainda que produzido com os processos de cultura e de vinificação impostos pelas exigências comunitárias, mas, respeitando o sacrifício dos nossos antepassados, não queremos deixar de evocar o povo que rebentava nas cavas, nas podas e nas vindimas em jornadas de sol a sol, e nos lagares, em tempo da pisa, pela noite dentro. Povo simples, bom, abnegado, sério, honrado, trabalhador, a quem devemos render sempre as nossas homenagens.

Para além do adagiário popular que anda associado a esta cultura, há um vasto conjunto de aspectos relacionados com a vivência do povo, que, nesta medida, interessam ao folclore e à etnografia da nossa região. A maior referência à produção do vinho anda intimamente ligada ao S. Martinho, não é que, segundo conste, o piedoso santo fosse um consumidor inveterado de tão precioso néctar, pois, como é sabido, a sua santidade resultou da bondade para com os mais desvalidos da sorte, nomeadamente com um indigente com quem repartiu a sua luxuosa capa, cortando-a ao meio com a espada, para o agasalhar do frio, e, segundo a tradição, por força desta atitude, se espera sempre pelo Verão de S. Martinho, para protecção dos que têm pouca roupa e outras maiores necessidades.

Mas neste tempo frio de Outono os vinhos já estarão cozidos, como se diz em gíria popular, pelo que é mister fazer-lhe a prova, para ver como está bom de gosto, de acidez e de grau:

Pelo S. Martinho, mata o teu porco e prova o teu vinho!

Este é apenas um entre dezenas ou centenas de outros rifões que estão associados à produção e ao consumo do vinho. Mas não resisto, sem querer ser fastidioso, a citar outro bem eloquente rifão:

O Vinho dá voz a mudos, vista a cegos e ouvido a surdos!

Não restam dúvidas de que também aqui o povo afirma a sua sabedoria ao sintetizar tão adequadamente os efeitos da ingestão excessiva do vinho, pois, quando uma pessoa está com um grão na asa torna-se mais falador, e quase sempre teima que viu ou que ouviu algo que não aconteceu, revelando, assim, tornar-se um pouco desconfiado e até quezilento.

Mas encontramos o vinho ligado ainda às refeições populares, uma vez que antigamente era frequente entre a população rural matar-se o bicho com as “sopas de cavalo cansado”, que mais não eram do que sopas de pão ensopadas em vinho quente e adoçadas com um pouco de açúcar.

Nas regiões agrícolas era habitual a realização da “Praça das Jornas”, local e tempo onde se reuniam os camponeses que buscavam trabalho e os pequenos proprietários ou os capatazes das casas agrícolas mais abastadas que necessitavam de contratar alguns trabalhadores para determinada faina e por um certo período. Acertado o valor da jorna, camponês e “novo patrão” selavam o acordo com a ingestão de um copo de vinho, a que chamavam a molhadura. Bebido o vinho, como se costumava dizer, já nenhuma das partes devia voltar com a palavra atrás.

Do mesmo modo, quando um rapazola ganhava pela primeira vez a “jorna” igual à de um homem adulto tinha de “pagar a patente”, o que significava que teria de pagar a cada um dos seus companheiros de jornada um copo de vinho, assinalando, assim, a passagem a um estatuto mais bem remunerado. (continua)

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